O Poder Executivo do Distrito Federal editou o Decreto 43.072, de 10 de março de 2022, desobrigando a utilização de máscaras de proteção facial, no âmbito do DF. Tal medida deve se irradiar por muitos estados da Federação e um novo questionamento surge a partir da possibilidade de estabelecimentos privados continuarem exigindo a utilização do item de controle da transmissão do coronavírus.
É fundamento de existência da República Federativa do Brasil o valor social da livre iniciativa (artigo 1º, IV, da CF). Este fundamento se manifesta ainda como o princípio da Ordem Econômica expresso, entre outros, no respeito ao livre exercício de atividade econômica ao lado da defesa do consumidor (artigo 170 da CF). Pelo texto constitucional as mais diferentes empresas podem estabelecer regras de conduta para os seus funcionários e seus consumidores, desde que isso não atinja direitos fundamentais dos cidadãos ou viole normas que expressamente imponham certas medidas.
É algo comum em nossa sociedade que os mais diferentes estabelecimentos comerciais exijam determinadas condutas de seus consumidores para a utilização dos seus serviços. É assim nos bares e restaurantes que vedam a entrada de pessoas sem camisa ou trajando roupas de banho e, em alguns casos, empresários chegam a estabelecer códigos de vestimenta (dress code) para permitir a entrada de consumidores em suas dependências.
Nesta questão da exigência de roupas para acesso a um determinado lugar, aliás, os órgãos públicos têm códigos de vestimenta próprios que até exageram nas exigências. No Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo, só é permitida a entrada de homens com terno e gravata e até bem pouco tempo mulheres não poderiam acessar as dependências do STF trajando calças, mas somente saias abaixo dos joelhos.
Ponto fundamental para se enfrentar a questão em toda sua complexidade é que, nas atividades empresariais privadas, a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, instituída pela Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, estabelece o princípio da “liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas” (artigo 2º, I). Afirma que os seus protagonistas gozam de “presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada” (artigo 3º, V). Se o empresário fizer essa escolha pelo uso de máscaras, não existirá qualquer ilicitude em sua conduta.
O Decreto do Distrito Federal e qualquer outro que for editado no Brasil não terá o condão de proibir o uso de máscaras, mas apenas desobrigar a sua utilização e delegar essa decisão ao particular, seja ele consumidor seja ele empresário. O padrão de organização dos estabelecimentos empresariais deve ser escolhido com liberdade em razão dos interesses de quem presta o serviço, observados os direitos dos consumidores.
Agora, essa liberdade tem limites ou requisitos para a sua validade? Óbvio que sim. Apresentamos três limitações à liberdade dos particulares para o estabelecimento dessas regras internas:
- Respeito aos direitos e garantias fundamentais;
- Vedação às práticas abusivas, previstas no artigo 39 do CDC;
- Que a regra esteja estipulada em contrato ou na oferta do serviço com informações claras, ostensivas e acessíveis ao consumidor (CDC, artigo 6º e artigo 31).
Na primeira limitação da liberdade, o estabelecimento comercial não pode impedir a entrada de pessoas a partir de critérios desarrazoados ou que venham a ferir um direito fundamental, ou que impliquem na recusa injustificada ou ilegítima de serviço. Uma festa privada pode fazer a “Festa de Branco”, onde todos os participantes só podem entrar com uma roupa branca, mas não pode fazer a mesma festa em que seria permitida apenas entrada de pessoas brancas, resultando assim em flagrante expressão racista e, portanto, tal prática não estaria albergada em nossa Constituição.
A utilização de máscaras, de uma forma geral, é medida de controle epidemiológico, e o STF afirmou ser constitucional o estabelecimento de sua obrigação nas arguições de preceito fundamental 714, 715 e 718. No voto do relator, ministro Gilmar Mendes, ficou consignado que o Brasil é um dos países que menos realiza teste para identificação da Covid-19 e sempre esteve no topo do número de contaminados, casos graves e mortes, o que justifica a sua utilização pela Administração Pública.
Nesta toada, inegável que populações em situação de vulnerabilidade, a exemplo das pessoas encarceradas em presídios, podem ser protegidas por normas internas que exijam a utilização de máscaras, já que estão sujeitas a normativos administrativos em decorrência de sua situação de especial sujeição, desde que isso esteja fundamentado em ditames científicos razoáveis. Se a utilização da medida de controle epidemiológico pela Administração Pública foi considerada constitucional pelo STF, a decorrência lógica que se extrai da decisão é que, no mérito, o ato de obrigatoriedade não atingiu algum direito fundamental ao ponto de vedar a sua imposição.
Via de consequência, os estabelecimentos que adotarem esta medida gozam de liberdade para sua exigência, até porque serão eles que vão arcar com as consequências de tal limitação. Se por um lado podem perder potenciais consumidores descontentes com a imposição, por outro, podem atrair público que prefere frequentar ambientes que as exijam. É na pluralidade da concorrência que costumam ser construídas as melhores práticas de mercado. Em outra perspectiva, no caso da não exigência do uso de máscaras, pode se ver obrigado a suspender suas atividades em decorrência de eventual surto da doença, como tem sido o corriqueiro das escolas.
O segundo elemento limitador da liberdade empresarial estará contido no pacto definido entre as partes, isto é, nos contratos firmados com os usuários, já que, em razão do pacta sunt servanda, é necessário que a criação de regras de conduta direcionadas ao bem-estar de todos esteja prevista em contrato ou na oferta, que em todas as hipóteses, vincula o fornecedor. Neste caso a medida de controle epidemiológico destinada à manutenção das atividades com grau de cautela maior do que o exigido pela Administração Pública torna-se mais do que razoável. Pode-se concluir, então, que não se trata de recusa injustificada de prestação de serviços, especialmente se essa condição de atendimento compõe o rol de exigências oponíveis a todos os consumidores.
Insta destacar que em estabelecimentos escolares existem diversas crianças que estão em situação de vulnerabilidade ou com famílias nessa condição, o que faz essa medida estar na trilha de cautela geral exigida para a proteção da criança e adolescente. É dever da família, da sociedade e do Estado efetivar todas as medidas necessárias à proteção da saúde de crianças e adolescentes (artigo 227 da CF) e ninguém pode se abster de cumprir essa proteção integral.
Por fim, o terceiro requisito exige a prévia comunicação da exigência, de forma clara, ostensiva e acessível. Se o estabelecimento informar ao consumidor quais são as suas exigências não haverá abuso do direito de liberdade empresarial. O artigo 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor estipula que é direito básico do consumidor a “informação adequada e clara” sobre as características dos diferentes serviços. Neste caso há justa causa para imposição de regra de conduta no espaço privado em razão da defesa da saúde dos usuários e dos trabalhadores, mas a medida deve ser informada inequivocamente aos que pretendam entrar em suas dependências.
Conclui-se que, se por um lado as regras internas não se sobrepõem ao que está definido em lei, deve-se considerar que nenhuma lei proibiu o uso de máscaras e, ainda, que regras internas podem, sim, ser mais cautelosas com o direito à saúde dos cidadãos que frequentam estabelecimentos privados. Isso está no campo da liberdade empresarial em decorrência da livre iniciativa, fundamento do Estado brasileiro.