
No dia 6 de janeiro de 2021, enquanto o Congresso dos Estados Unidos se reunia para certificar a vitória de Joe Biden no Colégio Eleitoral, o então presidente Donald Trump discursava para milhares de apoiadores concentrados na frente da Casa Branca. “Se vocês não lutarem para valer, vocês não terão mais um país”, disse o republicano. Inflamados pelo discurso de Trump, seus apoiadores marcharam até o Capitólio e invadiram o prédio para tentar impedir a continuação da sessão parlamentar. Cinco pessoas morreram.
Forçado a agir, Trump postou um vídeo nas suas redes sociais pedindo para que os manifestantes voltassem para suas casas. No mesmo vídeo, entretanto, diz “amar” seus apoiadores e que todos devem “se lembrar daquele dia para sempre”. Plataformas como Facebook, Twitter e YouTube encararam isso como uma violação de seus termos de uso e suspenderam o acesso de Trump aos seus serviços. E assim começou o ano da moderação de conteúdo na internet: o rei das mídias sociais havia perdido seu trono.
Os eventos de janeiro de 2021 nos EUA repercutiram mundo afora. No Brasil, por exemplo, o banimento de Trump das plataformas digitais reacendeu a preocupação entre as alas conservadoras de que Jair Bolsonaro também poderia ter o mesmo destino. Isso, por sua vez, deu início a um projeto regulatório capitaneado pelo Executivo federal que visava de certa forma blindar a presença digital de políticos do Brasil. De outro lado, seguiu-se a discussão de outro projeto regulatório (PL 2630/2020, conhecido como PL das Fake News) que preocupa-se mais com o processo em vez da substância da moderação de conteúdo.
Moderação sem viés ideológico
Nos EUA, plataformas digitais não podem ser responsabilizadas por conteúdos de terceiros nem por atos próprios de moderação. É o que dispõe a Seção 230 do Communications Decency Act desde a segunda metade da década de 1990. Esse escudo legal abre espaço para que os provedores de aplicações na internet atuem dentro de um cenário de autorregulação, criando, aplicando e atualizando suas próprias regras e princípios. São os chamados termos de uso ou padrões da comunidade.
Após o banimento de Donald Trump, grupos conservadores intensificaram sua ofensiva contra a Seção 230, há muito criticada por permitir que plataformas digitais atuem gerando o que eles entendem como uma suposta “censura” de vozes conservadoras nas redes. Em setembro, por exemplo, o governador do Texas, Greg Abbott, sancionou uma lei que proíbe que redes sociais moderem conteúdos de seus usuários com base em seus “pontos de vista”. A lei do Texas se soma a outras iniciativas que buscam evitar o que os conservadores chamam de “viés ideológico”, promovendo uma pretensa moderação “politicamente neutra”.
Ninguém quer ser o próximo Trump
Mas o Brasil não ficou para trás em 2021 quando o assunto foi moderação nas redes. O ano foi marcado por uma mudança de postura por parte das principais plataformas em relação aos conteúdos postados por Bolsonaro e seus apoiadores nas redes, em especial aqueles que promoviam o suposto “tratamento precoce” da Covid-19. Em abril, por exemplo, o YouTube removeu pela primeira vez um vídeo do presidente no qual ele promovia a distribuição do “kit Covid”. Meses depois, em julho, a plataforma deletou outros 15 vídeos do canal de Bolsonaro que faziam apologia ao uso de cloroquina e ivermectina.
A relação entre o presidente e a plataforma de vídeos chegou a um ponto de inflexão em outubro, quando, em uma de suas lives semanais, Bolsonaro associou a vacina contra Covid-19 ao desenvolvimento da Aids. O conteúdo foi imediatamente removido do YouTube por violar as políticas da empresa contra a desinformação médica sobre o coronavírus. Ainda, o canal do presidente foi suspenso por uma semana em razão das reiteradas violações aos termos de uso da plataforma, o que certamente reacendeu a preocupação de alas conservadoras de que Bolsonaro poderia ter o mesmo destino de Trump em 2022.
Ainda em 2020, teve início no Brasil um debate sobre regulação de desinformação em plataformas digitais por meio do PL 2630/2020, que prevê a criação da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.
O que começou como uma tentativa de combate à desinformação, entretanto, se transformou em um macroprojeto de regulação de plataformas digitais. Ou seja, o debate sobre regulação de plataformas no Brasil não se iniciou em 2021, mas certamente ganhou novos contornos após os eventos de janeiro nos EUA.
Em maio de 2021, ainda com o efeito do banimento de Trump fresco na percepção coletiva, setores do governo federal lançaram um ambicioso projeto regulatório cujo efeito tende a restringir o escopo da moderação de conteúdo nas plataformas digitais. Inicialmente a proposta tomou forma de decreto para regulamentar o Marco Civil da Internet e dispor sobre a moderação em plataformas digitais. A minuta de decreto, entretanto, não chegou a ser assinada pelo presidente e, nas vésperas das manifestações do 7 de setembro, viu a luz do dia na forma de medida provisória.
A MP 1068/2021 tinha por objetivo inverter a lógica da moderação de conteúdo. Se antes as plataformas gozavam de uma ampla esfera de autorregulação, agora elas precisariam seguir uma lista exaustiva que elencava as hipóteses nas quais a moderação poderia ser feita com uma “justa causa”. Ao moderar conteúdos para além da lista definida pelo governo, as plataformas poderiam sofrer sanções que iam da mera advertência à proibição de oferta de serviços no Brasil.
O que chama a atenção é o que ficou de fora do índex, como, por exemplo, desinformação sobre a vacina e o “tratamento precoce”, o que parece indicar uma tentativa de salvaguardar certos discursos na internet. A MP, entretanto, não teve um final promissor: foi devolvida pela presidência do Senado Federal e viu, assim, seus efeitos extintos. Algumas semanas depois, o texto da medida foi apresentado pelo governo federal na forma de projeto de lei e segue em tramitação no Congresso apensado ao PL 2630/2020.
Regulando o processo
Se por um lado 2021 foi marcado pelo banimento de Trump e tentativas de reduzir o escopo de autorregulação das plataformas digitais, também foi possível identificar avanços promissores em outro campo: a regulação do processo (e não da substância) da moderação de conteúdo. Em outras palavras, em vez de exigir uma moderação “sem viés ideológico” ou estipular em lei quais conteúdos podem ou não ser moderados, a regulação do processo aposta em soluções mais universais e consensuais.
Em 2021, duas iniciativas se destacaram no foco em regular o processo: o Digital Services Act da União Europeia e o Online Safety Bill do Reino Unido. Dentre suas diferentes disposições, os dois diplomas, uma vez aprovados, passariam a exigir a publicação de relatórios de transparência por parte das plataformas e, com isso, pretendem trazer mais estabilidade e racionalidade ao processo de moderação. Além disso, órgãos específicos ficariam responsáveis pela análise e monitoramento destes relatórios: respectivamente o European Board for Digital Services e o Office of Communications (OFCOM).
No Brasil também foram debatidas propostas que seguem um caminho semelhante. O PL 2630/2020, muito criticado por algumas de suas disposições, propõe inovações inspiradas nos debates europeu e britânico, especialmente a exigência de publicação de relatórios de transparência. Além disso, o PL se ancora em disposições eminentemente processuais, como a exigência de que o usuário seja sempre notificado a respeito de eventuais ações de moderação de conteúdo e a garantia do seu direito de apelar e requisitar uma revisão de decisões tomadas pelas plataformas.
A dualidade da regulação da moderação em 2021
O ano que começou com o fim do reinado de Trump nas redes sociais acabou dando lugar a uma interessante dualidade em termos de regulação de plataformas digitais. Enquanto alguns grupos de interesse buscaram reduzir a esfera de autorregulação dos provedores de aplicações, outros advogaram por maior transparência e accountability, construindo, assim, alternativas focadas no processo. A moderação de conteúdo vive, assim, um momento de corda esticada. Resta saber qual projeto regulatório irá se sobressair em 2022 e além.