Pandemia

Coronavírus: uma chance e um teste para a telemedicina no Brasil

Consulta à distância: uma opção viável?

Telemedicina
Crédito: Intel Free Press/wikimedia commons

Recentemente, os governos em suas três esferas (federal, estadual e municipal) passaram efetivamente a estabelecer protocolos de atendimento e diretrizes de administração para casos suspeitos e confirmados de coronavírus (COVID-19), a envolver medidas dentro e fora do sistema de saúde, abrangendo as estruturas públicas e privadas na área.

Em síntese, tem-se que o coronavírus pode afetar as suas vítimas em diferentes graus de intensidade, desde os mais brandos até os mais intensos e graves. Em qualquer grau, o risco de disseminação existe e é expressivo, seja por sua progressão geométrica de propagação, seja pela falta de uma vacina ou de um tratamento específico e suficientemente eficaz.

Não bastassem esses fatores, a capacidade de atendimento, estrutural e de pessoal, é outro desafio que se apresenta. Não haverá leitos equipados ou em número suficiente se houver grande disseminação do COVID-19, e, por isso, medidas de tentativa de contenção são necessárias para não sobrecarregar a rede de atendimento.

Vê-se que as autoridades estão preocupadas com os pacientes – atuais e potenciais -, o que é necessário. No entanto, é fundamental igualmente dirigir o olhar para aqueles que serão muito demandados nessa assistência, que são os profissionais da área da saúde: médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, etc.

Especificamente quanto ao médico: um profissional sadio é fundamental por sua  capacidade de salvar vidas, e um profissional infectado torna-se um paciente, impossibilitado de cumprir esse mister enquanto estiver nessa condição. Não apenas deixa de cuidar, mas passa a precisar de cuidados.

Com isso, torna-se indispensável voltar o olhar às opções que possam conciliar, de um lado, a necessidade de atendimento da maneira mais eficiente possível e, de outro, a fundamental proteção (redução ou eliminação da exposição) aos profissionais que estarão na “linha de frente” da assistência às pessoas acometidas pelo COVID-19.

A telemedicina, entendida como uma forma de prática médica à distância, mediante o emprego de tecnologia de informação e de comunicação, apresenta-se como uma opção que vem a suprir essa necessidade de uma maneira muito eficaz, porque, de um lado, permite que haja uma avaliação preliminar presumivelmente mais dinâmica aos pacientes, e, por outro, restringe o número de infectados que terão contato direto com o médico e com outras pessoas que estejam no mesmo ambiente, reduzindo a exposição ao vírus e viabilizando a melhor divisão do tempo no trabalho ao agregar produtividade ao serviço médico, o qual é essencial em tempos de exponencial demanda no segmento.

A telemedicina é ampla e pode ser segmentada na teleconsulta, na tele-expertise, no teleacompanhamento, na teleassistência médica e no teleatendimento, podendo inclusive ser conjugada em suas modalidades, em tempo real, assíncrona ou mista. Ela é uma ferramenta para otimizar os custos na área da saúde, que permite o aumento do número de atendimentos pela organização do tempo e favorece o custeio do sistema de saúde, notadamente o poder público e os planos ou seguros de saúde, pelo fato de que a estrutura de consultório, postos, unidades de pronto atendimento e de hospitais é poupada.

Além disso, permite uma alocação de trabalho entre equipes que não precisam estar na mesma localidade em que está o paciente. Assim, por exemplo, um médico na cidade de Palmas, Estado do Tocantins, pode atender de sua própria casa uma demanda na cidade de Blumenau, no Estado de Santa Catarina.

Ainda, pode-se empregar a telemedicina para atender pacientes com outras doenças que, não obstante precisem de assistência, não demandem internação e tampouco comparecimento presencial em um hospital (como ocorre no monitoramento domiciliar à distância de pacientes com doenças crônicas). Com isso, a telemedicina desafoga a rede física de atendimento para que ela seja utilizada para os casos mais graves e de demanda extraordinária.

Evidentemente que não é todo tipo de atendimento que pode ser executado remotamente. Se o paciente não dispuser dos recursos tecnológicos necessários, não será possível fazer uso da telemedicina. O atendimento dos pacientes internados, em geral, deverá ser preferencialmente presencial. Por sua vez, consultas preliminares para triagem de casos que demandem internação ou apenas isolamento domiciliar, ou análise de exames de imagem por exemplo, são passíveis de execução por telemedicina. Para esse momento desafiador e que pode gerar sobrecarga de trabalho no setor, contar com essa ferramenta não deixa de ser um alento.

Deve-se destacar que o paciente não pode ser obrigado a se submeter ao atendimento em telemedicina. Caso o assistido se recuse a submeter-se a um ato de telemedicina, o médico deve respeitar essa decisão, bem como deve informá-lo sobre as consequências desta (é assim que ocorre na França, conforme art. R.4127-36 do Code de la santé publique). Aconselha-se que o atendente registre a recusa no prontuário e envide esforços para convencer o paciente a ser atendido na modalidade tradicional.

Sob o domínio jurídico, tem-se que o exercício da medicina é regulado pela Lei n. 12.842/2013, a qual estabelece as atividades privativas dos médicos sem, no entanto, especificar os meios empregados, o que levaria a crer que o exercício da telemedicina não encontraria restrição legislativa no Brasil, pois não há lei federal ou decreto específico tratando do tema.

Não obstante isso, no dia 23/03/20, foi publicada a Portaria n. 467 do Ministério da Saúde (datada de 20/03/2020), a qual autorizou o uso da Telemedicina tanto no SUS quanto no sistema de saúde suplementar e rede privada, “em caráter excepcional e temporário”, cujos atos são condicionados “à situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional” (art. 1o), relacionada ao COVID-19, declarada pela Portaria n. 188/GM/MS de 03/02/2020.

A mesma Portaria permite o uso da Telemedicina no atendimento pré-clínico, de “suporte assistencial, de consulta, monitoramento e diagnóstico” (art. 2o), a ser efetivado “com objetivo de reduzir a propagação do COVID-19 e proteger as pessoas” (art. 3o) e a observar o necessário registro dos atos praticados, em prontuário clínico que deverá conter a data, a hora, a tecnologia da informação e comunicação empregada e o número de registro do médico perante o Conselho Profissional.

Permite-se que o médico firme eletronicamente receitas e atestados médicos à distância, por meio de certificados e chaves emitidos pela ICP-Brasil, desde que o sistema utilizado registre o teor e a autoria de modificações que sejam realizadas posteriormente. Alternativamente, admite-se o uso dessa ferramenta sem a assinatura eletrônica, desde que ocorra a identificação do médico, a associação ou anexo de dados em formato eletrônico feita pelo médico; e a admissão pelas partes como válida ou a sua aceitação pela pessoa a quem for apresentado o documento (art. 6o). Isso indica que deverá haver boa vontade das organizações empresariais destinatárias (farmácias e empregadores, por exemplo) na aceitação dessas receitas e atestados, para que esse sistema efetivamente sirva aos seus propósitos.

A Portaria estabelece que o atestado médico deve contemplar os seguintes requisitos: identificação do médico (incluindo o nome completo e o número de inscrição no CRM) e do paciente, além de data e hora da sua emissão e validade.

A atividade deve ser realizada de acordo com os preceitos da beneficência, da não-maleficência, do sigilo das informações e da autonomia, com as normas e orientações do Ministério da Saúde, inclusive quanto às situações de notificação compulsória.

Caso o médico determine o isolamento do paciente, este deverá declarar por escrito a sua ciência dessa necessidade, especificando o período e o local de cumprimento, bem como das consequências do não atendimento dessa recomendação, na forma do Anexo 1 da Portaria nº 356/GM/MS, 11 de março de 2020 (mencionada no § 4º do art. 3º) e do rol de pessoas que residam no mesmo endereço.

Por sua vez, o Conselho Federal de Medicina (CFM) costuma emitir regulamentação própria do setor, por meio de Resoluções. Na Resolução CFM n. 1.643/2002, definiu-se a Telemedicina como “o exercício da Medicina através da utilização de metodologias interativas de comunicação audiovisual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em Saúde”. A regulamentação da teleconsulta foi objeto de Resolução específica (n. 2.227/2018), a qual foi revogada apenas um mês depois da sua edição, fazendo crer que não mais seria permitida.

No Parecer CFM n. 14/2017, emitido no Processo-Consulta CFM n. 50/2016, referiu-se ser “permitido o uso do Whatsapp e plataformas similares para comunicação entre médicos e seus pacientes, bem como entre médicos e médicos, em caráter privativo, para enviar dados ou tirar dúvidas”.

Em 19/03/2020, o CFM enviou ao Ministério da Saúde o Ofício CFM n. 1756/2020, em face da necessidade de “aperfeiçoar ao máximo a eficiência dos serviços médicos prestados”, reconhecendo, “enquanto durar a batalha de combate ao contágio da COVID-19”, “a possibilidade e a eticidade da utilização da telemedicina” para teleorientação (orientação e encaminhamento, à distância, de pacientes em isolamento), telemonitoramento (monitoramento ou vigência à distância de parâmetros de saúde e/ou doença) e teleinterconsulta (“para troca de informações e opiniões entre médicos, para auxílio diagnóstico ou terapêutico”).

Não obstante os debates que encerram a competência do CFM para legislar sobre a matéria, sobremodo quando impõe restrições inexistentes na legislação federal vigente, o que pode gerar insegurança jurídica aos envolvidos, é possível sustentar que a Telemedicina pode ser praticada no Brasil, sem olvidar o teor do sétimo “considerando” do preâmbulo da mencionada Resolução n. 1.643/2002, o qual refere “que o médico que exerce a Medicina a distância, sem ver o paciente, deve avaliar cuidadosamente a informação que recebe só pode emitir opiniões e recomendações ou tomar decisões médicas se a qualidade da informação recebida for suficiente e pertinente para o cerne da questão”.

Assim, deve-se ter o cuidado de que o atendimento seja adequado tecnicamente e atento aos seus propósitos, nas situações admissíveis, e que os dados de atendimento sejam documentados para memória e registro.

Em síntese e para concluir, o que esse momento histórico atual indica é que a telemedicina é um caminho viável e necessário, cuja aplicação é altamente justificada e justificável nesse momento de pandemia, e que precisa urgentemente ser regulamentada pelo poder legislativo brasileiro, para que possa ser aplicada com segurança, mesmo após a pandemia.