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Comportamentos intolerantes disseminados comprometem liberdade democrática

Em 2018, antipartidarismo generalizado teve consequências eleitorais, em particular no apoio a Bolsonaro

tolerância política
Palácio do Planalto. Crédito: Anderson Riedel/PR

Nos últimos anos, temos assistido ao aumento e à ampliação, para além da classe política, do antagonismo político em nosso país. A polarização afetiva, que vinha aumentando desde as manifestações de 2013, ganhou força na campanha eleitoral de 2018 e se consolidou durante o mandato do presidente Jair Bolsonaro. Em alguns momentos, ela assumiu uma dimensão trágica, como nos casos dos assassinatos do mestre Moa do Katendê (outubro de 2018), do militante petista Marcelo Arruda (julho de 2022) e de Benedito dos Santos (setembro de 2022).

Isso mostra que, além das violações praticadas por governos autoritários, devemos também nos preocupar com as ameaças a direitos de grupos que ocorrem no âmbito da sociedade, inclusive na opinião pública. Atitudes e comportamentos intolerantes disseminados na população comprometem a extensão da liberdade democrática, em especial o direito de indivíduos e grupos de expor e debater publicamente suas ideias.

A tolerância política é a expressão comportamental do acesso legalmente garantido ao livre mercado de ideias, excluídas aquelas ideias que pregam violência e afrontam a existência do regime democrático. Nos estudos sobre comportamento político, a tolerância se refere à aceitação da fruição de direitos políticos por parte do grupo que é alvo de desafeição. Nesse sentido, é importante distingui-la do preconceito, já que uma pessoa pode expressar estereótipos negativos em relação a um grupo, mas tolerar a sua participação na política.

Nos Estados Unidos, onde há mais dados e pesquisas sobre o tema, ocorreu um processo de pluralização dos alvos da intolerância, deixando de se concentrar na “ameaça vermelha” dos tempos do macarthismo (1950) para abarcar uma ampla variedade de grupos. Esses estudos apontam que as características associadas à intolerância são de natureza psicológica (baixa autoestima, forte insegurança, acentuado dogmatismo, traços de personalidade autoritária), demográfica (baixa escolaridade, forte religiosidade) e política (baixa adesão às normas democráticas).

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Pesquisas sobre esse tema entre a população brasileira são mais recentes e coincidem com a disponibilização de dados de opinião pública com amostras representativas nacionais nas últimas duas décadas. Em 2019[1], publicamos artigo sobre os níveis de tolerância dos brasileiros em relação a cinco grupos específicos: pessoas que defendem a legalização do aborto, pessoas que defendem o regime militar, comunistas, petistas/simpatizantes do PT e peessedebistas/simpatizantes do PSDB.

Preocupamo-nos inicialmente em medir a antipatia dos entrevistados e descobrimos que o grupo mais rejeitado é o composto por pessoas que se posicionam favoravelmente ao aborto (31%), seguido pelos comunistas (19,9%). Os simpatizantes dos dois partidos que até 2018 dividiam o cenário eleitoral também registraram altas taxas de rejeição (18,8 e 18,5, respectivamente para PT e PSDB). Entre esses grupos, o menos rejeitado pelos brasileiros era o que reúne as pessoas que defendem o regime militar (11%). A forte influência da religião na vida nacional, nossa curta e turbulenta trajetória democrática e o considerável descrédito das instituições políticas junto à população ajudam a explicar esse quadro.

Quando perguntamos aos entrevistados sobre o exercício de direitos políticos (votar, discursar e concorrer) por parte dos grupos que não gostam, em geral, menos de 1/3 era favorável. A situação é pior ainda para os petistas, que têm seus direitos apoiados por menos de 1/4 daqueles que os consideram como seu grupo de desafeição. Quanto às causas dessa intolerância, descobrimos que os brasileiros que apoiam princípios democráticos, que são mais interessados em política e que foram socializados no período pós-ditadura militar têm mais chance de serem tolerantes.

Em outro estudo[2], estabelecemos como foco os partidos políticos, confirmando o PT e seus simpatizantes como principais alvos de desafeição. Mas a novidade, em 2018, foi o crescimento do que chamamos de antipartidarismo generalizado, caracterizado pela forte rejeição aos três principais partidos brasileiros na época. Mais alarmante ainda foram os resultados sobre os níveis de intolerância direcionados às legendas e seus apoiadores. Entre os que manifestaram sentimento negativo em relação ao PT, 41% defenderam que o partido fosse impedido de concorrer em eleições. Já entre aqueles que rejeitam o conjunto dos partidos, o percentual de intolerantes atingiu 23,8% dos entrevistados. Em 2018, esse antipartidarismo intolerante teve consequências eleitorais, em particular no apoio a Bolsonaro.

Ao refletir sobre os rumos da política pós-2018, não há motivos para acreditar que os níveis de intolerância política tenham declinado, muito pelo contrário. Mas precisamos de dados atualizados e novas pesquisas para esclarecer o estado atual do fenômeno.


[1] Ribeiro, Ednaldo e Fuks, Mario. Tolerância política no Brasil. Opinião Pública [online]. 2019, v. 25, n. 3 [Acessado 12 Setembro 2022], pp. 531-555.

[2] Fuks, Mario, Ribeiro, Ednaldo and Borba, Julian. From. Antipetismo to Generalized Antipartisanship: The Impact of Rejection of Political Parties on the 2018 Vote for Bolsonaro. Brazilian Political Science Review [online]. 2021, v. 15, n. 1 [Accessed 12 September 2022].