O início de novo ciclo democrático, com as eleições deste ano, destaca a importância da sedimentação e da valorização da vontade popular na construção dessa etapa fundamental da democracia, num contexto social que cada vez mais merece rememorar os princípios e valores republicanos entabulados na Constituição Federal, que – como bem disse o saudoso Ulysses Guimarães – “(…) certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”.
A frase se mantém atual, assim como a necessidade de se relembrar e reafirmar os fundamentos sobre os quais repousa nossa República Federativa – a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e o pluralismo político –, cujo poder emana do povo. A observância de tais máximas deve estar na pauta do pleito de 2022, merecendo especial atenção.
Interligados em harmonia indissociável e colorindo a missão constitucional brasileira, são fundamentos cuja concretude nunca foi tão pertinente como no atual cenário brasileiro, no qual sua eficácia social é necessária para garantir a regularidade do processo eleitoral e do próprio Estado democrático de Direito. O exercício da soberania popular confere ao povo a responsabilidade de tutelar e fiscalizar a observância desses preceitos, ao passo que exige do candidato à Presidência da República o dever de respeitá-los e realizá-los.
A representatividade do candidato eleito conecta-se diretamente com o exercício da soberania. Não mais a soberania clássica de Bodin e Duguit, caracterizada pela exacerbação do voluntarismo estatal e de concepções nacionais de cunho isolacionistas e segregacionistas. Mas sim uma soberania reconstruída e exercitada em torno do sujeito humano, tanto do ponto de vista internacional como da ordem político-jurídica interna.
A soberania brasileira é instrumento para a concretização da integração internacional e da promoção da dignidade da pessoa humana. Seu exercício deve respeitar os avanços sociais humanitários da consciência jurídica coletiva em conjugação com outros ordenamentos jurídicos – o que Jorge Miranda chama de limites transcendentes e heterônomos –, até como decorrência das globalizações das relações econômicas e sociais.
Pilar da independência transnacional e atributo do Estado Constitucional para efetivação da existência digna, a soberania é, em última análise, a verdadeira exteriorização da vontade popular, não havendo espaço constitucional no Brasil para que ela seja exercida em desalinho com o progresso já conquistado pela humanidade.
É a vontade popular, aliás, que qualifica o indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal, responsável por modelar o funcionamento e a vida da nação brasileira – isto é, qualifica-o como cidadão. Indo além da concepção aristotélica do termo, a cidadania não se restringe à mera imputação de direitos políticos a alguém, mas sim à atribuição ao indivíduo do protagonismo na promoção e na realização dos direitos fundamentais previstos em nossa Constituição.
A cidadania é a atmosfera de realização da vontade popular e o local onde o cidadão brasileiro, sujeito de direitos, age e transforma-se no impulso da dinamização de sua existência digna.
Sobre a dignidade da pessoa humana concomitantemente como fundamento da República Federativa do Brasil e fim da ordem econômica brasileira (art. 170, caput), nossa Constituição consagrou modelo normativo apto a fomentar, antes de tudo, o desenvolvimento do próprio indivíduo enquanto ser humano. É, inclusive, o que preconiza a Organização das Nações Unidas na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, de 1986, que consagra o sujeito humano como peça central do desenvolvimento, direito inalienável do homem.
A atual ordem constitucional brasileira mostra que a dignidade humana orbita em torno da liberdade unida aos valores sociais de nosso Estado: possibilita que o cidadão brasileiro seja regente de seu próprio destino sem olvidar que as atitudes adotadas para tanto assentem-se na pluralidade e na atuação conjunta em sociedade, tudo à luz do contexto de bem-estar emanado da Constituição – daí sua responsabilidade ainda mais latente em um cenário eleitoral.
São aspectos fortalecidos pelo fato de a liberdade de iniciativa estar ladeada, nas duas menções constitucionais a ela feitas, pela ideia de trabalho humano – seja como fundamento da República, seja como fundamento da ordem econômica brasileira. A previsão existe justamente porque a liberdade de iniciativa, já dizia Miguel Reale Junior, é modo de expressão do trabalho, da valorização do trabalho e do trabalho livre em uma sociedade livre e pluralista, como é o Brasil.
A democracia brasileira é enriquecida pelo princípio pluralista, fundamento e objetivo de nossa nação, tendo o constituinte repelido qualquer arroubo monista ao assegurar a construção de uma sociedade livre, justa e solidária com a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação.
O pluralismo político – valor sociopolítico-cultural e verdadeiro baluarte da própria democracia material – respeita tanto a pluralidade na República como o Brasil enquanto polis plural, atestando que somente em sendo plural é que estaremos diante de um Estado democrático de Direito.
Os fundamentos da República Federativa do Brasil enraízam a liberdade na estrutura social ao conectá-la à infinitude e à diversidade da vida, e reconhecem que o pluralismo confere real sentido de pertencimento à cidadania, inserindo efetivamente o indivíduo no contexto social como cidadão, sujeito de direitos e protagonista da nação, responsável por construir a soberania ao exteriorizar sua vontade popular em busca de sua existência digna.
O real sentido de respeito à Constituição conclama, de uma vez por todas, do cidadão – enquanto indivíduo e enquanto candidato – a compreensão de sua responsabilidade na realização social da República, e do seu papel no processo democrático, que está muito além da urna e do fatídico outubro eleitoral, alcançando a verdadeira continuidade material do Estado democrático de Direito, na qual o povo é o principal interessado.