Gisele Barra Bossa
Sócia da área tributária do Demarest, ex-conselheira do Carf, mestre e doutoranda em Ciências Jurídico-Econômicas pela Universidade de Coimbra
Desde o último dia 3, assistimos ansiosos às movimentações do PL 2384/2023 (PL do Carf), de autoria do Poder Executivo, em virtude da apresentação do parecer substitutivo ao projeto original, de relatoria do deputado Beto Pereira (PSDB-MS).
O governo federal, seguindo o teor da já caducada MP 1116/2023, apresentou o PL 2384, com o objetivo de, em regime de urgência, aprovar o retorno do voto de qualidade (voto duplo de representação do fisco) no caso de empates de julgamento no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
Diante da polêmica em torno do tema, mostrou-se bem-vindo o citado parecer substitutivo original em razão dos seguintes pontos:
Ainda que seja questionável o retorno do voto de qualidade diante da devida tramitação legislativa e sanção da Lei 13.988, de 14 de abril de 2020, que incluiu o artigo 19-E à Lei 10.522/2002 para, em caso de empates de julgamento no Carf, fosse adotado o critério de desempate favorável ao contribuinte, o parecer traz a possibilidade de o contribuinte ver afastada a necessidade de apresentação de garantia para discussão dos créditos resolvidos de forma favorável à Fazenda Pública, caso perca por voto de qualidade e tenha capacidade de pagamento. Nesses casos, também haveria a exclusão multa de ofício de 75%.
Por mais que seja discutível o conceito de capacidade de pagamento para fins de a Fazenda Pública exigir o oferecimento de garantia e tenha sido incluído, na versão aprovada, exigência de regularidade fiscal[1], há dispositivo no sentido de resguardar a impossibilidade de execução da garantia antes da conclusão definitiva do processo judicial.
Tal alternativa tende a acomodar minimamente os ânimos, já que foge às duas tentativas do Executivo: (i) retomar o voto de qualidade, pura e simplesmente; (ii) o acordo anunciado entre o ministro da Fazenda e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que acabou por desagradar à maioria do empresariado, em que a questão da necessidade de apresentação de garantia restou mantida, ainda que assegurada a suspensão de todos os atos de cobrança da dívida.
Sobre a estruturação do Processo Administrativo Fiscal (PAF), para os casos de pequeno valor e baixa complexidade (até 1.000 salários mínimos), em vista das crescentes manifestações da sociedade civil em virtude de potencial cerceamento do direito de defesa dos contribuintes, o substitutivo manteve o atual limite de alçada (60 salários mínimos) aplicável aos recursos interpostos ao Carf, conjugando a inclusão do direito do representante legal do sujeito passivo à sustentação oral no âmbito da DRJ e sua vinculação às súmulas do Carf.
A questão da automática imputação e os percentuais das penalidades em vista das necessárias mudanças de paradigma relacional entre fisco e os contribuintes foi bem trabalhada no parecer sob as seguintes perspectivas:
Essa redução seria para os casos em que: (i) for constatado erro escusável do contribuinte, cujo comportamento demonstre sua diligência para assegurar o adequado cumprimento da obrigação tributária; b) o lançamento de ofício decorrer de divergência na interpretação da legislação que disponha sobre a obrigação tributária; e (c) o contribuinte tenha agido de acordo com as práticas reiteradas adotadas pela administração ou pelo segmento de mercado em que esteja inserido.
Haveria a alteração do percentual base da multa qualificada de 150% para 100%, nos casos de fraude, sonegação e conluio. Apenas nos casos de reincidência de conduta dolosa, dois anos contados do ato de lançamento em que tiver sido imputada a ação ou omissão relativa aos mencionados ilícitos fiscais, que a multa de ofício seria no patamar de 150%.
Adicionalmente, o parecer cuidou de materializar as hipóteses em que, a jurisprudência administrativa atual, tende a afastar a aplicação da multa qualificada, são elas: (i) não restar configurada, individualizada e comprovada a conduta dolosa relativa aos ilícitos fiscais citados; (ii) houver sentença penal de absolvição com exclusão de autoria, materialidade ou dolo em processo do qual decorra imputação criminal do contribuinte; (iii) o contribuinte tiver divulgado os atos ou os fatos que ensejaram a qualificação da multa; e (iv) nos casos em que o contribuinte adote as providências para sanar as ações ou omissões tipificadas supra, durante o curso da fiscalização.
Tais modificações bem se alinham ao mindset do cooperative compliance, direcionam as autoridades a evitar a imputação instintiva de tais penalidades e tendem a impulsionar o adimplemento e a confiança entre as partes.
Ainda assim, sobre esse quesito, o líder do governo na Câmara, deputado José Guimarães (PT-CE), apresentou emenda ao substitutivo para: restringir a redução de 1/3 da multa de ofício apenas para os casos em que houver divergência na interpretação da legislação e suprimir a hipótese de não incidência da multa qualificada nos casos em que o contribuinte tiver divulgado fatos que a ensejaram.
É certo que as demais circunstâncias fáticas trazidas são relevantes em termos práticos para reduzir o contencioso tributário respectivo e garantir segurança jurídica. Felizmente, na versão aprovada, foi mantido o substitutivo em sua versão original.
Para além da possibilidade de a autoridade fiscal afastar a incidência da multa de ofício regular (75%) de acordo com o histórico de conformidade do contribuinte ou responsável tributário, o substitutivo procurou ampliar prazos para pagamento e cumular as reduções de multas e juros previstas no programa de conformidade com outras já previstas na legislação.
No mais, trouxe a obrigatoriedade de a Receita Federal apresentar alternativas de autorregularização. Contudo, foram retirados os dispositivos relativos à permanência do processo no órgão preparador, após a constituição definitiva do crédito tributário, no prazo de 90 dias para cobrança amigável; e a possibilidade de que a transação abranja a cobrança dos débitos administrados pela Receita Federal ainda não inscritos em dívida ativa. Portanto, o texto aprovado deixou de equiparar a possibilidade de atuação da Receita Federal com a da Procuradoria da Fazenda Nacional (PGFN), para além dos créditos de pequeno valor e/ou baixo grau de recuperabilidade.
Note-se que, a partir desses três pilares, evidenciamos real esforço da Câmara do Deputados, em especial da relatoria do substitutivo, em discutir aspectos relacionados à melhora do PAF e da relação entre os stakeholders envolvidos.
Só nos resta saber agora para qual caminho irão as negociações no âmbito do Senado. Esperamos que prevaleça a segurança jurídica, a previsibilidade e a adoção de medidas para manutenção não só da arrecadação inerente aos programas de conformidade, mas da liquidez das empresas brasileiras.
[1] Será exigido o oferecimento de garantia dos contribuintes “que, nos 12 meses que antecederam o ajuizamento da medida judicial que tenha por objeto o crédito, não tiveram certidão de regularidade fiscal válida por mais de 3 meses, consecutivos ou não, expedida conjuntamente pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil e pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional”.