O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) resistiu à prova que se impôs de lotar a avenida Paulista e em seu discurso mirou o campo político da direita mais do que qualquer pressão sobre o Judiciário. Não houve um tom de triunfo nas principais falas, nem a ideia de que se tratava do início de algum movimento. Era um líder acuado reunindo todas as forças que ainda tem para mostrar que segue à frente do seu campo político. Ele parece ter consciência de que segue mais forte nas bases do que nas cúpulas, e o público na avenida impressionou mais que os apoios no trio elétrico.
Estimativa do JOTA com base na área ocupada da avenida e na concentração variável em cada quadra aponta cerca de 60 mil pessoas na Paulista (sem contar público espalhado nas ruas transversais. Foi o maior evento na avenida desde o início do governo Lula, mas abaixo das grandes manifestações pelo impeachment de Dilma, em 2016.
A louvada presença de quatro governadores foi mais demonstração de fraqueza do que de força, com ausências notáveis como Cláudio Castro, do Rio de Janeiro e do seu PL, e Ratinho Júnior, do PSD do Paraná. Castro, que viajou a Lisboa para compromissos oficiais, foi cobrado nas redes nos últimos dias e tratado como traidor por seguidores que o acusavam de se bandear para o PT. Nenhum governador do Nordeste ou Norte foi à avenida, nem mesmo o bolsonarista Antonio Denarium, de Roraima, estado em que o ex-presidente teve 76% dos votos e perdeu só em um município.
Com planos presidenciais, Ronaldo Caiado, de Goiás, e Romeu Zema, de Minas Gerais, usaram nas redes fotos no evento para mostrar suas credenciais direitistas mais do que qualquer apoio ao ex-presidente. Jorginho Mello, do PL de Santa Catarina, foi ao Instagram para passar a mensagem de que era ele quem estava em posição de estender a mão a um companheiro ferido: “Lealdade não é sobre fazer barulho. É sobre dar apoio, estar junto, em todos os momentos”, diz o texto, sobre a foto de um Jorginho sorridente e um Bolsonaro mais sério.
Único governador a discursar, Tarcísio de Freitas fez todas as reverências ao presidente que o projetou e reafirmou a lealdade em termos pessoais, mas do ponto de vista político louvou o que considerou avanços econômicos e administrativos do último governo. Mesmo ao falar de liberdade e censura, ligou os temas à imagem de gestor técnico que tenta impor por cima do seu bolsonarismo.
“O desafio da representatividade só vai ser vencido com liberdade. Liberdade de expressão, de pensamento, de manifestação. Sem nenhum tipo de censura. O desafio da segurança jurídica para que a gente tenha previsibilidade, trazer os investimentos que vão fazer a diferença no Brasil”, disse Tarcísio, em uma declaração que, com poucos ajustes, poderia ter saído da boca de Fernando Haddad. Ou de Alexandre de Moraes.
O ministro do STF, aliás, esteve presente, com seu nome ou sua sombra, mais nos primeiros discursos. O tom religioso da maioria das falas iniciais, a começar com a de Michelle Bolsonaro, mostrou a escolha de cultivar laços com uma parcela motivada do eleitorado mais do que um apelo ao público em geral. É sobre essa base que ele pretende manter a imagem de líder da direita e impor sua força nas eleições de 2024 e 2026.
A ex-primeira-dama fez o discurso mais aplaudido e que prendeu mais atenção, superando até o ex-presidente. Primeira a falar, ela iniciou com uma oração e depois emendou algo a meio caminho entre uma pregação evangélica e um discurso político, criticando a separação entre política e religião. Quando chorou, muitos na avenida choraram, gritaram.
O deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), apresentado como um Davi que se fortaleceu ao derrubar gigantes, manteve o tom religioso e a representação messiânica de Bolsonaro, assim como o senador Magno Malta, que subiu mais o tom contra o que considerou arbitrariedades contra pessoas de fé. Foi a preparação para o discurso do pastor Silas Malafaia, que investiu contra o STF, denunciou injustiças e perseguição, disse não ter medo, mas não usou metade da energia nem das acusações que marcam suas redes sociais, onde ataca o “ditador da toga”, Alexandre de Moraes.
Bolsonaro, finalmente, fez um de seus discursos mais convencionais. Repetiu pontos que vinha ensaiando em lives, disse ser inocente de golpe de Estado, de joias, de importunar baleias. As críticas ao Judiciário foram diluídas e indiretas, como a não deixar margem para acusações adicionais. Após incensar feitos do seu governo, fez um apelo ao apelo ao Congresso atual, não contra a agenda do governo Lula, mas em favor da anistia para os “pobres coitados” presos no 8 de janeiro.
“O que eu busco é a pacificação, é passar uma borracha no passado. É buscar uma maneira de nós vivermos em paz, não continuarmos sobressaltados. É, por parte do Parlamento brasileiro, uma anistia para aqueles pobres coitados que estão presos em Brasília. Nós não queremos mais que seus filhos sejam órfãos de pais vivos. A conciliação. Nós já anistiamos no passado quem fez barbaridades no Brasil. Agora nós pedimos a todos 513 deputados, 81 senadores, um projeto de anistia para que seja feita justiça em nosso Brasil”, disse o ex-presidente.
As estimativas mais otimistas colocam o número de congressistas presentes pouco acima de 100.
Além de apagar o passado, ele pediu votos para vereadores de direita este ano, mais do que para prefeitos. É um esforço público para manter uma base mobilizada e que possa pressionar de baixo para cima as estruturas políticas, com vistas a 2026, eleição a que ele se referiu dizendo que “o futuro a Deus pertence”. O ato deste domingo foi sua tentativa de ter um naco desse futuro, e os políticos presentes e ausentes fazem seus cálculos com essa perspectiva em mente.