
Danos irreversíveis causados por erros médicos durante uma cesariana e o conseguinte desamparo judicial levaram a médica Balbina Francisca Rodríguez Pacheco a pedir que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condene a Venezuela por violações de direitos fundamentais.
Balbina passou pelo procedimento em agosto de 1998, em uma clínica particular, quando gestava seu terceiro filho. Ela estava em uma gravidez de risco e teve complicações durante o parto.
“No transcorrer da cesárea, senti um estiramento muito grande, que não era normal. Eu já tinha experimentado duas cesáreas anteriormente. Me senti muito mal. Escutei o aparelho de controle de sinais vitais e, como sou médica, sabia perfeitamente que o alarme indicava algo grave. Perguntei ao médico, e ele me disse que tínhamos problemas, porque havia um acretismo placentário. Eu, neste momento, perfeitamente consciente, pedi que, se era assim, eu preferia ficar sem útero, mas viva, porque eu sabia o que isso significava. Eu pedi que, por favor, não me deixasse morrer”, narrou a médica aos juízes da Corte IDH, em audiência pública realizada na terça-feira (21/3).
O acretismo placentário é uma condição cuja característica principal é fazer com que a placenta se infiltre de forma anormal no útero, causando lesões e sangramento. De acordo com Balbina, mesmo sabendo dos riscos da condição, os médicos forçaram a saída da placenta, o que levou ao rompimento do útero e a uma hemorragia interna.
“Começaram a me transfundir sangue, porque minha hemoglobina passou de 11 [gramas por decilitro de sangue] para 6, em menos de meia hora. Me levaram para uma sala de recuperação e eu continuei sangrando, eu sentia que jorrava sangue. Fui levada à terapia intensiva. Com o tempo, minhas condições foram piorando. Chamaram uma equipe de cirurgiões que estava de plantão e eles notaram que eu tinha uma hemorragia interna, que seguia sangrando no abdômen e tinha grandes danos – artérias perfuradas, ureteres perfurados. Milagrosamente, sobrevivi a três intervenções, em menos de 24 horas”, narrou.
A depoente afirmou à Corte que, como consequência dos procedimentos, teve infecções hospitalares, insuficiência renal e sequelas motoras decorrentes de um acidente vascular cerebral.
“É um milagre que eu tenha resistido. Depois de quatro intervenções, finalmente consegui sair da clínica, em uma cadeira de rodas, deformada. Não conseguia me sustentar em pé, não podia falar, porque fiquei entubada, olhava para as pessoas e não lembrava do nome delas. Assim eu passei vários meses, acamada, sem poder me mexer e muito menos atender ao meu filho, que tinha acabado de nascer”.
Segundo Balbina, posteriormente foram diagnosticadas ao menos nove sequelas físicas decorrentes da cesariana malfeita. As sequelas psicológicas não foram mapeadas, diz ela, porque os médicos se negaram a emitir um laudo a respeito.
“As sequelas foram muitas. Eu passei de uma mulher ativa, de uma médica especialista, acostumada com o dia a dia de atender pacientes em casa, para alguém que tinha que se transportar em uma cadeira de rodas, andar acompanhada, carregar minha sonda para todos os lugares. Eu fiquei um ano literalmente na cama. Perdi metade da minha capacidade de trabalhar, entrei em ansiedade, depressão, tenho síndrome miofascial, que é uma dor crônica. Minha vida familiar está destroçada”, disse ela.
Quando enfim retomou minimamente sua rotina, Balbina apresentou uma denúncia penal contra os médicos. O processo jamais saiu da fase de instrução, devido a uma série de anulações processuais e porque juízes e promotores estranhamente faltavam às audiências. Depois de 13 anos de trâmite, a ação prescreveu e ninguém foi responsabilizado.
“Todos os caminhos empreendidos foram obstruídos por intervenção de juízes e promotores que, com ações torpes, negligentes ou algo ainda pior, com objetivo de favorecer os imputados para evitar o pagamento de indenizações importantes, impediram de distintos modos que a investigação avançasse para chegar a uma decisão definitiva. Eu jamais vi algo parecido”, declarou Mariano Patricio Maciel, defensor público interamericano e representante da vítima no caso.
O defensor destacou que o Estado falhou na obrigação de proteger a vítima. “Neste caso não se discute os atos de má conduta médica, as intervenções cirúrgicas necessárias ou as terríveis consequências e danos à saúde física dessa senhora. O caso se relaciona com a responsabilidade do Estado da Venezuela por não ter investigado e, por consequência, punido os autores da má prática médica que violaram os direitos humanos à saúde e à integridade física, no contexto de saúde sexual, reprodutiva e materna da nossa representada”, disse.
A comissária Julissa Mantilla Falcón, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), requereu a condenação do país por violações aos direitos às garantias judiciais, à proteção judicial, à integridade pessoal e à saúde.
“A ausência da devida diligência teve um impacto desproporcional à vítima por ser mulher, dado que as afetações do caso ocorrem por tratar-se de procedimentos resultantes de uma cesárea, tendo o Estado uma obrigação reforçada para investigar esse tipo de fato com a finalidade de evitar sua repetição”, afirmou a comissária.
Ao fim da sua fala, Balbina pediu justiça. “Me sinto violentada, tenho uma profunda decepção. Foram muitos anos sem ser ouvida. Por isso, eu peço à Corte Interamericana que faça justiça. Não estou pedindo nada mais que isso. Que haja uma reparação integral, porque eu ainda posso ser útil para a sociedade, apesar dos meus problemas”.
Os representantes estatais da Venezuela não comparecem à audiência. Tanto eles quanto os defensores de Balbina Rodríguez Pacheco têm um mês para apresentar à Corte IDH as alegações finais escritas.
Participam do julgamento os juízes Ricardo César Pérez Manrique (presidente, Uruguai), Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia), Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México), Nancy Hernández López (Costa Rica), Verónica Gómez (Argentina), Patricia Pérez Goldberg (Chile) e Rodrigo Mudrovitsch (Brasil).