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Falta de revelação por árbitro não significa parcialidade, dizem especialistas

Práticas internacionais podem nortear equilíbrio para evitar conflito de interesses e questionamentos na Justiça

Foto: Unsplash

O dever de revelação é um dos temas envoltos em mais controvérsias da arbitragem. Afinal, a confiabilidade dos árbitros é central para a credibilidade tanto do processo quanto do resultado. Casos que se desenrolam na Justiça brasileira, e também no Legislativo, trazem à tona o debate sobre até onde vai o dever de revelação dos árbitros – ou o que, de fato, pode impactar a imparcialidade deles ao analisar uma disputa. 

A expectativa de especialistas ouvidos pelo JOTA é que o país siga as orientações criadas em âmbito internacional, as construções doutrinárias e a própria experiência brasileira para essa definição. 

Conforme as regras da arbitragem, todo árbitro ou candidato a árbitro deverá avaliar quais as circunstâncias eventualmente existentes que poderiam colocar em dúvida a independência aos olhos das partes ou suscitar dúvidas razoáveis sobre sua imparcialidade. 

Existe uma tensão entre, por um lado, o direito das partes à revelação de circunstâncias que possam afetar a imparcialidade ou independência de um árbitro, e, por outro, a necessidade de evitar impugnações desnecessárias ou a posterior judicialização do tema. 

O que diz a legislação brasileira

Carlos Elias, advogado e árbitro, explica que mesmo os critérios existentes não são totalmente objetivos. “A imparcialidade pode ocorrer quando há uma relação econômica recente entre o árbitro e uma das partes do litígio. Não é qualquer vínculo que causa prejuízo à imparcialidade”, diz. Na visão dele, cada caso merece uma análise individualizada. 

Elias ressalta também que, diferentemente de um juiz, que para assumir a relatoria de algum processo é sorteado para tal, o árbitro é escolhido pelas partes. Assim, ele precisa ter conhecimento na matéria e ter a confiança dos litigantes, mas não a ponto de ser próximo demais para suscitar viés na decisão. Porém, precisa ser conhecido das partes, já que, de outra forma, não seria escolhido. 

Ainda segundo Elias, o árbitro, para ser lembrado e contratado, precisa estar nos eventos científicos, ter contato com os advogados. Sendo assim, não é incomum que o árbitro conheça as bancas de advocacia que representam as partes, por exemplo. Isso, por si só, não deveria ser motivo de desconfiança.

O problema existe  quando há uma relação econômica ou emocional entre o julgador e um dos envolvidos no litígio. Assim, para atestar a independência, seria preciso analisar a profundidade de cada relação, mesmo as reveladas.

“Não tem fórmula. Cada caso é distinto. A quebra do dever de revelação certamente tem consequência. Mas deve-se tomar cuidado com afastamento de  árbitros que não tenham revelado uma circunstância que em nada afeta o julgamento do caso”, comenta Elias. 

Ian Velásquez, advogado especialista em arbitragem, ressalta que imparcialidade e independência são fatores dos quais o árbitro deve se atentar durante todo o procedimento. Segundo ele, não apenas no início da arbitragem, mas ao longo de todo o processo, vale a pena revelar qualquer situação que o árbitro perceba que poderia gerar uma dúvida justificada sobre a sua independência ou imparcialidade. 

Ele também ressalta o artigo 14 da Lei de Arbitragem, segundo o qual o árbitro deve recusar a indicação caso tenha qualquer tipo de relação que possa se enquadrar nas hipóteses de impedimento e suspeição dos juízes. Esses aspectos estão previstos no Código de Processo Civil (CPC). 

Há impedimento de magistrados quando um dos advogados ou defensores é seu parente até terceiro grau ou cônjuge, se for herdeiro ou empregador de uma das partes ou sócio de uma empresa envolvida no processo, por exemplo. Já a suspeição pode ocorrer, entre outros motivos, quando ele é amigo íntimo ou inimigo de uma das partes no processo, se é credor ou devedor de algum envolvido ou ao receber presentes de pessoas com interesse na causa. 

Revelação não implica conflito de interesses

Velasques ressalta que os litigantes também devem colaborar com o dever de revelação. “As partes podem prestar informações ao árbitro para que ele faça uma checagem de conflito de interesse e possa revelar com mais eficiência se tem ou não alguma ligação com os envolvidos ou se até mesmo  se gostaria de renunciar”, explica. 

Nessa linha, há ainda o dever de investigação pelas partes, que devem checar, antes de aprovar ou rejeitar um árbitro indicado, se há o risco de o profissional apresentar algum nível de parcialidade que possa ser prejudicial ao julgamento. Assim, o questionamento deve acontecer antes do início da arbitragem, e não após a sentença – em uma ação pela anulação da decisão no Judiciário, por exemplo. 

Além disso, segundo Velasquez,  nem sempre a relação entre o árbitro e uma das partes se configura em conflito de interesse. “Muitas vezes, tratam-se de situações corriqueiras e sem nenhum impacto à sua independência e imparcialidade”, afirma.

Nesse sentido, as partes não poderiam, como às vezes acontece, explorar revelações de menor importância ou uma eventual falha do dever de revelação para trazer à tona uma nulidade sem que exista um conflito de interesse concreto.

Para lidar com esse tipo de situação, o Judiciário já reconhece a chamada “nulidade de algibeira”, que compreende situações em que a não relevação envolve um fato de menor importância, que não gera conflito,  mas que ainda assim é usado como artifício pela parte perdedora da arbitragem para tentar anular o resultado na Justiça.

Não é incomum o Judiciário identificar ações anulatórias com essas características e afastá-los. Isso foi observado no caso envolvendo o oncologista Raphael Brandão e a Esho, empresa de serviços hospitalares ligada à Amil para a qual ele prestava consultoria. 

Após ter o contrato  rescindido  pela empresa por não ter cumprido um compromisso contratual de não-competição, o médico instaurou uma arbitragem, mas foi derrotado. A sentença arbitral o condenou ao pagamento de multa de cerca de R$ 4 milhões.

Brandão tentou anular a decisão na Justiça, alegando que o árbitro indicado pela Esho não teria cumprido o dever de revelação ao omitir que havia dividido um escritório com a banca de advocacia da empresa cinco anos antes da arbitragem.

O argumento do médico, porém, não foi aceito pela Justiça. Em dezembro, a 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) manteve a sentença arbitral, por entender que a falta de revelação de um fato não necessariamente caracteriza má-fé do árbitro ou revela parcialidade. 

Além disso, os desembargadores entenderam que, nesse caso, os fatos apontados não seriam suficientes para indicar haver proximidade entre o árbitro e os advogados da Esho, além de não haver indícios de que o árbitro teria interesse em alterar o resultado da arbitragem.

Os magistrados também alegaram que as partes envolvidas no litígio têm o dever ético de investigar eventuais causas de impedimento ou suspeição dos árbitros, bem como revelá-las antes da decisão do tribunal arbitral ser proferida.

Melhores práticas internacionais

Para além da legislação vigente, dois documentos são comumente usados como balizas mais detalhadas sobre o tema: as diretrizes da International Bar Association (IBA, a comunidade jurídica global) sobre conflitos de interesses em arbitragem internacional, de 2014, e a nota da Corte Internacional de Arbitragem (ICC), da Câmara de Comércio Internacional, de 2019. 

As diretrizes da IBA têm ampla aceitação na comunidade arbitral internacional. Elas não têm força de lei, nem prevalecem sobre qualquer legislação nacional ou mesmo sobre regras arbitrais escolhidas pelas partes, mas são vistas como boas práticas. 

Um dos entendimentos da entidade é que o fato de ser exigida revelação não implica a existência de dúvidas acerca da imparcialidade ou independência do árbitro. 

Na tentativa de tentar estabelecer um guia, o documento incluiu listas de situações específicas que indicam se há justificativa, ou não, da revelação ou desqualificação de um árbitro. Essas listas se assemelham a um semáforo: vermelha, laranja e verde para situações de conflito evidentes, ambíguos ou inexistentes, respectivamente. 

Por exemplo, a vermelha estabelece como irrenunciável quando o árbitro tem interesse financeiro ou pessoal significativo numa das partes, ou no resultado da arbitragem. A vermelha renunciável, por sua vez, identifica situações sérias, mas não tão graves, como quando o árbitro prestou assessoria jurídica, ou deu parecer, a respeito do litígio a uma parte ou a uma afiliada de uma das partes. 

A laranja aponta casos como quando o árbitro foi nomeado, nos três últimos anos, em duas ou mais ocasiões por uma das partes ou por uma afiliada de uma das partes. A verde, por fim, enumera fatos que o árbitro não tem dever de revelar, como quando ele e o mandatário de uma das partes já atuaram juntos como árbitros.

A ICC exige que todos os candidatos a árbitro preencham e assinem uma Declaração de Aceitação, Disponibilidade, Imparcialidade e Independência. E recomenda que em caso de dúvida, o árbitro ou o candidato a árbitro deve optar por fazer a revelação.

Da mesma forma que a IBA, a ICC defende que uma revelação não implica necessariamente a existência de conflito. “Os árbitros que fazem revelações, ao contrário, consideram-se imparciais e independentes, apesar dos fatos revelados”, pontua.