Corte IDH

Vítima de violência sexual, Brisa Losada atua para mudar leis na América

Julgado pela Corte IDH, caso de Brisa Losada terminou com condenação para que a Bolívia mude legislação sobre o tema

brisa losada
Ativista Brisa Losada / Crédito: Reprodução/Una Brisa de Esperanza

Sentenças proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) marcam o início de um outro processo: o de implementação de medidas que reparem e evitem novas violações de direitos fundamentais, a partir de recomendações feitas pelos juízes e juízas do tribunal.

As ações devem ser encabeçadas pelos Estados violadores, mas também passam por esforços coletivos de organizações civis, legisladores e operadores do Direito, por exemplo. Ao fim, todos os países signatários da Convenção Americana devem se adequar aos novos parâmetros.

No caso Angulo Losada, em que o Estado da Bolívia foi condenado a mudar sua legislação sobre violência sexual, a própria vítima tornou-se protagonista dessas transformações.

Brisa de Angulo Losada, violentada sexualmente aos 16 anos pelo primo adulto, agora trabalha para que os países mudem suas leis em relação a crimes de violência sexual contra crianças e adolescentes.

Formada como advogada e neuropsicóloga, ela passou a acolher milhares de vítimas nas últimas duas décadas, a partir da fundação da “Uma Brisa de Esperança”, uma organização que oferece atendimento psicológico, jurídico e social de graça na Bolívia. 

Brisa também criou protocolos de atendimento a crianças e adolescentes e buscou disseminá-los com cursos, palestras e oficinas oferecidas a policiais e em escolas, por exemplo. O trabalho, no entanto, parecia não ser levado a sério antes da sentença da Corte IDH.

“Nós vínhamos capacitando policiais e professoras, implementando cursos sobre o que é violência sexual e sobre como lidar com vítimas quando elas rompem o silêncio. O problema é que ninguém nos levava a sério. Quando nos recebiam, parecia que estavam fazendo um favor a nós. Agora, depois da sentença, parece que a situação está mudando”, diz Brisa.

Ela destaca que a decisão é um marco sobre o tema. “De certa forma, começo a pensar que talvez aqui a história comece a mudar. Que todo o sofrimento e minha luta não foram em vão, porque teria sido mais fácil para mim ficar calada, fazer outras coisas em minha vida e tratar de não seguir com o processo. Ir à Corte não foi nada fácil. Foram ameaças contra minha vida, contra meus filhos, ter que viver escondida há mais de 20 anos, ter que viver no exílio. Mas a forma que me trataram, que me fizeram as perguntas, o respeito, a dignidade, me mostrou que sim é possível que meninas e meninos possam se apresentar a juízes que as tratem com respeito e dignidade”.

Uma das mudanças na história é que Brisa passou a atuar com legisladores para promover reformas em leis, a partir da decisão da Corte IDH. O trabalho já começou em países como Honduras, Peru, Colômbia, Argentina e Bolívia. No Brasil, deve chegar em breve.

O principal foco, segundo ela, é a tipificação do crime de violência sexual incestuosa. “O que busco é que todos os países possam reconhecer a violência incestuosa como um crime em si. Infelizmente, isso não é reconhecido, a nível mundial. Precisamos entender que é um crime diferente, com formas distintas de atuar. Mais de 80% dos casos desse tipo ocorrem no âmbito familiar, por exemplo, e maioria acaba silenciada. Se não identificarmos esses crimes, não tem como pensar em mudanças”, afirma.

Ela defende ainda que esse tipo de crime se torne imprescritível. “É muito doloroso para uma vítima saber que não pode ter justiça porque a própria demorou muito”, comenta.

Segundo Brisa, o trabalho com as vítimas faz com que a dor enraizada vire esperança. “O que me move é trocar uma lágrima por um sorriso. É saber que posso utilizar o que foi feito contra mim para criar esperança em outras pessoas, para abrir caminho para que seja um pouco mais fácil para outras. O que me faz acordar todos os dias é poder trabalhar com vítimas e mostrá-las que podem seguir adiante, que podemos fazer mudanças, propor reformas. Apesar de ser algo tão dolorido, escutar as histórias das vítimas é algo que me traz a esperança de que vamos mudar a história”.

Às vítimas, ela deixa um conselho: “Vocês não estão sozinhas, não importa se as pessoas não acreditam em você. Continuem contando a sua história, porque algum dia é essa história que vai salvar a vida de outra menina”.

Inspiração

A luta de Brisa inspira outras organizações na implementação da sentença da Corte. É o caso da Equality Now, uma organização não governamental fundada em 1992 para defender a proteção e promoção dos direitos humanos de mulheres e meninas.

“Nós demos conta que na América Latina, a nível legal, há um vazio normativo em relação às adolescentes. Por isso o caso de Brisa é tão importante, dentro da perspectiva da infância e de como as meninas de até 18 anos devem ter maior proteção. Estamos trabalhando com o judiciário na criação de protocolos, nos reunindo com distintos atores, por exemplo, com promotores e promotoras especializados em tema de gênero”, explica Barbara Jimenez, advogada e representante regional da organização para a América Latina e o Caribe.

Ela afirma que, por meio de profissionais multidisciplinares, a Equality Now tem dialogado com atores do Judiciário, inclusive no Brasil, tanto para implementar mudanças em leis quanto para capacitá-los. “Buscamos ter boas leis. É o principal para nós. O que buscamos não é só a transformação das legislações, mas melhorar a implementação dessas legislações. Melhorar as práticas e os estereótipos que são utilizados por funcionários e julgadores nesses processos. A ideia é melhorar o acesso à justiça, porque, como sabemos, muitos de nossos países convivem com a impunidade em casos de violência sexual”, diz a advogada.

Jimenez afirma que tem boas perspectivas de mudanças no tratamento de vítimas no continente, embora julgue que não seja simples. Ela reforça o consentimento como eixo central em casos de violência sexual, algo que também foi destacado pelos juízes da Corte IDH.

“Há que se fazer um trabalho de muita capacitação, porque não é preciso esperar que se modifique as normas para começar a interpretar sobre o consentimento e o não uso da força, porque já sabemos que muitos casos ainda se baseiam no uso da força adicional. Espero que as normativas sejam logo uniformizadas e que as pessoas entendam o que é o consentimento, principalmente os operadores do sistema judiciário e as próprias vítimas. Que todo mundo possa se empoderar e buscar e exigir a justiça que merece. Não será da noite para o dia, mas pouco a pouco colheremos frutos”, afirma. 

O caso de Brisa

Brisa foi violentada sexualmente aos 16 anos pelo primo, então com 26 anos, na cidade de Cochabamba, em 2001. 

Ela denunciou o caso às autoridades bolivianas no ano posterior, depois de os pais perceberem que ela estava reclusa, vomitava muito e tinha deixado de se alimentar. Antes de procurar a polícia para relatar as agressões, Brisa tentou suicídio e foi diagnosticada por psicólogos com depressão.

A denúncia às autoridades precedeu uma série de procedimentos julgados incompatíveis pelo tribunal, como a realização de oitivas feitas por médicos homens e exames ginecológicos considerados desnecessários, além de diligências judiciais que colocavam em dúvida a palavra da vítima.

O caso rendeu procedimentos penais em três instâncias, sem que nenhum deles tivesse desfecho efetivo. O processo durou mais de 20 anos e terminou prescrito, em setembro de 2022.

Em 23 de janeiro deste ano, a Corte julgou que a Bolívia é responsável internacionalmente pela violação de direitos de Brisa. Para os juízes do tribunal interamericano, o processo judicial ao qual Brisa Losada foi submetida e a consequente impunidade do acusado violaram os direitos à integridade pessoal, às garantias judiciais, à vida privada e familiar, à igualdade perante a lei e à proteção judicial e dos direitos da criança.

A Corte IDH considerou que a falta de investigação e julgamento em prazo razoável causou mais sofrimento a Brisa Losada, pois a obrigou a reviver situações traumáticas em diversos momentos do processo. Segundo a sentença, a impunidade do agressor decorreu diretamente de discriminação estatal à vítima em virtude do gênero e da idade.

No julgamento, o juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch apresentou um voto concorrente, no qual aprofunda o debate sobre a interação entre o Direito Penal e o de Direitos Humanos, a necessária adequação da tipificação em casos de violência sexual e a necessidade de se criar uma circunstância qualificadora para casos de incesto.