Corte IDH

Corte IDH manda Nicarágua soltar cinco presos em ‘condições desumanas’

Detidos citam prisões ilegais e reclamam de situação degradante na cadeia, como falta de água, comida e atendimento médico

presos em condições desumanas
Bispo Rolando Álvarez, condenado a prisão por se manifestar contra o regime do presidente Daniel Ortega / Crédito: Ramírez 22 nic/Wikimedia Commons

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) determinou que a Nicarágua liberte cinco pessoas presas em “condições desumanas” no país. As ordens foram dadas no fim de junho, em duas resoluções remetidas ao Estado.

Na primeira resolução, a Corte IDH mandou a Nicarágua soltar imediatamente quatro indígenas do povo Mayangna, detidos na penitenciária conhecida como “La Modelo”, na cidade de Tipitapa, desde 30 de agosto de 2021. 

Eles foram condenados por um massacre contra indígenas das etnias Miskito e Mayangna, no território indígena Mayangna Sauni, em 23 de agosto de 2021. 

Na ocasião, 11 pessoas foram assassinadas aos pés de um morro chamado Kiwakumbaih, localidade tradicional indígena onde eles levam a vida com atividades de subsistência, como caça, pesca, construção de canoas e, recentemente, garimpo. O caso ficou conhecido como o “massacre de Kiwakumbaih”.

De acordo com a denúncia levada à Corte IDH, integrantes da Polícia Nacional foram ao território logo após as mortes e conduziram a irmã de uma das vítimas a um escritório, onde ela teria sido forçada a apontar indígenas Mayangna como autores do crime. Ela teria recusado e identificado integrantes não indígenas da quadrilha denominada “Chavelo Meneses e Rodolfo Aguinaga” como responsáveis ​​pelo ato.

Na mesma linha, outros indígenas e familiares das vítimas fizeram uma denúncia pública, contra a quadrilha, que seria liderada por um homem mestiço identificado como “Isabel Padilla”, também conhecido como “Isabel Meneses”. Ele nunca foi preso.

Os policiais, no entanto, ignoraram os relatos dos familiares. Dias depois do crime, eles perseguiram e prenderam ao menos 14 indígenas na região do território Mayangna Sauni. Todos acabaram indiciados como autores do massacre, o que foi corroborado pelo Ministério Público.

Representantes dos indígenas afirmam que houve uma série de violações nas prisões. Eles citam, por exemplo, que não houve mandados e que as testemunhas foram ouvidas sem a presença de um intérprete da língua Mayangna, razão pela qual se alega que os depoimentos foram alterados pelos policiais.

Além disso, os indígenas ficaram por meses detidos em uma delegacia, sem contato com familiares ou advogados. A defesa diz que os quatro presos conseguiram provar que estavam longe da cena do crime, mas isso foi ignorado pelas autoridades. 

Quanto às condições de prisão, os representantes afirmam que os indígenas tiveram assistência médica negada, apesar de sofrerem de doenças graves, como problemas de fígado, do coração e catarata. Em uma ocasião, um dos presos teria solicitado uma injeção, mas a enfermeira teria quebrado o frasco e administrado apenas água destilada.

Os advogados relatam ainda que seus clientes estão em celas escuras, cheias de mosquitos, e ficam 24 horas com pés e mãos algemados – o que os impede de comer adequadamente, beber água e fazer necessidades fisiológicas. Os indígenas também estão incomunicáveis.

Ao analisar o caso, os juízes da Corte IDH consideraram que a situação é de “extrema urgência e gravidade” e pode provocar violações irreparáveis aos direitos à vida, integridade pessoal, saúde e alimentação adequada – por isso a ordem imediata à Nicarágua é necessária.

O colegiado levou em conta a falta de respostas a respeito dos indígenas por parte do Estado. “Existem diferentes fatores de risco que tornam a adoção das medidas apropriada, tendo em vista as circunstâncias em que foram realizadas as detenções, a notória falta de informação do Estado sobre as condições de privação de liberdade dos supostos beneficiários, sua situação atual de detenção incomunicável, bem como o alegado estado delicado de saúde e a falta de acesso a medicamentos e cuidados de saúde por eles requeridos”, diz trecho da resolução.

Os juízes também ponderaram sobre os efeitos das prisões a toda a comunidade Mayangna. “A respeito dos indígenas privados de liberdade, a Corte considerou que, dada sua relação especial com o território e sua comunidade, constituem um grupo desproporcionalmente afetado pela pena privativa de liberdade. Assim, a referida medida [as prisões] representa um obstáculo ao pleno exercício do direito à identidade cultural dos indígenas, cujos efeitos se estendem a toda a comunidade. Portanto, a Corte entendeu que a separação do indígena de sua comunidade e de seu território, elementos constitutivos de sua identidade cultural, pode acarretar sofrimentos profundos que vão além do inerente à permanência na prisão e repercutem negativamente nos membros da a comunidade indígena.”

A Nicarágua tem até 10 de julho para informar à Corte a situação dos presos. Caso não cumpra as obrigações, o Estado pode ser denunciado à Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos e ficar suscetível a penalidades políticas

Soltura de bispo

Na segunda resolução, a Corte IDH ordenou à Nicarágua que liberte o bispo Rolando Álvarez, condenado a 26 anos de prisão por se manifestar contra o regime do presidente Daniel Ortega, no poder desde 2007, e por se negar a deixar o país.

Álvarez chegou a ser solto na segunda-feira (3/7), após negociações entre o governo nicaraguense e o Vaticano, mas voltou a ser preso na quarta (5/7), de acordo com a agência Reuters.

O religioso está detido desde agosto de 2022 em uma penitenciária de segurança máxima conhecida como “El Infiernillo” (O Inferninho). Ele foi um dos líderes de uma onda de protestos contra Ortega pelo país, iniciada em 2018. Por isso, foi acusado de traição à pátria.

Conforme a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o sacerdote está submetido a “graves condições de detenção”, destinadas a todos os considerados “presos políticos” da Nicarágua. 

“Essas condições incluiriam interrogatórios constantes, acesso insuficiente a alimentos em quantidade e qualidade, isolamento, falta de exposição à luz solar, temperaturas extremas e falta de acesso a atendimento médico adequado. Além disso, os familiares das pessoas privadas de liberdade estão sendo submetidos a atos de assédio policial no momento das visitas, incluindo toques indevidos, buscas extensas e ameaças de represálias contra os detentos caso denunciassem publicamente o ocorrido”, diz um trecho da resolução.

Ainda segundo a CIDH, além de meramente política, a prisão também é fruto de um “contexto sistemático de perseguição, criminalização, assédio, cerco policial, declarações estigmatizantes e, em geral, atos de repressão contra membros da Igreja Católica na Nicarágua, devido ao seu papel de mediação no Diálogo Nacional em 2018 e em retaliação por seu papel crítico na denúncia de violações de direitos humanos”.

Diante das denúncias, a Corte considerou que há evidências de violações em curso contra Álvarez e, portanto, necessidade de medidas urgentes. Os juízes lembraram que o bispo foi condenado à “perda perpétua dos bens direitos do cidadão e a perda da nacionalidade nicaraguense”, um dia depois de se negar a embarcar em um avião no qual se pretendia expulsá-lo do país.

“A Corte considera necessário enfatizar que essas sentenças aumentam a situação de vulnerabilidade em que ele se encontra, por estar privado de liberdade e sob custódia de um Estado que lhe nega a devida proteção. O exposto aumenta e agrava ainda mais o risco aos seus direitos à vida, à saúde e à integridade pessoal, e contribui para a situação urgente e grave, suscetível de consequências irreparáveis, que fundamenta a necessidade da adoção de medidas provisórias. Esta situação se enquadra no contexto de criminalização de pessoas que criticam o atual governo da Nicarágua”, escreveu o colegiado.