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10 obras literárias que todo estudante de Direito deveria ler

Objetivo é apresentar obras com narrativas incomuns, que ponham em xeque noções jurídicas e institucionais básicas

obras literárias
Crédito: Pixabay

Deus, odeio listas. Nunca estão completas. Nunca têm o que eu acho essencial ou mais importante. Sempre há uma bobagem anexa. Como eu, que sempre odiei listas, poderia escrever uma de dez obras literárias que todo estudante deveria ler?

A primeira dificuldade é que podemos encontrar aspectos jurídicos em qualquer obra literária. Duvida? Que tal examinar a validade do contrato assinado entre Anastasia e Grey, em “Cinquenta tons de cinza”, ou despotismo de Panem e o direito de resistência dos distritos em “Jogos Vorazes”, ou a validade da linha sucessória de Daenerys em “Uma canção de fogo e gelo”?

Daí já seria difícil elaborar uma lista de livros que todo estudante de direito deveria ler, mas acrescenta-se o fato de que há obras literárias clássicas frequentemente abordadas e citadas nos cursos de graduação. “Antígona”. “O mercador de Veneza”. “Crime e castigo”. Cada uma imprescindível e atemporal para o jurista, verdadeiros marcos no significado do Direito.

Essas obras, porém, já são familiares ao aluno, que, ainda que pela força da repetição, saberá do que se tratam. E aí, do que adianta escrever uma lista óbvia? Quem nunca pensou, ao ler  uma lista: “Ah, mas esses livros eu já conheço…”

Nesta lista, tentarei, portanto, evitar o óbvio, mas ainda assim apresentar obras literárias importantes que tenham em seu cerne questões jurídicas e sociais. Obras que, além disso, não simplesmente se reportem aos códigos e às leis, mas sejam capazes de ir muito além, examinando os efeitos do direito sobre os homens. Como tentamos fazer no curso de Extensão de Direito e Literatura da UFRJ, o objetivo é apresentar obras que apresentem narrativas incomuns, que ponham em xeque nossas noções jurídicas e institucionais básicas.

1) Pai contra mãe, de Machado de Assis

Escrito por Machado em 1906, foi considerado um dos 100 melhores contos brasileiros do século XX. Trata da história de Cândido Neves, um caçador de escravos com filho recém-nascido que se vê em graves dificuldades financeiras. Logo no primeiro parágrafo, Machado nos mostra a que veio ao lembrar da máscara de metal colocada no rosto dos escravos para que não bebessem: “Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco”.

Na sua luta pela sobrevivência, Cândido encontra outra personagem que também busca proteger sua família. Os resultados de cada um, porém, serão muito diversos devido ao grotesco das instituições jurídicas brasileiras, que constroem escravos e capatazes, sacrificando uns em prol de poucos.

2) O alienista, de Machado de Assis

Um dos contos mais conhecidos de Machado de Assis, “O alienista” trata da criação da “Casa Verde”, o primeiro hospício de Itaguaí, pelo médico Simão Bacamarte. O Dr. Simão acreditava ter encontrado a certeza científica do que seria a loucura, e, com base nos seus métodos neutros (?), passa a internar à força indivíduos insanos na Casa Verde.

Porém, cada vez mais moradores da cidadezinha vão sendo internados, restando do lado fora apenas 25% da população. Claro, isso não ocorre sem nenhuma revolta, havendo uma verdadeira “queda da Bastilha em Itaguaí”.

Além da ridicularização do movimento popular feita por Machado e os maus hábitos da câmara local que por si só já valeriam a leitura, é interessante notar como nenhum habitante, nem os revoltosos, indagam qual o valor da ciência para ditar a ética das ações humanas. Diz o líder da revolução: “pode entrar no ânimo do governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a pode eliminar, está ao menos apto para discriminá-la, reconhecê-la? Também não; é matéria de ciência”.

E assim se permitem absurdos por se pautarem as leis dos homens na “neutralidade” da ciência, sem bases morais e sociais.

3 e 4) “Diário do hospício” e “Cemitério dos Vivos”, de Lima Barreto

Do alienista para o alienado. “Diário do hospício” foi escrito por Lima Barreto enquanto esteve internado em um hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro. “Cemitério dos vivos”, por sua vez, é a história inacabada baseada nas internações de Lima. A leitura de ambos os títulos mostra diversos pontos de conexão entre ficção e realidade, loucura e sanidade, fazendo-nos duvidar do diário e acreditar no romance inacabado.

Lima relatou minuciosamente o que viu e sentiu no hospício. Como ele bem narra, a loucura acomete a todos, ricos e pobres, de várias cores. Porém, a recepção dentro da instituição não possui a mesma igualdade. Ter conhecidos e dinheiro era essencial para obter melhores acomodações e tratamento. Lima olha criticamente para estas condições e também para a ciência da época.

Mas, para além disso, o próprio convívio com a loucura, que deixa o autor perplexo, o triste espetáculo daqueles homens presos, mudos, gritando, dizendo coisas desconexas, a humilhação pública de ser internado, de ficar nu, compõem o enredo do livro – e o passam também a ser a vida de Lima. Mesmo criticando o ambiente e o tratamento, estes impregnam-se no autor-paciente: “Esta passagem várias vezes no Hospício e outros hospitais deu-me não sei que dolorosa angústia de viver que parece ser sem remédio a minha dor”.

5) Na Colônia Penal, de Franz Kafka

O conto “Na Colônia Penal”, de Kafka, acompanha apenas quatro personagens: o explorador, convidado para conhecer uma colônia penal nos trópicos; o comandante; o prisioneiro; o guarda. O comandante leva o explorador para mostrar como a justiça é feita naquele canto do mundo, e apresenta-lhe uma máquina que cumpre perfeitamente qualquer sentença. Trata-se de um aparelho que, durante 12 horas, escreve no corpo do condenado o seu crime, matando-o e torturando-o lentamente.

O conflito está lá desde o início, com um comandante animadíssimo em explicar o funcionamento da máquina e um explorador primeiro desinteressado e depois obviamente horrorizado.

Através dessa caricatura grotesca, Kafka nos faz lembrar de homens da lei que amam mais a máquina e seus processos do que os homens em si. Mas fuja do impulso de simpatizar com o explorador… Ele e seus bons costumes e bom direito serão assim tão diferentes dos do comandante? Será que reformas e modificações jurídicas de fato alteram a ordem das coisas? Aliás, aproveite e volte para a obra do item 1. E depois vá para o item 7.

6) O senhor das Moscas, de William Golding

O que mais vale em um governo: inteligência, força ou carisma? Pois os três personagens principais dessa magnífica obra representam cada uma dessas qualidades. William Golding, ganhador do Nobel de 1983, narra como um grupo de crianças naufragado em uma ilha deserta precisa sobreviver enquanto espera o resgate. Porém, quem deve liderar e como? E o que fazer quando uma ameaça desconhecida está à espreita? E o que fazer quando nem todos concordam? O livro levanta inúmeras questões, como democracia, governo, convivência, alteridade, doenças mentais.

7) O conto da aia, de Margaret Atwood

Em alta devido à série de streaming homônima, o livro de Atwood é um romance distópico, no qual os EUA tornaram-se um Estado totalitário religioso. As mulheres foram categorizadas de acordo com a função social a ser cumprida: esposa, empregada, prostituta e… reprodutora. A personagem principal é uma mulher reprodutora, que a cada dois anos é alocada em uma casa para ser engravidada (estuprada), gerar a criança e ir para a casa seguinte.

Escrito à época da reação social conservadora contra a decisão da Suprema Corte Americana de liberação do aborto no caso Roe vs. Wade, Atwood nos convida a refletir sobre quem faz as leis, quem se beneficia destas e sob qual pretexto. Afinal, todos queremos uma sociedade melhor. Mas o que é melhor? “Melhor não nunca significa melhor para todos… Sempre significa pior, para alguns”.

8) Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus

Escrito na década de 1950, o Diário de Carolina Maria de Jesus retrata o dia a dia na favela do Canindé, em São Paulo, e toda exclusão social decorrente de sua condição de mulher, negra, catadora de papel, favelada, com três filhos para criar em uma luta constante contra a fome. Carolina narra as brigas na favela, o abuso do álcool, a violência doméstica, o racismo perpetrado por homens da lei e o fato de que o Estado só ali entrava para reprimir a população.

Essa vida à margem da sociedade, que caracteriza as favelas como lugar de inclusão (mantendo mão de obra barata próxima das classes ricas) e exclusão (sem fornecer qualquer aparato estatal ou benefício social que não seja repressão), foi percebida com perfeição por Carolina. O nome do livro mostra como a autora se sentia ao ir para os bairros de classes média e alta: como na sala de estar de uma casa, decorada e bonita, enquanto os moradores das favelas, como meras coisas, deveriam ser colocados em quartos de despejo.

9) 1984, de George Orwell

“Os melhores livros (…) são aqueles que lhe dizem o que você já sabe” – isso é o que pensa Winston ao ler um livro que finalmente lhe explica como funciona o Estado de Oceânia. Winston é funcionário do partido que controla Oceânia de forma totalitária, observando o tempo todo seus cidadãos: seus movimentos, seus dizeres, suas expressões faciais até. Essa inexistência de privacidade, essa atmosfera sufocante, a total ausência de liberdade de pensamento, fazem Winston desejar derrubar o Grande Irmão, amar, envolver-se com uma mulher (sexo e amor são proibidos).

Orwell escreveu “1984” em 1948, após assistir à ascensão do totalitarismo nacional-socialista e soviético, que também buscavam dominar integralmente os seus cidadãos, até mesmo na sua esfera de pensamento. O que Hannah Arendt criticou filosófica e historicamente em “As origens do totalitarismo”, Orwell criticou em formato literário. Neste mundo de controle total e governo por meio do terror, a luta não é pela sobrevivência – Winston sabe desde o início que vai morrer -, mas sim para continuar humano.

10) Poema em linha reta, de Fernando Pessoa

Este poema ajudará o aluno a conhecer o Direito, não porque trate de temas jurídicos e, sim, porque trata de um certo tipo de jurista muito comum.

Para todo ser humano acontece de “enrolar os pés publicamente nos tapetes das etiquetas”, de deixar por fazer ou fazer mal feito trabalhos e petições, de não entender, afinal, como funcionam os direitos reais (ainda quero saber), de serem reprovados aqui ou ali. Todos vocês passarão por isso. Se esforcem ao máximo, mas falhar faz parte.

E fará parte também trabalhar ao lado de pessoas que fingem nunca terem falhado. Bem-sucedidos e impolutos, que devem, por sua santidade jurídica, serem obedecidos e admirados “todos eles príncipes – na vida…”. Para isso, basta uma aprovação em concurso, um escritório com nome na porta ou um título acadêmico. E o problema maior é que esta vaidade e hipocrisia cegas afetam o exercício profissional. Acabamos nós, seres humanos, vis e errôneos, julgados por semideuses.

Porém, como quase todas as obras acima mostram, as maiores injustiças e atrocidades podem surgir dos seres humanos que se dizem excelentes, neutros e conhecem o que seja o bem. Justamente quando não admitimos nossas próprias falhas é que se abrem as portas para males muito maiores. Por isso, desconfiem sempre: dos outros e de si mesmos. E quando você achar que está resolvido, seguro, entendedor do que seja correto ou não, volte para o item 1 dessa lista.

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