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Quem é responsável? Elementos do debate sobre regulação de plataformas no Brasil

Artigo 19 do Marco Civil da Internet volta ao foco da agenda de regulação

Marco Civil da Internet
Crédito: Unsplash

O Marco Civil da Internet é a lei que regula a internet no Brasil, proporcionando de forma clara e precisa os direitos e deveres dos usuários, provedores e provedores de conteúdo. Dentro do marco, existe um regime específico de responsabilidade de intermediários, aqueles que fornecem acesso à rede de computadores, armazenam e transmitem informações, e oferecem serviços online. Como será discutido abaixo, esse regime de responsabilidade foi desenhado para estimular o crescimento e o uso da internet no Brasil. Esse modelo regulatório tem um objetivo claro: promover o livre exercício de liberdades fundamentais e contribuir para o desenvolvimento econômico.

A problemática é bastante simples. É inevitável que haja conteúdo danoso produzido pelos usuários de internet, como imagens ilegais, injúrias raciais, comunicações criminosas, entre outros. O fato é que a internet será invariavelmente usada também para fins que são danosos, tanto civil quanto criminalmente. Nesses casos, havia até o Marco Civil da Internet uma grande discussão sobre quem seria responsável por esses conteúdos danosos, se seriam os usuários que produziram o conteúdo, mas cuja responsabilização é mais difícil por conta dos entraves à identificação e à produção difusa desse conteúdo; ou se caberia responsabilizar os provedores de conteúdo, as ditas “plataformas”, como as mídias sociais, que hospedam e disponibilizam essas informações aos demais usuários.

Esse debate foi definido no artigo 19 do Marco Civil, que criou o regime geral de responsabilização do indivíduo e a responsabilização excepcional dos provedores.

A importância do artigo 19 do Marco Civil da Internet

O artigo 19 estabelece que provedores de conteúdo na internet só podem ser responsabilizados por conteúdo de terceiros se descumprirem ordem judicial específica de remoção. Este artigo confere um grau necessário de proteção legal aos provedores de conteúdo na internet, pois estabelece que, na maioria das vezes, tais provedores só podem ser responsabilizados por conteúdo produzido por terceiros se forem ordenados a removê-lo e não o fizerem.

Por outro lado, o artigo 19 não preclui o direito dos provedores de conteúdo a tomar as medidas necessárias para garantir o cumprimento dos termos e condições da lei e respeitar os direitos de terceiros. Por exemplo, as mídias sociais se valem dos seus termos de uso para remover conteúdo incompatível com o tipo de serviço que elas prestam ou para mitigar danos graves a usuários, em casos flagrantes. É o caso, por exemplo, do Instagram, que remove nudez explícita porque é incompatível com a natureza do serviço que a mídia social visa prestar, ou do Twitter, que já removeu publicações que incitam violência iminente.

Em muito se atribui o ambiente vibrante e diversificado que encontramos hoje na internet como resultado dessa estrutura regulatória, que não sobrecarrega as plataformas e oferece incentivos para os usuários produzirem conteúdo livremente. Essa estrutura permitiu a criação de um cenário digital expansivo, onde indivíduos e empresas podem compartilhar suas ideias com um público global sem medo de censura ou retaliação jurídica das plataformas. A manutenção do ambiente de convívio online é majoritariamente conduzido pelo regime privado e ágil das plataformas, sem acionar desnecessariamente o judiciário, que é muito mais lento e custoso. Essa facilidade permite o regime de moderação de conteúdo que temos hoje, que, apesar de haver muitas críticas necessárias a esses mecanismos, que abordaremos em outra oportunidade, assegura a responsividade ágil desses serviços.

Responsabilização e riscos identificados

A opção de responsabilização mais intensa para as plataformas carregaria dois efeitos indesejados. Primeiro, temos o chamado “chilling effect”, ou efeito inibidor. Ao empurrar para os provedores a responsabilidade por todo conteúdo danoso produzido pelos usuários, a empresa será obrigada a tomar medidas bastantes restritivas para minimizar o prejuízo causado por postagens de terceiros. Ou seja, a tendência é que os provedores implementem soluções que diminuam a capacidade dos usuários de se manifestar livremente, visto que quanto maior o grau de liberdade dos usuários, maior o risco da produção de terceiros ser danosa e essa responsabilidade jurídica recair sobre os serviços do provedor.

Para conter esse tipo de manifestação, as empresas podem, por exemplo, aumentar a filtragem de publicações de usuários. É importante frisar que muitas delas já fazem isso com alguns casos extremos, como terrorismo e pornografia infantil. Contudo, as evidências mostram que já com esse uso restrito de filtragem, muitas formas de comunicação acabam indevidamente censuradas. Um exemplo famoso é o caso de um pai que tentou contatar um médico, durante o período de isolamento da pandemia, para tratar um problema dermatológico de seu filho pequeno. Essa comunicação foi instantaneamente bloqueada pelo provedor de serviço, que entendeu que aquelas imagens enviadas ao médico se tratavam de pornografia infantil.

Segundo, há um importante impacto econômico. A internet gera valor no volume da circulação de informações, o que chamamos aqui de “conteúdo”. Essas informações podem ser serviços, entretenimento, comunicações pessoais – essencialmente tudo que fazemos online. A adoção de um regime que empurre as plataformas para um espaço de diminuir o volume de informações circulando pode empurrar o ambiente digital a ser também menos rentável àqueles que participam.

Para tornar o exemplo menos abstrato, imagine uma internet onde você não consegue compartilhar as fotos de aniversário do seu filho porque a temática era “homem aranha” e a empresa prefere não assumir o risco jurídico de haver uma violação de direito autoral na foto. Imagine uma internet onde fazemos muito menos porque os nossos canais de comunicação suportam muito mais riscos.

Conclusão

As propostas anunciadas pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, colocam na mira o atual regime de internet, provavelmente com a intenção de aumentar a responsabilidade sobre os provedores.

O artigo 19 do Marco Civil é parte importante do marco legal que rege os provedores de conteúdo na internet. Ao proteger os provedores da responsabilidade por conteúdo de terceiros, permite que o ambiente online criativo e vibrante que temos hoje floresça sem medo de censura ou retaliação. Também é um aspecto relevante do quadro jurídico que garante a criatividade e a liberdade de expressão online. Por óbvio, o que se defende aqui não é a impunidade absoluta de provedores de internet e conteúdo, que poderiam se beneficiar da mais absoluta complacência com os problemas de interesse público que ocorrem em seus serviços.

O que se aponta é que o regime atual de responsabilização de intermediários surge como um desenho institucional amadurecido após muitos anos e que teve uma importância enorme em trazer o desenvolvimento da internet que temos hoje. No aperfeiçoamento da moderação de conteúdo, não podemos jogar fora o bebê com a água do banho – ou seja, não podemos sucatear esse regime passando medidas que de alguma forma invertam a lógica que favorece liberdades fundamentais e desenvolvimento econômico. O regime de responsabilização dos provedores e maior moderação de conteúdo, se vier, só pode ser considerado como um quadro de altíssima excepcionalidade e com delimitações jurídicas mais específicas.