Regulação e Novas Tecnologias

Tokenização imobiliária: explorando as possibilidades legais

Até o mercado imobiliário, historicamente conservador, está quebrando padrões tradicionais

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Crédito: Unsplash

A digitalização da economia não é hype, é real. Ela vem ocorrendo principalmente por meio dos tokens[1] que revolucionam o mercado econômico atual. Os modelos de negócios que utilizam esses ativos virtuais[2] – libertos dos conceitos operacionais burocráticos – têm como atrativos a segurança e a agilidade, o que contribui para a adesão social dessa nova forma de consumo.

Neste sentido, até o mercado imobiliário, historicamente conservador, está quebrando os padrões tradicionais com a introdução de tecnologias disruptivas e modelos de negócio inovadores, o que vem permitindo o acesso da população mais vulnerável ao sonho da moradia própria.

Com efeito, segundo pesquisa Datafolha[3], para 87% da população brasileira, o maior sonho de consumo é a casa própria. Entre os mais jovens com 21 a 24 anos, o percentual chega a 91%, enquanto na faixa etária de 60 anos ou mais o percentual é de 81%. Por outro lado, o percentual de quem deseja ter o imóvel próprio é maior entre a população das classes D e E (92%), quando comparado à classe A (70%), e às classes B (80%) e C (88%). Portanto, o setor está passando pela sua mais relevante ressignificação: a transformação da nossa forma de habitar.

Este cenário não foge às dificuldades inerentes à aquisição de uma propriedade particular, cujo processo é regado de trâmites legais e burocráticos. Dentre elas, por exemplo, tem-se a notória barreira financeira imposta aos adquirentes, que, geralmente, passam por uma severa análise de risco e de perfil econômico, sobretudo, na concessão de crédito por meio de financiamento imobiliário. Sem falar, é claro, no tempo de liberação do valor financiado pelo banco – ultrapassa dois meses em alguns casos, fator que desestimula o vendedor a aceitar este modo de pagamento.

Não obstante a recente modernização da Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos)[4], por força da Lei 14.382/2022, que trouxe, por exemplo, a inclusão do Sistema Eletrônico de Registros Públicos (Serp), bem como o lançamento da plataforma e-notariado[5], ocorrido em abril de 2019 e regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio do Provimento 100/2020, o Brasil[6] e a maioria dos países ainda estão distantes de um sistema registral que proporcione o nível de agilidade que os tokens conferem nas transações imobiliárias operadas por meio da blockchain. A própria falta de aderência e de adaptação unânime dos registros imobiliários e tabelionatos do país são indícios de que há verdadeiras travas à modernização, que segue a lentos passos.

Portanto, com o propósito de solucionar esta dor do mercado, são cada vez mais comuns iniciativas disruptivas que possibilitam, por meio de tokens, a compra de apenas uma fração de um imóvel, permitindo, ainda, gradualmente, adquirir as frações restantes até alcançar a integralidade do bem. Este processo simplifica os trâmites entre comprador e vendedor, dispensando análises mais aprofundadas de crédito, não só em razão da redução do montante do investimento financeiro envolvido, mas também por serem realizadas sem financiamento ou com recursos próprios.

Neste cenário, surge o seguinte questionamento: como os tokens imobiliários funcionam? Seria juridicamente possível a aquisição do direito real de propriedade através da compra de um token?

Antes de tudo, importante consignar que, no Brasil, no âmbito do direito imobiliário, inexiste qualquer normativo que trate especificamente sobre a aquisição de propriedade imobiliária, ou de seus respectivos direitos, por intermédio de ativos digitais. Diante desta escassez legislativa, tem sido bem desafiador para os juristas adequarem os normativos existentes que regulamentam o setor à nova realidade.

Por exemplo, como harmonizar a venda de frações de imóveis por NFTs com a obrigação legal de, para haver transferência da propriedade de um bem imóvel, ser registrado o título translativo em sua matrícula[7] perante o Registro de Imóveis competente? Não à toa, é muito comum ouvirmos a expressão popular “quem registra é dono!”.

Não se pode olvidar, ainda, que o Código Civil determina que a validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais[8] sobre imóveis que superem o valor equivalente a 30 vezes o maior salário mínimo vigente no país[9] fica condicionada à lavratura de escritura pública[10].

Para além do exposto, outras exigências legais são aplicáveis às operações imobiliárias. Embora ainda prevaleça um cenário tradicional repleto de requisitos normativos e de morosa implementação tecnológica pelos cartórios e instituições governamentais – que constituem, por conseguinte, verdadeiros obstáculos ao desenvolvimento do modelo de negócio de aquisição imobiliária tokenizada no Brasil –, há empresas do setor que vêm encontrando soluções criativas para destravá-lo.

Foi por esse caminho que seguiu a empresa Netspaces[11], organização que atua como plataforma para a criação, transação e gestão de propriedades digitais[12] e que vem transformando a propriedade física em propriedade digital com o uso da tecnologia blockchain[13]. A empresa construiu um arranjo jurídico que culminou em um forte vínculo bidirecional entre a matrícula e o token, de modo que um aponta para o outro: a matrícula possui registrado qual o NFT que passou a conter direitos relativos ao imóvel, enquanto o NFT indica (e demonstra) a qual matrícula o imóvel está vinculado. Após criar um laço entre a representação digital do imóvel e sua existência física, a partir daí, sim, viabiliza que o agora proprietário digital passe a vender, por meio da blockchain, o token que carrega direitos sobre seu imóvel, de forma fracionada ou integral.

Essa nova forma de venda e aquisição de propriedades desenvolvida pela empresa resultou no Provimento 38/2021[14] da Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), que trouxe os requisitos para lavratura e o registro de escrituras públicas de permuta de bens imóveis com contrapartida de tokens/criptoativos, além de refletir a preocupação do Poder Judiciário em acompanhar as inovações do mercado imobiliário e abrir espaço ao surgimento de novas soluções benéficas para a população. Seguindo movimento similar, a Corregedoria Geral de Justiça do Rio de Janeiro reconheceu[15] o uso de ativos digitais em escrituras públicas que visem permuta de imóveis, estabelecendo diretrizes de observância obrigatória para essas operações no Estado, o que inclui a exigência de comunicação ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

Note-se, no entanto, que o modelo de negócio da Netspaces e os provimentos acima mencionados deixam claro que o token não se refere a direitos reais sobre o imóvel, mas, sim, a direitos obrigacionais, que acabam por conferir ao proprietário digital várias das faculdades do proprietário registral. Além disso, também é possível que o detentor de 100% de um token possa, se quiser, realizar a permuta do ativo pela propriedade registral do imóvel que aquele representa, passando, aí sim, a tratar-se de direito real.

Em outras palavras, todas as exigências legais apresentadas para a aquisição do direito real de propriedade imobiliária no Brasil deverão ainda ser cumpridas de forma tradicional, sendo o referido modelo de negócios um facilitador para aqueles que pretendem a aquisição integral e/ou gradual do imóvel. A plataforma permite, também, que a compra do NFT seja financiada por um banco ou fintech e que a alienação fiduciária se constitua sobre o próprio token, muito embora o comprador, nesses casos, passe a habitar o imóvel digitalizado. Desta forma, mais uma vez, permite-se a redução dos extensos procedimentos de constituição (e excussão) da garantia fiduciária de imóveis, porquanto o procedimento seguido será o do Decreto-Lei 911/1969, que trata de bens móveis.

Pelo exposto, estamos presenciando o nascimento de um novo mercado imobiliário inovador e disruptivo, que promete ajudar a solucionar o problema habitacional do país. Ainda que estes novos modelos de negócio encontrem dificuldades iniciais para se desenvolverem, com a devida resiliência e boas estratégias legais, é possível que se conquiste um espaço cada vez maior para a consolidação de alternativas propiciadas pelo uso de tecnologia de ponta somada à segurança de institutos já consolidados e conhecidos por todos.

Fato é que a tokenização de ativos imobiliários está transformando a forma de aquisição do imóvel próprio e realizando sonhos, outrora distantes, de uma grande parcela da população brasileira, restando flagrante que estamos diante de verdadeira (r)evolução na forma de adquirir bens imóveis por meio da blockchain.


[1] Os Tokens, em termos gerais, são unidades digitais de valor, que existem como entradas de registro em uma Blockchain, na qual são passíveis de transferência de modo descentralizado. Possuem as mais diferentes formas, podendo ser usados como Criptomoedas ou para codificar dados exclusivos. Token – Glossário – Binance. Disponível em: https://academy.binance.com/pt/glossary/Token , acesso em 31/10/2022.

[2] LEI Nº 14.478, DE 21 DE DEZEMBRO DE 2022, “Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se ativo virtual a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento, não incluídos:

I – moeda nacional e moedas estrangeiras;

II – moeda eletrônica, nos termos da Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013;

III – instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados ou a benefício proveniente desses produtos ou serviços, a exemplo de pontos e recompensas de programas de fidelidade; e

IV – representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento, a exemplo de valores mobiliários e de ativos financeiros.

[3] https://censodemoradia.quintoandar.com.br/perfil-sociodemografico/; acesso em 22/11/2022

[4] Lei de Registros Públicos n° 6.015 de 31 de dezembro de 1973. Disponível em:  https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6015compilada.htm, acesso em: 30/10/2022.

[5] Com o e-notariado é possível emitir certificados digitais, contudo, somente em cartórios credenciados. Mais informações em: https://www.e-notariado.org.br/customer, acesso em: 28/10/2022.

[6] Com o e-notariado é possível emitir certificados digitais, contudo, somente em cartórios credenciados. Mais informações em: https://www.e-notariado.org.br/customer, acesso em: 28/10/2022.

[7] Art. 1.245 do Código Civil. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. § 1 o Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.

[8] Art. 1.225 do Código Civil. São direitos reais: I – a propriedade; II – a superfície; III – as servidões; IV – o usufruto; V – o uso; VI – a habitação; VII – o direito do promitente comprador do imóvel; VIII – o penhor; IX – a hipoteca; X – a anticrese. XI – a concessão de uso especial para fins de moradia; XII – a concessão de direito real de uso. XII – a concessão de direito real de uso; (…) XIII – a laje. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406compilada.htm, acesso em: 28/10/2022.

[9] Atualmente, é o do Estado do Paraná, que varia entre R$ 1.617,00 (mil seiscentos e dezessete reais) e R$ 1.870,00 (mil oitocentos e setenta reais). Disponível em https://www.aen.pr.gov.br/Noticia/De-R-161700-R-187000-Parana-tera-maior-salario-minimo-do-Pais-em-2022, acesso em: 08/12/2022.

[10]Art. 108 do Código Civil de 2022. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406compilada.htm, acesso em: 28/10/2022.

[11] Netspaces Gestão de Patrimônio e Renda Ltda. – site. Disponível em: https://netspaces.org/, acesso em 31/10/2022

[12] Regulamento da propriedade digital, Vol.5 – Netspaces. Disponível em: https://api-landing.netspaces.org/static/netspaces-%20Regulamento%20da%20propriedade%20Digital%20-%20v05.pdf, acesso em 21/09/2022. 

[13] Em poucas palavras, uma Blockchain é uma lista digital crescente de registros de dados. Essa lista é composta por muitos blocos de dados, organizados em ordem cronológica e vinculados e protegidos por provas criptográficas(…) um livro digital descentralizado, distribuído e público que é responsável por manter um registro permanente (cadeia de blocos) de todas as transações previamente confirmadas. – Binance – disponível em: https://academy.binance.com/pt/glossary/Blockchain, acesso em 12/09/2022

[14] Provimento nº 38/21 – TJRS, disponível em https://www.tjrs.jus.br/static/2021/11/Provimento-038-2021-CGJ.pdf, acesso 19/09/2022

[15] Artigo 363 do Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça – Parte Extrajudicial, Provimento CGJ nº 87/2022, disponível no Diário da Justiça Eletrônico do Estado do Rio de Janeiro publicado em 19 de dezembro de 2022, Caderno I – Administrativo, Ano 15 nº 66/2022, pág. 116.