Legal & Business

Diversidade e inclusão étnico-racial no mercado jurídico: da omissão à ação

Criar um ambiente inclusivo para pessoas negras no Direito requer um afastamento urgente do status quo

concurso PGE-SP, diversidade
Crédito: Unsplash

Há quase três anos do início da pandemia de Covid-19, o mundo é palco de profundas mudanças na sociedade. Algumas ocorreram no dito novo mercado de trabalho, com consequências observadas também aos Departamentos Jurídicos e escritórios de advocacia. Essas transformações não se atêm apenas à recente MP 1.108/2022 que regulamentou o teletrabalho e alterou as regras do auxílio alimentação. Ou importantes anúncios como da OAB-SP de integrar o “Movimento Raça é Prioridade”[1]. Trata-se de uma nova configuração nas relações.  

Fato é que nunca antes se viram tantas manifestações públicas de lideranças e colaboradores sobre temas relacionados à inclusão e diversidade (I&D), em especial nas discussões sobre a pauta racial. No entanto, ainda que o aumento possa ser um indicativo de uma tímida consciência em relação ao racismo estrutural que se perpetua no mercado de trabalho brasileiro, o mercado jurídico, de maneira geral se move a passos lentos.   

O ambiente corporativo brasileiro possui uma baixa representatividade racial e de gênero. O estudo “Trajetória de CEOs no Brasil” organizado pela empresa Page Personnel em parceria com a Fundação Dom Cabral[2], analisou 149 CEOs de diversos setores da economia entrevistados, onde constatou-se que 90% eram compostos por homens e brancos. Ou seja, a cada 10 posições, apenas uma é ocupada por mulheres ou negros (mais especificamente, 8% do grupo era composto por mulheres e apenas 9% do grupo pesquisado se identificam como de outras etnias).   

Quando analisamos o mercado jurídico corporativo e dos escritórios, faltam dados que indiquem empiricamente a atual realidade. Levantamento realizado em 2019 pelo Centro de Estudos de Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT)[3] junto a nove bancas de São Paulo que compunham a Aliança Jurídica pela Equidade Racional constatou que profissionais negros representavam apenas 1% dos advogados nesses grandes escritórios.

De maneira mais recente, em publicação da Análise Editorial denominada “Análise Advocacia – Diversidade e Inclusão[4] de 2022, foram analisados 386 escritórios de advocacia. Desses, 257 responderam ao questionário específico para aprofundar e detalhar programas e iniciativas relacionadas à diversidade, equidade e inclusão. Aos dados:   

  • cerca de 20% afirmaram dar preferência a profissionais negros;
  • apenas 5% possuíam algum processo seletivo exclusivo para esses profissionais; 
  • 11% desses escritórios não possuíam nenhum profissional negro.

Quando procuramos profissionais negros em cargos executivos de empresas e escritórios, esse já tão assustador número se agrava ainda mais. Considerando que 54% da população brasileira se autodeclara como negra (pretos e pardos) e que a participação desses profissionais no mundo jurídico é ínfima, como então promover a real inclusão desses profissionais em Departamentos Jurídicos de empresas e escritórios?   

Seria ingênuo o autor considerar que a ausência de políticas públicas que promovam a equidade e inclusão de pessoas pretas na sociedade e no mercado jurídico seja solucionada em apenas uma leitura. Todavia, reconhecer que é, sim, um problema de cunho estrutural pode ser considerado uma importante primeira etapa. O baixo número de profissionais negros no mercado jurídico tem relação direta com a desigualdade socioeconômica e o seu reflexo na formação dos profissionais. 

O gargalo, como alguns podem entender, não se inicia apenas na formação acadêmica.  

Se inicia na construção de que a figura do profissional jurídico, seja ele advogado, promotor, juiz ou qualquer uma das nossas carreiras é pertencente e exclusiva ao homem branco. São fatos comprovados por dados – e não uma questão de opinião. A falta de representação étnico-racial se fixa no imaginário coletivo, muito atribuído à inexistência de referenciais que relacionem pessoas negras ao campo jurídico.

Esse cenário continua no acesso ao ensino de qualidade, onde a população negra está em condições socioeconômicas menos favorecidas e tem maior dificuldade de acesso ao ensino básico, fundamental e médio de qualidade, quando comparada às outras parcelas sociais. Com defasagens em seu processo de ensino-aprendizagem, há um impacto direto no acesso de pessoas negras às boas universidades e faculdades de Direito.   

Por fim, quando há o acesso aos cursos de Direito, pessoas negras encontram ambientes sem preparos, com pouca ou inexistente consciência racial. De maneira geral, os componentes curriculares não refletem a realidade social brasileira – e do mercado jurídico como um todo — criando um senso de falta de incentivo e acolhimento, que consequentemente leva à evasão.   

Não há que se negar que a Lei 12.711/2012, popularmente conhecida como Lei de Cotas, representa um avanço. A norma dispõe sobre a reserva de vagas para o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio; juntamente com a Lei 11.096/2005, que instituiu o Programa Universidade para Todos (Prouni); e a expansão das instituições de ensino superior a municípios fora do eixo Sul-Sudeste e capitais, ampliou o acesso de pessoas negras ao ensino superior, fomentando uma rede de suporte e apoio no ambiente acadêmico a esses profissionais.   

Vencido o ensino superior – com ênfase no verbo utilizado — se inicia uma etapa desafiadora a esses profissionais. Os processos de recrutamento e seleção majoritariamente focam egressos de instituições de qualidade, privilegiando competências e habilidades técnicas. Com isso não há uma quebra do ciclo, que continua a privilegiar uma pequena amostra da população e dos estudantes. Ainda, esses processos desconsideram competências socioemocionais, como a comunicação, resiliência ou foco, desenvolvida por esses profissionais.  

Porém, há de se reconhecer a mudança, capitaneada pelos profissionais de recursos humanos e apoiada por parte das lideranças jurídicas. A iniciativa “Pretos no Direito”[5], por exemplo, criou um banco de talentos negros, diante das alegações de dificuldades por parte da área de recrutamento e seleção. Outras plataformas, como Gupy, e empresas, como Pepsico e GPA, criaram e passaram a utilizar bases exclusivas para pessoas negras. Processos exclusivos de seleção de pessoas negras se tornaram mais comuns, abrangendo estagiários, trainees e lideranças. Técnicas de seleção, como entrevistas às cegas ou o não acesso a dados de formação, permitiram o início da desconstrução dos vieses.  

Também vale destacar o Movimento pela Equidade Racial (Mover)[6], iniciativa que nasceu da união de 47 grandes empresas que atuam em diversos setores da economia e têm o objetivo comum de eliminar a desigualdade e o racismo no mercado de trabalho. Hoje, essas organizações empregam mais de 1,3 milhão de pessoas e há o compromisso de ainda criar 10 mil cargos de liderança para profissionais negros até 2030.  

Com isso, mais e mais profissionais negros passaram a integrar bancas e departamentos. Seria o suficiente?  

Contudo, as ações relativas ao recrutamento e seleção de talentos não são sinônimos de que esses profissionais negros, uma vez selecionados, estarão em paridade de desenvolvimento e oportunidades que outros profissionais da área jurídica. É importante relembrar que há um passado secular – e nada distante – de escravidão a ser reparado.

Tsedale Melaku e Christoph Winkler traçam importantes provocações, ou como definem em seu artigo na Harvard Business Review[7], quatro questões que a liderança deveria se perguntar quando analisar os programas de diversidade e inclusão étnico-racial em seus departamentos e escritórios. Tomando a liberdade de uma tradução livre, as trazemos aqui:   

  • estamos oferecendo acesso equitativo a oportunidades de carreira e desenvolvimento?  
  • estamos promovendo uma cultura de aliança? 
  • assumimos um compromisso público com a Diversidade e Inclusão com nossos parceiros externos? Estamos preparados para pushbacks, os atos de resistência? 
  • sabemos como mediremos o progresso ou a falta dele? 

Na tentativa de contextualizar tais questões à realidade do mercado jurídico brasileiro, este artigo traçará alguns paralelos.   

Analisando empresas e escritórios com programas estruturados de inclusão, esta se inicia usualmente pelo acesso a cargos juniores, em que a maioria desses profissionais se encontra. Contudo, à medida que analisamos o avanço dos cargos para níveis plenos, sêniores e de liderança, os números absolutos – que ainda são ínfimos – são praticamente inexistentes. É comum que programas de inclusão étnico-raciais sejam traduzidos em aspectos quantitativos, ou seja, números absolutos dos profissionais incluídos, sem considerar o fator qualitativo

A esses profissionais, conseguimos oferecer acesso equitativo a oportunidades, mentoria, salário, performance e promoções? Qual o impacto de mecanismos informais de avaliação de performance, incluindo relações interpessoais e interações sociais nesses profissionais?   

Ainda, há que se falar sobre lideranças. Elas também são responsáveis por guiar Departamentos Jurídicos e escritórios de advocacia para uma efetiva inclusão étnico-racial. Uma liderança vocal e que age como aliada a grupos sub-representados permite não só que o tema seja tratado com a transparência necessária, mas também que toda sua equipe se torne corresponsável pela inclusão. Como destacam os autores do artigo, “isso passa por avaliar práticas e políticas internas; desenvolver programas sustentáveis de equidade; e criar uma estrutura que reconheça o impacto de reais aliados na cultura organizacional”   

Levantamento da consultoria McKinsey denominado “Diversity Wins[8] revelou que empresas com diversidade de gênero e diversidade racial têm uma maior probabilidade de superar concorrentes não diversos. Ainda, times diversos indicaram uma tendência de inovar e antecipar mudanças no comportamento do consumidor e tendências de consumo, auxiliando suas empresas a fortalecer o seu diferencial competitivo.   

Não há dúvidas. Uma equipe racialmente diversa permite que essas pessoas se sintam como parte efetiva do ambiente corporativo, do “time”. O respeito, aceitação, suporte ao seu desenvolvimento e valorização fazem com que profissionais negros efetivamente participem do processo de decisão e inovação, com consequente desenvolvimento de suas carreiras.   

É também nesse aspecto, de transparência, que o compromisso público se mostra importante. Ainda que com oposição por parte de consumidores, empresas como Magazine Luiza e Bayer promovem – e abertamente defendem – seus programas de trainees e lideranças dedicados exclusivamente às pessoas negras. Outras empresas, como Uber, Netflix, Microsoft, Mondelēz International, 99 e Amazon, têm em sua cultura valores expressamente relacionados à inclusão e diversidade, com colaboradores em redes profissionais, fóruns e ações pro bono sobre o tema.   

Compromissos públicos reforçam a responsabilidade de todos os colaboradores da empresa – quebrando o ciclo da identificação da inclusão étnico-racial em uma só pessoa –, e promovem um ambiente corporativo apto a receber e desenvolver profissionais.

Em suma, a inclusão étnico-racial na área jurídica passa por reconhecer os fatores estruturais que a fundam e ir além. Criar um ambiente inclusivo para pessoas negras no Direito requer um afastamento do status quo, onde ainda poucos estão prontos e dispostos a iniciar e continuar. Não há mais espaço para a ilusão da inclusão.


[1] Iniciativa da Rede Brasil do Pacto Global das Nações Unidas, com o objetivo de ter 1500 empresas comprometidas em empregar 50% de pessoas negras em posições de liderança até 2030. Para maiores informações, consulte <https://go.pactoglobal.org.br/saibamaisracaeprioridade>. Acesso em 12/09/2022. 

[2] Para maiores informações, consulte <https://www.cnnbrasil.com.br/business/mais-de-90-dos-ceos-do-brasil-sao-homens-brancos-diz-pesquisa/>. Acesso em 12/09/2022. 

[3] Para maiores informações, consulte <https://www.machadomeyer.com.br/pt/inteligencia-juridica/publicacoes-ij/institucional-ij/o-caminho-para-as-liderancas-negras-no-mundo-juridico>. Acessado em 14/09/2022. 

[4] Para maiores informações, consulte < https://analise.com/noticias/analise-advocacia-diversidade-e-inclusao-chega-a-segunda-edicao>. Acesso em 12/09/2022. 

[5] Para maiores informações, consulte < https://www.pretosnodireito.org/>. Acesso em 12/09/2022. 

[6] Para maiores informações, consulte < https://somosmover.org/>. Acesso em 13/09/2022.

[7] Para maiores informações, consulte < https://hbr.org/2022/06/are-your-organizations-dei-efforts-superficial-or-structural>. Acesso em 12/09/2022. 

[8] Para maiores informações, consulte https://www.mckinsey.com/featured-insights/diversity-and-inclusion/diversity-wins-how-inclusion-matters%20-Acesso em 12/09/2022.