
Oficialmente, ela ainda nem é a primeira-dama, mas já deu o que falar. Menos de 15 dias após a confirmação da vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o debate sobre o papel da socióloga Rosângela Lula da Silva, a Janja, como primeira-dama ocupou os top trends das redes sociais.
A imprensa destacou que, para interlocutores da equipe de transição, ela já causa “incômodo” ao participar de reuniões e a crítica é que, daqui a pouco, pode querer palpitar sobre nomes de futuros de ministros. Quanta ousadia, não é mesmo? Ops, mas de quem? De Janja querendo se posicionar ou de quem defende a tese no espírito “manterrupting” (para usar um termo da atualidade que trata da atitude tipicamente machista de interromper constantemente uma mulher, de forma desnecessária, quando ela fala)?
Gostaria de acreditar que após a repercussão da queixa anônima contra a participação de Janja na política, a pessoa que a fez tenha refletido sobre o momento em que vivemos e a carga de preconceito que transmitiu. Mas, ainda assim, prestou um bom serviço ao país: abriu um debate importante. Afinal, vivemos na era do empoderamento feminino simbolizada por figuras como a da ex-primeira-dama dos EUA Michelle Obama. Mas, aqui, Janja falar sobre política parece errado.
Vieses inconscientes
Entre discurso e comportamento, existem vieses inconscientes de uma cultura que não se muda por decreto, mas por atitudes que vão se firmando com o tempo e transformando uma forma de pensar. Com isso, o fascínio pela força e posicionamento político de Michelle Obama se encaixa no mundo que queremos, mas ainda temos no nosso inconsciente coletivo resquícios de um padrão de comportamento mais em linha com o papel destinado à mulher no século passado. Um bom exemplo é Darcy Vargas, nossa primeira-dama por duas vezes entre as décadas de 1930 e 1950.
Darcy Vargas foi o padrão de primeira-dama consolidado na geração dos boomers (aqueles nascidos do pós-guerra até o início dos anos 1960). A mulher criada para casar. Aos 15 anos, já era esposa de um advogado. Aos 21, mãe de cinco filhos. Entre as primeiras-damas que se seguiram a partir daí, foi a primeira a incorporar institucionalmente funções assistencialistas. Era sua preocupação, além de criar os filhos e cuidar do marido.
Essa lógica, muitas vezes, pautou também o debate sobre modelos econômicos quando, por exemplo, como sociedade almejamos e valorizamos iniciativas “liberais”, como nos EUA, mas somos contra o fim de reformas e de benefícios e defendemos um Estado paternalista e provedor.
Getúlio proveu ao sancionar a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), sua mulher cuidou ao criar a LBA (Legião Brasileira de Assistência). Essa foi uma base importante para o Brasil por décadas. Sem nenhuma pretensão de taxar como certo ou errado, apenas de provocar a reflexão.
E esse conceito, em linha com nosso padrão social, permaneceu como fio condutor do comportamento da primeira-dama na história recente. Em cima dele, fizemos algumas atualizações para evitar bug no sistema, à medida que as transformações sociais aconteceram. Mas ainda temos muito para avançar.
O que o passado nos ensina
Não sou historiadora, mas gostaria de trazer aqui alguns pontos a partir da visão de cidadã para provocar essa reflexão. Desde Darcy Vargas, as primeiras-damas brasileiras que, em alguma atuação, mesmo que pontual, romperam o padrão puramente assistencialista, foram motivo de surpresa.
Sarah Kubitscheck, filha, neta, sobrinha e prima de políticos, era uma mulher de personalidade forte que é lembrada, sobretudo, pela força que deu ao assistencialismo à frente da Fundação das Pioneiras Sociais, na virada da década de 1950 para 1960. Era tida como conservadora e não gostava de política.
Primeira-dama aos 26 anos de idade, Rosane Collor, mulher de Fernando Collor, também deixou a marca no assistencialismo, no início dos anos 1990. Porém, a história a marcou por denúncias de corrupção na LBA, que a levaram a deixar a presidência da entidade menos de dois anos após assumir o cargo. Ela acabou ficando à sombra do marido.
Já Ruth Cardoso, na década de 1990, esposa de Fernando Henrique, foi a primeira-dama que rompeu com o padrão por ter luz própria. Antropóloga, reconhecida no Brasil e no exterior, foi a primeira a ser observada pela sua intelectualidade.
Tida como quem modernizou o assistencialismo e introduziu uma visão social, era praticamente a “anti-primeira-dama”. Extinguiu a LBA, implantou o programa Comunidade Solidária de combate à extrema pobreza e esteve à frente de debates políticos sobre causas femininas em entidades como BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e ONU (Organização das Nações Unidas).
Militante sindical e inspetora escolar, Marisa Letícia, mulher de Lula durante os seus primeiros dois mandatos como presidente (2003-2010), foi criticada por não estar à frente de nenhuma atividade assistencialista e apenas acompanhar o marido. Enquanto a advogada Marcela Temer, esposa de Michel Temer, atuou como embaixadora do programa Criança Feliz, para dar assistência médica e psicológica a crianças carentes, e foi classificada como “bela, recatada e do lar”.
Já Michelle Bolsonaro surpreendeu ao ser a primeira a discursar no parlatório do Palácio do Planalto, na cerimonia de posse do marido, Jair Bolsonaro, em 2019 e, em libras (a linguagem dos sinais), sua especialidade.
Ela reforçou seu compromisso com as causas sociais, em especial voltadas para as pessoas com deficiência. Apesar de manter certa discrição, sua atuação política nos bastidores em 2022 foi registrada na imprensa como origem de crises internas na família, com os filhos de outros casamentos do presidente. Atuou para garantir uma vaga no Senado para Damares Alves, sua companheira de “Mulheres com Bolsonaro” durante a campanha pela reeleição.
Ressignificando o conteúdo e o papel
Com um perfil um pouco mais (ou menos) atualizado, a visão de primeira-dama sem expressão política permanece no país. Clássica, elegante, discreta são adjetivos que aparecem como forma de elogios às mulheres que ocupam uma função que não existe formalmente e que, por si só, já retrata a cultura machista. Afinal, por que ser casada com alguém deve garantir um cargo? E nem entrei aqui no debate sobre quando a presidência é exercida por uma mulher, como foi Dilma Rousseff, sem “primeiro-marido”.
Em alguns países, o cônjuge do líder político segue sua carreira normalmente, sem nenhuma obrigação social ou assistencialista oficial. Na Dinamarca, a primeira-ministra Mette Frederiksen acaba de se casar com o cineasta e fotógrafo Bo Tenberg. Em 2015, Stephen Kinnock, casado com a então primeira-ministra dinamarquesa, Helle Thorning-Schmidt, foi eleito para a Câmara dos Comuns, no Reino Unido.
Em 2017, o arquiteto Gauthier Destenay, que mantinha sua vida profissional independente, apesar de ser casado com o então primeiro-ministro de Luxemburgo, Xavier Bettel, ganhou notoriedade no mundo todo, com uma foto que correu nas redes sociais.
Ele era o único homem entre nove primeiras-damas, durante encontro de líderes políticos da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Por aqui, o governador eleito do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, voltará ao Palácio Piratini com seu companheiro e terá a chance de escrever um novo capítulo da função do cônjuge estadual.
Em outros países, a política entra dentro de casa e transforma a primeira-dama. Vejamos a escola da nossa vizinha Argentina, com a liderança política de Evita Perón e as carreiras de Isabelita Perón e Cristina Kirchner, que se destacaram como primeira-dama, presidente e vice-presidente. E Hillary Clinton nos EUA? Política de profissão, como primeira-dama interferiu nas nomeações para composição do governo do marido Bill Clinton e, anos depois, saiu candidata à Presidência.
Parafraseando uma antiga fonte da área econômica, “em dito isso”, o que, como sociedade, esperamos de uma primeira-dama no Brasil? Nessas bandas, a dívida com a chamada agenda ESG, que levanta causas ambientais, sociais e de padrões de governança corporativa, é grande. Os avanços existem, mas ainda são lentos. O soft power e o simbolismo de uma primeira-dama ativa podem fazer a diferença, em especial em meio às novas gerações (Y, Z e Alpha), já crias de um mundo transformado digitalmente a partir dos anos 1990 e que rezam essa cartilha.
Janja, ao falar sobre ela própria na primeira entrevista após a eleição do marido, deu sinais de que pretende militar nas causas que tem como prioridade, entre elas o combate à violência contra mulher, à fome e ao preconceito. Como fará isso? Se será nomeando ou atuando diretamente (ou ambos), o tempo dirá. Aqui na coluna a gente está na torcida para que as temáticas da agenda ESG deixem de lado a polarização política que dominou o debate eleitoral.
As primeiras-damas do Brasil citadas
- Darcy Vargas (1895-1968), primeira-dama entre 1930 e 1945 e 1951-1954
- Sarah Kubitschek (1908-1996), primeira-dama entre 1956 e 1961
- Rosane Collor (1964-), primeira-dama entre 1990 e 1992
- Ruth Cardoso (1930-2008), primeira-dama entre 1995 e 2002
- Marisa Letícia Lula da Silva (1950-2017), primeira-dama entre 2003 e 2010
- Marcela Temer (1983-), primeira-dama entre 2016 e 2018
- Michelle Bolsonaro (1982-), primeira-dama entre 2019 e 2022
- Rosângela Lula da Silva, Janja (1966-), primeira-dama a partir de 1/1/2023