A autorização dada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) para o cultivo de maconha com fins medicinais vai beneficiar não apenas pacientes com indicação terapêutica do óleo extraído da planta. A expectativa é que a decisão, inédita no país, fortaleça também a indústria de medicamentos e de produtos à base de Cannabis.
Mas qual a relação da liberação para cultivo caseiro e a indústria? À primeira vista, pode parecer não haver nenhuma. Mais do que isso. Muitos acreditam que o plantio individual ou de associações exerça uma espécie de concorrência à produção industrial de extratos, cápsulas ou formulações que tragam componentes da maconha, como CBD ou THC.
O presidente da VerdeMed, empresa canadense de produtos feitos a partir de Cannabis, José Bacellar, no entanto, diz que nenhum dos dois cenários estão corretos. E completa: há motivos de sobra para que todos, incluindo a indústria, comemorem.
“Quanto mais o tema é discutido, quanto mais pessoas garantem o direito de usar extratos, maiores as chances de o preconceito se reduzir”, afirma. Bacellar acredita ainda que nem todas as pessoas com indicação para o uso medicinal da maconha terão interesse em fazer o plantio, para extração de óleos ou extratos, o que aumentará a demanda por produtos industrializados.
“Assistimos a uma trajetória semelhante em outros países. Primeiro, há ações judiciais para o uso medicinal. O tema aos poucos vai se tornando mais debatido, as resistências se dissolvem tanto de pacientes quanto de médicos e o conhecimento aumenta”, completa.
A lista de indicações de canabinoides é extensa. Há médicos que receitam extratos e óleos para tratar depressão, ansiedade, dores crônicas e Parkinson. Um dos efeitos mais evidentes é para controle de convulsões. Foi graças justamente a um grupo de familiares de pacientes de crianças com problemas como epilepsia refratária que a discussão no Brasil ganhou fôlego e caminhos foram abertos para importação do produto.
“Não há dúvida do efeito terapêutico dos canabinoides. São fartos os estudos que mostram esse potencial”, afirma a professora da Universidade de Brasília Andrea Gallassi. “Outros trabalhos são sempre bem-vindos e necessários para identificar novas indicações para componentes da planta.”
Embora restrita a três pacientes, a liberação dada pelo STJ deve abrir caminho para que grupos de pessoas com indicação do uso terapêutico da maconha possam também iniciar o plantio. Hoje a prática já é adotada, amparada por decisões temporárias. Mas com o aval do STJ, há maiores chances de que outras ações semelhantes sejam propostas, dando mais segurança aos pacientes.
“O Judiciário vem assegurando a possibilidade de as pessoas acessarem medicamentos. Ele encabeça uma discussão que precisa ser extrapolada também para o Legislativo. Para esses pacientes, a segurança é essencial”, afirma a professora da UnB. Assim como Bacellar, Galassi avalia que a decisão do STJ terá um impacto preponderante para redução da resistência ao uso terapêutico de componentes da maconha.
O Brasil tem um medicamento à base de cannabis, o Mevatyl. Não há, neste momento, pedido de registro de nenhum outro remédio que leve em sua composição a cannabis na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Mas além de medicamentos à base de Cannabis, a agência prevê uma categoria de produtos, a de “derivados de Cannabis”, criada em 2019. Esse grupo se distingue de medicamentos e de fitoterápicos. Justamente por isso, é analisado de forma mais rápida. “Neste aspecto, não temos o que reclamar. Há uma grande celeridade na avaliação”, diz Bacellar.
Ao todo, hoje o país conta com 19 produtos à base de Cannabis registrados na Anvisa. Eles são vendidos em farmácias e drogarias, sempre com prescrição médica. Como não são medicamentos, não há bulas. A indicação desses produtos é de responsabilidade do médico que assiste o paciente. Segundo Bacellar, hoje são cerca de 5.000 profissionais com essas características no país. Mas há boas razões para se imaginar que esse mercado irá crescer brevemente. De acordo com a Anvisa, há outros 17 produtos derivados de cannabis aguardando a análise. “Há sempre um intervalo entre a liberação e a chegada do produto. Mas dentro de pouco tempo, não há dúvida de que novos produtos estarão no mercado.”