Pandemia

O frenesi da produção legislativa em tempos de crise

A necessária análise de consequências e as mensalidades escolares

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Crédito: Unsplash

A pandemia covid-19, que assola praticamente todo o globo, tem despertado nos agentes econômicos, públicos e privados, a justificável ansiedade pela intervenção estatal a fim de que sejam garantidos direitos, empregos e condições mínimas para a sobrevivência dos mais diversos atores da sociedade, sobretudo da parcela mais pobre, que por óbvio, é a mais afetada pela crise sanitária e econômica.

Neste cenário, desde que o Senado Federal aprovou o decreto que reconheceu o estado de calamidade pública no Brasil, em 20 de março de 2020, procedida pelo mesmo ato em diversas Assembleias Legislativas, tem surgido, nas casas legislativas de todo o país, diversas proposições que, de alguma forma, objetivam assegurar direitos em nome dos mais hipossuficientes, configurando este frenesi da produção legislativa.

Neste compasso, o mesmo pode-se inferir sobre o Poder Judiciário e as mais surpreendentes decisões prolatadas em descompasso ao art. 20 da LINDB[1], além do Poder Executivo, sobretudo no âmbito dos municípios, cujos criativos decretos parecem, muitas vezes, assumir o magno espaço ocupado pela Constituição Federal como Carta Maior dos seus territórios.

Embora seja necessária a tomada de medidas emergenciais a fim de, transitoriamente, adequar as relações jurídicas à realidade imposta pela pandemia, proposições que versam sobre congelamento de preços, proibição de demissões, controle estatal dos leitos de hospitais privados, requisições administrativas indiscriminadas, suspensão ou descontos compulsórios nas mensalidades escolares e afins, chamam a atenção pelas externalidades negativas que podem gerar, podendo inclusive, prejudicar aqueles que, inicialmente, seriam os tutelados pelos benefícios.

Aqui, importa esclarecer que, consoante o Professor Vinícius Marques de Carvalho[2], “não é só quando os mercados falham que intervenções do Estado se justificam. Às vezes o excesso de mercado pode gerar efeitos severos sobre o tecido social. Essa constatação não é nova, nem na teoria, nem na prática, mas ressurge sempre que algo comum a toda humanidade vem à tona, nesse caso, o nosso instinto de autopreservação. Mas nessa hora o Estado precisa ser melhor, e não pior que o mercado.”

Dito isto, as proposições acerca da suspensão das cobranças dos valores cobrados pelas instituições de ensino ou determinação compulsória de abatimento evidenciam duas problemáticas neste conglomerado de iniciativas por todo o Brasil, quais sejam: a) os limites de competência dos entes federativos; e b) os efeitos econômicos inesperados. Diante disto, pretende-se tecer breves comentários sobre as referidas questões, pois iniciativas desta natureza parecem uma solução fácil, mas na verdade não mitigam e muitas vezes até agravam o problema.

Acerca da primeira problemática evidenciada, decerto que o legislador constituinte optou pelo federalismo como forma de organização do Estado Brasileiro, sob a perspectiva que a divisão territorial e de poderes seria a mais adequada aos interesses coletivos e os possíveis conflitos decorrentes desta forma de organização foram regulados pela própria Constituição Federal.

Ocorre que os limites de competência estabelecidos entre os entes federativos nunca foram devidamente compreendidos pelos agentes políticos. As proposições legislativas que invadem a competência de outro ente federativo, por exemplo, são rotineiras, sobretudo nas Assembleias Legislativas, Câmaras Municipais e Câmara Legislativa, e, por vezes, não são filtradas pelos órgãos de controle interno de constitucionalidade, como as Comissões de Constituição e Justiça, sendo submetidas aos órgãos de controle externo de constitucionalidade, como o Poder Judiciário e Tribunais de Contas.

Esta realidade, ademais, é especialmente acentuada em momentos de crise, em razão da urgência de medidas ao enfrentamento, que impõe medidas e respostas imediatas. A necessidade de se dar uma resposta imediata à sociedade, com o objetivo de cumprir o dever constitucional, subjacente aos atos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, representa um quadro de incentivos às sobreposições e descoordenação nas medidas, bem intencionadas, de solucionar a crise e proteger o mais desfavorecido.

Neste prisma, a proposta legislativa para a suspensão ou redução compulsória das mensalidades escolares, propostas nas mais diversas Assembleias Legislativas do país, carece de constitucionalidade formal, por inexistência de competência legislativa sobre a matéria, que compete privativamente à União.

A mensalidade escolar, esclareça-se, versa sobre direito obrigacional, portanto de natureza contratual. Neste consectário lógico, tais proposições legais tratam de matéria cuja competência foi atribuída à União, nos termos do disposto no artigo 22, inciso I, da Constituição do Brasil. Consoante entendimento, os julgados do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que não cabe aos Estados-membros legislar sobre relações contratuais, dado que, nos termos do artigo 22, inciso I, da Constituição do Brasil, a legislação concernente ao tema incumbe à União (ADI/MC 1.646, Relator o Ministro Néri da Silveira, DJ de 04.05.2001; ADI/MC 1931, Relator o Ministro Maurício Corrêa, DJ de 28.05.2004).

Neste mesmo sentido, em 12 de agosto de 2009, Por ser de competência privativa da União legislar sobre Direito Civil (artigo 22, inciso I, da Constituição Federal – CF), o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou procedente, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1042, proposta pela Procuradoria Geral da República (PGR) contra a Lei nº 670, de 04 de março de 1994, do Distrito Federal, que dispõe sobre a cobrança de anuidades, mensalidades, taxas e outros encargos educacionais.

Por fim, ainda que se possa defender, superficialmente, tratar-se de relação de consumo e, por conseguinte, a competência concorrente dos estados-membros, tal argumento não merece prosperar, uma vez que é próprio da competência concorrente que a União legisle normas gerais e que aos estados-membros, observada a norma geral, suplementá-la no que couber. No entanto, as mensalidades escolares é matéria regulamentada pela Lei Federal nº 9.870, de 23 de novembro de 1999, a qual disciplina especificamente “sobre o valor total das anuidades escolares”.

Note-se, portanto, que, por nenhuma via, os estados brasileiros podem, em consonância ao ordenamento jurídico legislar acerca da suspensão ou alteração compulsória dos valores decorrentes dos contratos escolares.

Sem embargo, a referida proposta também se faz presente à nível nacional, o que superaria qualquer argumento de inconstitucionalidade. Por isso, mais do que uma questão técnico-jurídica de análise de competência, as normas que versam sobre a suspensão ou aplicação compulsória de desconto nos valores escolares, podem gerar efeitos econômicos inesperados pelo legislador, aptos a torná-las não apenas ineficientes, mas também prejudiciais na análise de custo-benefício.

Na esteira da perspectiva consequencialista, o Brasil tem avançado, ao adotar instrumentos que efetivamente possibilitam a promoção de maior racionalidade nas ações governamentais, como por exemplo a Análise do Impacto Regulatório (AIR), que aparece tanto no artigo 6º da Lei Geral das Agências Reguladoras, quanto no artigo 5º da Lei da Liberdade Econômica.

Atribui-se ao economista, Milton Friedman, a ideia de que “um dos maiores erros que existem é julgar os programas e as políticas públicas pelas intenções e não pelos resultados.”

Nesse sentido, parece cristalina a intenção dos legisladores que pretendem suspender ou, compulsoriamente, instituir um desconto nos valores contratados na área educacional. A crise decorrente ao combate da pandemia ensejou diversos decretos administrativos, proibindo a continuidade das aulas e atividades acadêmicas de maneira presencial. Por outro lado, os estudantes e seus pais enfrentam dificuldades financeiras, em razão da paralisação da maioria da atividade acadêmica.

Não obstante, à luz da Análise Econômica do Direito, o legislador precisa fazer valer a racionalidade econômica e, ao intervir em determinada situação, avaliar os custos diretos e indiretos, os benefícios, diretos e indiretos, as externalidades positivas e negativas, a fim de promover uma intervenção eficiente, que possa aumentar o bem estar social.

Cristiano Aguiar de Oliveira[3] ressalta que “nestes casos, em que não se tem muito conhecimento e informações prévias, nem teórica e nem empíricas, se deve lembrar que não interferir é sempre uma opção e que se deve ter o máximo de cautela em interferir, principalmente, em situações em que se tem pouca ideia das consequências que a medida/regulação pode causar.”

Todavia, não parece ser o caso. A grande maioria das propostas – senão todas elas, simplesmente sugerem números aleatórios para a redução dos valores ajustados. 20%, 30%, 40%, 50% e até mesmo a suspensão da integralidade dos valores. Questiona-se qual foi o racional utilizado para alcançar determinado número.

Além disso, quais serão as consequências orçamentárias para cada instituição de ensino? Com a redução ou suspensão dos valores, como serão mantidas adimplentes as suas obrigações fixas, como os salários dos professores e funcionários, investimentos informacionais e tecnológicos realizados, estrutura física e manutenção? Certamente, pensam tais legisladores que bastará outra lei proibindo que a instituição efetue qualquer demissão.

Evidente que a situação demanda que todas os agentes envidem seus melhores esforços, solidariamente, no enfrentamento da crise. Indiscutivelmente o Estado precisa tomar alguma medida, afinal sua prestação e atuação interventiva deve ser acentuada justamente nestes momentos críticos, mas essa intervenção precisa ser racional.

Neste diapasão, a fim de orientar a atuação das instituições de ensino e estudantes, a Coordenação Geral de Estudos e Monitoramento de Mercado, vinculada à Secretaria Nacional do Consumidor – SENACON, do Ministério da Justiça, oportunamente, elaborou a Nota Técnica nº 14/2020[4], cujo objetivo é construir soluções negociadas em face da atual epidemia e das dificuldades operacionais dela decorrentes.

Logo, de modo a evitar discussões judiciais em que cada uma das partes teria argumentos jurídicos consistentes e, sobretudo, o rompimento de contratos estabelecidos em diversos setores da economia, a alternativa mais adequada seria a negociação exaustiva. Entre os contratantes, entre os órgãos de defesa do consumidor e associações de instituições escolares. Ressalte-se inclusive a possibilidade da utilização da plataforma Consumidor.gov.br como canal de busca de soluções.

Certamente haverá uma série de efeitos macroeconômicos, como diminuição da demanda agregada, diminuição da arrecadação de impostos e, por conseguinte, diminuição até mesmo das condições do Estado gerir o orçamento referente à saúde pública.

Destarte, é recomendável que os legisladores atuem com muita cautela, sem excessos, e que procedam com minuciosa análise dos custos diretos e indiretos, dos benefícios diretos e indiretos e das externalidades positivas e negativas da presente medida a fim de garantir a sua eficiência e minorar possíveis efeitos indesejados, neste frenesi de produção legislativa, ainda que imbuída das melhores intenções.

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[1] Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

[2] CARVALHO, Vinícius Marques de. Coronavírus e a irrevogável lei da oferta e da procura. Valor Econômico. 2020. Acesso em 01 de abril de 2020. Disponível em:

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/coronavirus-e-a-irrevogavel-lei-da-oferta-e-da-procura.ghtml

[3] OLIVEIRA, Cristiano Aguiar de. Lockdown: um caminho desconhecido e perigoso para formuladores de políticas públicas. JOTA, 2020. Acesso em 01 de abril de 2020. Disponível em:

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-da-abde/lockdown-caminho-perigoso-politicas-publicas-27032020

[4] Acesso em 01.04.2020. Disponível em:

https://www.procon.sp.gov.br/wp-content/uploads/2020/03/nota-t%C3%A9cnica-Senacon.pdf