Coronavírus

Uma reforma Tributária para a crise e para o futuro

Análise das fontes de recursos para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional

reforma tributária
Crédito: Pixabay

O momento não é de se fazer críticas. É de propor aprimoramentos e soluções. Como o problema é coletivo, justifica-se uma ação coletiva coordenada da sociedade. A instituição que consegue fazer essa coordenação e que tem sua razão de ser na administração da coisa pública é o Estado.

Para fazer face às medidas necessárias ao enfrentamento da crise, serão necessários recursos. O Estado, em princípio, possui três fontes de financiamento. A primeira delas seria o crédito, isto é, tomar recursos emprestados da sociedade via emissão de títulos públicos. A segunda seria a obtenção de receita mediante exercício de atividades econômicas. A terceira fonte é a tributária, objeto da presente reflexão.

Do ponto de vista político é legítimo o governo custear uma renda mínima para cada cidadão, agora mais do que nunca. Se se pensar principalmente naqueles que foram privados de sua renda ao terem que ficar em casa por conta das medidas de distanciamento, a legitimidade do pagamento de um benefício estatal é ainda mais evidente, pois o distanciamento social protege não apenas quem fica em casa, mas a sociedade como um todo. Não é justo, por isso, fazer com que essa pessoa seja privada de sua renda sem receber uma contrapartida.

Deve haver um trabalho e um esforço conjunto. O desafio é conciliar, de um lado, a necessidade de incentivar todas as pessoas que podem contribuir, mostrando que seus recursos que são expropriados pela tributação serão devidamente empregados para o bem comum. De outro lado, das pessoas que recebem, é necessário instituir contrapartidas, até para que os cidadãos que contribuem não se sintam explorados, gerando desagregação. No momento, a contrapartida de quem recebe algum benefício é, na medida do possível, evitar sair de casa.

Necessariamente deverá haver um esforço fiscal e o momento seria mais do que oportuno para a adoção de um sistema tributário justo. A propósito, propostas estão sendo feitas para a instituição de um imposto sobre grandes fortunas[1].

Esse tributo possui grandes problemas, principalmente porque é impossível definir de forma adequada o que seria uma grande fortuna. Se se definir como sendo um milhão de reais, será justo não cobrar nada de quem possui uma riqueza de novecentos mil?

Uma solução já proposta anteriormente[2] para um sistema tributário adequado, em linhas gerais, seria, em primeiro lugar, estimar a despesa necessária para determinado programa.

Assim, suponha-se que para o enfrentamento da pandemia e de suas mazelas seja necessária determinada quantia. Uma vez aprovado democraticamente esse valor, ele seria a base de cálculo do tributo. Essa definição prévia da despesa tem a vantagem de mostrar para os cidadãos quanto custa sua demanda. Além disso, pode evidenciar os casos em que eventual problema na qualidade do serviço público decorre da falta de recursos e não por culpa dos servidores públicos que estão na linha de frente.

Estabelecida a base de cálculo, é dever de todo cidadão contribuir na medida de suas possibilidades, algo que nada mais é do que a aplicação do princípio da capacidade contributiva já previsto no texto constitucional.

Restaria, então, definir o valor da contribuição de cada um. Para garantir efetiva justiça, a alíquota deveria ser proporcional à riqueza de cada um.

Assim, deveria ser somado o patrimônio de todos os cidadãos. Feito isso, bastaria tomar o patrimônio de cada cidadão e dividir pelo valor do patrimônio total. O resultado seria a alíquota que, multiplicada pela base de cálculo, resultaria no valor que cada cidadão deveria pagar.

Para elucidar melhor, suponha-se uma nação com dez cidadãos hipotéticos, sendo que o patrimônio total somado desses sujeitos seja de R$ 1.382.000,00. Ainda por hipótese, suponha-se que precisem contribuir para satisfazer uma despesa de R$ 1 mil. Na Tabela abaixo, na primeira coluna constam os nomes desses dez cidadãos hipotéticos. Na segunda coluna, consta o patrimônio de cada um. A terceira coluna traz a alíquota do imposto. A última coluna traz o valor do imposto devido:

Cidadão Riqueza de cada cidadão Alíquota (Percentual da riqueza do cidadão em relação à soma das riquezas de todos os cidadãos = riqueza /R$1.382.000,00 x 100) Valor do imposto (resultado da multiplicação da alíquota pela base de cálculo de R$1.000,00)
A R$300.000,00 21,71% R$217,08
B R$200.000,00 14,47% R$144,72
C R$100.000,00 7,24% R$72,36
D R$50.000,00 3,62% R$36,18
E R$600.000,00 43,42% R$434,15
F R$20.000,00 1,45% R$14,47
G R$10.000,00 0,72% R$7,24
H R$100.000,00 7,24% R$72,36
I R$2.000,00 0,14% R$1,45
J R$- 0,00% R$0,00
Totais R$1.382.000,00 100,00% R$1.000,00

Fonte: Elaborada pelo autor

É uma conta simples, semelhante à aplicável em qualquer condomínio residencial para apurar quanto cada condômino deve contribuir para as despesas condominiais.

Com isso, quem não tem patrimônio não precisaria pagar nada, resolvendo-se o problema dos menos favorecidos. Quem tem mais, pagaria mais, mas não se sentiria injustiçado, pois todos contribuiriam na proporção de sua riqueza.

Num primeiro momento, de transição, esse tributo poderia ser empregado apenas para custear as despesas necessárias ao enfrentamento da pandemia. Num segundo momento, caso ele funcione adequadamente, poderia substituir os demais tributos, com a efetiva extinção destes.

Além dessa cobrança tomando como parâmetro o patrimônio estático, poderia haver outro tributo, como forma de ajuste, de antecipação do tributo sobre o patrimônio estático e de indicativo de evolução patrimonial. Ele seria cobrado sobre o patrimônio dinâmico representado pelos ingressos de recursos movimentados eletronicamente, como ocorria, por exemplo, com a CPMF. Esses dois tributos substituiriam todos os outros, ressalvados alguns casos peculiares que justificassem o pagamento de taxas.

Essas seriam, em suma, as linhas gerais de um sistema tributário mais justo, cujo detalhamento não é comportado nos limites desse artigo.

É essencial que o sistema seja simples e transparente, para que os verdadeiros titulares dos recursos, o povo, possam entender seu funcionamento e fiscalizar o correto emprego de seu dinheiro.

A pandemia evidenciou diversas vulnerabilidades sociais. É uma enorme oportunidade para grandes realizações. O saudoso Professor Alcides Jorge Costa, um dos autores do atual Sistema Tributário Nacional, sempre dizia que reformas tributárias só ocorrem em situações excepcionais. Parece que esse momento chegou.

Espera-se que se aproveite o momento de coesão social para que haja uma solução definitiva para a questão dos mais vulneráveis da sociedade, os menos favorecidos. Fazer bem para eles é fazer bem para todos, na medida em que a exclusão enfraquece a sociedade como um todo.

Nota-se que questões diversas são levantadas a cada nova política pública instituída, às vezes no trâmite legislativo, às vezes no âmbito judicial.

Obviamente que, se em situações normais é possível errar, com muito mais razão isso pode ocorrer em situações de anormalidade como a presente.

Mas causa preocupação se, a cada política pública tomada pelo governo, houver diversas ações opostas, pois o conflito não permitirá caminhar. Todo debate dever ser prévio à adoção das políticas públicas. O consenso deve ser prévio. O dissenso posterior às medidas gera insegurança jurídica, paralisia e enfraquecimento da nação.

Não se quer dizer aqui que todos os cidadãos devam baixar a cabeça e simplesmente aceitar toda e qualquer medida do governo. Não se quer dizer que se deva afastar a Constituição ou que o Judiciário deva se calar.

O que se quer dizer é que deve haver um debate público, o mais democrático possível, mas considerando as circunstâncias do momento. O Executivo deve dialogar com o Congresso e buscar coordenação política sem permitir que a pluralidade inerente aos representantes do povo retire a celeridade necessária para enfrentar os desafios. O Poder Judiciário, por seu turno, mais do que nunca, deve evitar decisões sobre mérito de políticas públicas. O Poder Judiciário deve ser o freio, mas nunca a direção. Deve barrar as ilegalidades, porém não pode determinar os rumos da nação. É hora de os três Poderes serem mais harmônicos do que independentes.

Deve-se reconhecer, por seu turno, que foi possível presenciar grandes realizações de cada um dos Poderes. Quantidade considerável de medidas já foi tomada, muitas delas aprovadas em tempo recorde. O Judiciário também está colaborando para manter o país nos trilhos. Os servidores públicos como um todo, ao que tudo indica, mesmo com as limitações impostas pelo momento, como a necessidade de trabalho remoto, aumentaram a produtividade[3].

Crises trazem novas necessidades e com isso grandes oportunidades de mudança. Esperamos que elas sejam aproveitadas.

As opiniões do texto refletem posição exclusiva do autor, não tendo nenhuma relação com as posições das instituições a que pertence.

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[1] https://www.camara.leg.br/noticias/648567-projeto-institui-imposto-sobre-grandes-fortunas-para-combater-pandemia/ e https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/27/senado-debate-quatro-propostas-de-imposto-sobre-grandes-fortunas

[2] SARAI, Leandro. Princípio da capacidade contributiva e contribuições previdenciárias. Revista brasileira de direito tributário e finanças públicas. Porto Alegre: Magister; São Paulo: Centro de Extensão Universitária, v. 6, n. 34, p. 63–80, set./out., 2012.

[3] Cf. http://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/922236 , https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=60730&pagina=1 , https://www.cnj.jus.br/produtividade-mostra-empenho-mesmo-com-suspensao-de-prazos/