Carlos Eduardo Makoul Gasperin
Doutorando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC-SP e membro do Núcleo de Direito Tributário do Mestrado Profissional da FGV-SP. Advogado. Email: carlos@casilloadvogados.com.br
Inserido no projeto “Processo administrativo, judicial e execução fiscal no Século XXI” (FGV Direito SP), este artigo dá continuidade à subsérie que, conduzida pelos autores, trata da modulação de efeitos das decisões tributárias proferidas pelas Cortes Superiores.
Nosso foco, neste momento: o quórum – aspecto aparentemente simples, mas que grita por um tratamento racional.
Recapitulemos, nessa trilha, uma premissa – quiçá uma das mais importantes nesta subsérie de textos: a diferença entre decisão exarada em sede de controle de (in)constitucionalidade, de um lado, e precedente, de outro.
Na decisão de (in)constitucionalidade – seja no controle difuso, seja no concentrado –, a Corte Suprema avalia e decide a compatibilidade do texto legal com a Constituição, fazendo-o mediante técnicas como, por exemplo, a declaração de nulidade total ou parcial, a declaração conforme e a declaração de nulidade sem redução de texto (dentre outras). Olhando essencialmente para o passado, essas decisões buscam a garantia e a proteção da supremacia constitucional e podem ou não configurar precedente.
O precedente propriamente dito caracteriza-se, a seu turno, pela especial função que desempenha, marcantemente voltado ao porvir: outorgar sentido ao direito, ditando entendimento com aplicação a casos idênticos ou semelhantes. O que vincula a obediência ao precedente é a porção da ratio decidendi, isto é, as razões – necessárias e suficientes – firmadas pela maioria do colegiado.
Garantindo unidade ao ordenamento jurídico e, principalmente, previsibilidade e isonomia aos jurisdicionados, sejam eles particulares ou entes públicos, a obrigatoriedade ínsita aos precedentes não se confunde com o efeito erga omnes da decisão de (in)constitucionalidade.
Em suma: a aplicação do direito jurisprudencial no tempo, tomado o contexto aqui abordado, demanda a diferenciação (i) das decisões que realizam o controle de constitucionalidade (concentrado ou difuso, esse último em evidente ritmo de crescente objetivação), retirando-se uma norma do mundo jurídico porque inválida perante a Constituição, (ii) das que revelam a alteração de um precedente “quando evidentemente equivocado ou desgastado em sua coerência normativa ou congruência social.”[1]
O primeiro caso, da declaração de inconstitucionalidade, atrai a regra geral segundo a qual a norma inconstitucional é nula ab initio e, por isso, deve ser extirpada desde então, com efeitos retroativos a fim de garantir a autoridade da Constituição.
No entanto, nas excepcionais hipóteses em que a aplicação ex tunc dos efeitos dessa decisão cause mais prejuízos ao sistema constitucional do que a manutenção da norma tida por inconstitucional, abre-se campo para a modulação dos efeitos da inconstitucionalidade reconhecida pelo Supremo.
A decisão que impõe a superação de um determinando precedente também tem por regra sua aplicação retroativa, albergando todas as situações pendentes, exceto aquelas consolidadas pela coisa julgada. Também nessa situação, quando é possível que a alteração do precedente venha a ocasionar um abalo na confiança dos jurisdicionados quanto à orientação jurisprudencial anterior, além da quebra de isonomia entre eles, impõe-se que a superação do entendimento pretérito se dê somente para os casos futuros.[2]
Conquanto assemelhados, os casos têm entre si uma notável distinção, especificamente relacionada ao bem jurídico que a eficácia prospectiva quer proteger, justamente o ponto fulcral quando se pensa sobre a lógica na definição do quórum apropriado a cada instrumento.
Quando se pretende a superação para frente de um precedente, busca-se resguardar os efeitos dos atos e fatos praticados em conformidade com a orientação jurisprudencial até então prevalente.
Quando se modula os efeitos de uma decisão tomada em controle de (in)constitucionalidade, o que fez, por outro lado, é admitir a eficácia da norma impugnada até certo momento, medida tendente a proteger a ordem constitucional de estragos maiores que adviriam da nulificação retroativa daquela disposição.
Não há dúvidas de que a infração que se convalida com a “modulação dos efeitos” no segundo caso é de gravidade muito superior àquela constatada no primeiro (da superação de entendimento jurisprudencial consolidado com efeitos prospectivos). Ali, reiteremos, convalida-se temporariamente, por conveniência, a afronta à Constituição; aqui, resguarda-se o entendimento firmado em face das possíveis interpretações do ordenamento consideradas até então.
Dessa notável escala de “gravidade” de propósitos sobrevem a racionalidade que governa (ou há de governar) o problema do quórum: a modulação, no que se refere à decisão tomada em controle de (in)constitucionalidade, deve exigir convencimento e esforço argumentativo adicional, demandando, nessa toada, a maioria qualificada da Suprema Corte; na mutação da jurisprudência, assim as coisas não se colocariam, podendo a “modulação” ser feita pela maioria simples.[3]
Acertada, nessa linha, a disposição posta no art. 27 da Lei 9.868/99, ao exigir o quórum de 2/3 dos membros da Suprema Corte para que a modulação ocorra, exigência essa que, apesar de feita para o controle concentrado, pode ser aplicada às decisões “objetiváveis”[4] tomadas em controle difuso[5] – como as exaradas em recurso extraordinário com repercussão geral.
Do que vai exposto, é de se concluir que o art. 927, § 3° do CPC,[6] não dispondo propriamente de modulação de efeitos, mas de superação para frente do precedente (por questões de isonomia e segurança jurídica), além de confuso quanto à técnica, incide em omissão quanto ao quórum correspondente, aspecto que poderia-deveria ser composto pela explícita referência à maioria simples dos ministros da Suprema Corte.
Mais que bem-vinda, portanto, pontual alteração no mencionado dispositivo, fazendo-se constar o quórum a que nos referimos (maioria simples, reiteremos), o que melhor dialoga com seu conteúdo e que reflete a necessária distinção entre superação para frente de precedente e modulação no sentido próprio do vocábulo.
Coerência técnica e metodológica na legislação processual seriam assim maximizadas, com claros reflexos (positivos) em relação à segurança na aplicação de conceitos de natureza e destinação diversas.[7]
[1] Daniel Mitidiero. Superação para frente e modulação de efeitos. Precedente e controle de constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters/RT, 2021, p. 57.
[2] Daniel Mitidiero, ob. cit., p. 61.
[3] Daniel Mitidiero, ob. cit., p. 81-82.
[4] Sobre a objetivação dos julgamentos em repercussão geral de recursos extraordinários: AgR. no Recurso Extraordinário 657.718, relator min. Marco Aurélio, relator p/ acórdão min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe 25/10/2019.
[5] Quanto à possibilidade de aplicação analógica da inteligência do próprio art. 27 da Lei 9.868/99 no controle difuso, veja, por exemplo: Recurso Extraordinário 870.947/Embargos de Declaração, relator min. Luiz Fux, relator p/ acórdão min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJe 03/02/2020.
[6] Para o fim de constar: “§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica, pelo voto da maioria simples.”
[7] Evitar-se-ia, por exemplo, a confusão desses conceitos e técnicas que pode ser verificada nas próprias manifestações do Supremo Tribunal Federal, como, por exemplo: Recurso Extraordinário 522.897, relator min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 26/09/2017.