Pandemia

Medidas Provisórias e estratégias anti-democráticas em tempos de Covid-19

Diminuição de prazo para deliberação não é compatível com a ausência de previsão de comissões mistas

PL das fake news
Crédito: Marcos Oliveira/Agência Senado

No embate entre Legislativo e Executivo quanto ao exercício da atividade legislativa só existem culpados: há excessos na adoção de medidas provisórias (MPs), que em sua maioria não observa os requisitos de relevância e urgência, e o processo legislativo ordinário do Congresso Nacional é lento.

O equilíbrio entre o protagonismo da produção normativa, o controle da agenda legislativa do Congresso Nacional e a necessidade de respostas rápidas para problemas concretos depende de múltiplos fatores institucionais, como o rito de aprovação de MPs.

Além disso, a relação mais ou menos estável entre esses três aspectos tem sido desafiada por personalismos, diante da captura do processo por quem ocupa a presidência das casas legislativas e de sua predisposição para respeitar ou não a Constituição e os regimentos internos.

O quadro se completa com os incentivos negativos gerados pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que freia o controle judicial de manobras regimentais, sob o frágil fundamento de que se tratam de questões interna corporis. A essa difícil equação soma-se agora uma variável inesperada: a pandemia causada pelo coronavírus.

A necessidade de observância das normas sanitárias de isolamento social alterou a rotina na Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que restringiram o acesso às suas dependências e desenvolveram Sistema de Deliberação Remota (SDR) para manter o Plenário de suas Casas funcionando.

Ao mesmo tempo em que a manutenção dos trabalhos legislativos é de vital importância para a democracia, é certo que a discussão das matérias, a apresentação de emendas, a participação social e a deliberação pública foram atingidas em cheio, uma vez que o SDR não alcança as comissões permanentes, temporárias e, no que aqui interessa, as comissões mistas previstas no art. 62, § 9º, da CF.

É perante as comissões que se apresentam requerimentos para oitiva de especialistas, realização de audiências públicas,  seminários, etc. Devido à sua importância para a fiscalização da atividade legislativa atípica do Presidente da República pelo Poder Legislativo, o respeito ao seu efetivo funcionamento já foi determinado pelo STF, ao apreciar o pedido formulado na ADI 4.029/AM, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em março de 2012.

Na ocasião, o STF declarou a inconstitucionalidade da prática permitida pelos arts. 5o e 6o da Resolução CN 01/2002 que, ao disciplinarem o funcionamento das comissões mistas, previam uma exceção que acabou virando regra: à época, se inobservado o prazo da comissão mista, a medida provisória poderia seguir diretamente para a Câmara dos Deputados, onde o Relator proferiria seu parecer diretamente no Plenário.

Caso aprovada, seria encaminhada para o Senado Federal, onde um senador, novamente, apresentaria seu parecer para votação diretamente no Plenário do Senado.

Com isso, a exigência de instalação e funcionamento de comissões mistas para discussão de medidas provisórias, imposta pela Constituição de 1988, passou a ser encarada pelo Congresso Nacional como mera recomendação. A prática, declarada inconstitucional pelo Plenário do STF, instituía verdadeiro “império do Relator”, pois seu poder para inadmitir, acolher ou rejeitar emendas apresentadas ao texto principal era quase absoluto: as chances de seu parecer ser rejeitado pelo Plenário eram baixíssimas, não precisava negociar o texto com a oposição, e nem mesmo buscar o consenso.

A prática gerava, ainda, um desequilíbrio de forças no Congresso Nacional: como a disputa pela relatoria da matéria na Câmara e no Senado era muito acirrada justamente em função da concentração de poderes nas mãos do relator, dificilmente a designação cabia à oposição.

Pois bem. A pandemia causada pela Covid-19 fez com que as Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal aprovassem o Ato Conjunto no 1/2020 para disciplinar o rito de tramitação das medidas provisórias durante a crise, ressuscitando a prática inconstitucional de apresentação de parecer diretamente em Plenário.

Além disso, os prazos sofreram significativa redução: emendas devem ser apresentadas até o 2o dia útil seguinte à publicação da MP; a Câmara deve aprovar o texto até o 9o dia de sua vigência; o Senado até o 14o dia e, em havendo modificações no Senado, a Câmara deverá apreciá-las no prazo de 2 dias úteis.

O procedimento pode durar, dessa forma, até 16 dias. Partindo-se da premissa de que a medida provisória tem força de lei desde a sua edição e, por isso, prescinde do rápido aval do Congresso Nacional para que possa produzir efeitos, qual a razão para um rito tão célere? E por que não contemplou a análise pela comissão mista, exigida pelo STF? Em outras palavras: por que houve diminuição simultânea de prazos e de participação na tramitação de MPs, que tendem a ser a proposição legislativa padrão durante a pandemia?

A principal hipótese, baseada na observação dos trabalhos legislativos, decorre da vontade do Congresso Nacional de assumir o protagonismo durante a crise e de rechaçar, o mais rápido possível, qualquer medida inoportuna, polêmica ou inconstitucional adotada pelo Executivo.

Mas pode configurar também uma oportunidade para o contra-ataque do relator de plenário, o que demanda vigilância constante da oposição e da academia jurídica. Mas fato é que, antes da publicação do Ato Conjunto no 1/2020, o próprio STF chancelou a supressão das comissões mistas, contra sua jurisprudência.

Em movimento inédito, as Mesas da Câmara e do Senado requererem o deferimento de medida cautelar contraposta nos autos da ADPF 663, para “autorizar a imediata aplicação do procedimento definido no ato conjunto da Mesa do Senado Federal e da Mesa da Câmara dos Deputados, nos termos da minuta anexa, em atenção ao princípio da segurança jurídica, para viabilizar a imediata apreciação e deliberação das Medidas Provisórias em curso (…)”.

A ADPF 663, de relatoria do Min. Alexandre de Moraes, foi proposta pelo Presidente da República com o objetivo de suspender o prazo de validade das medidas provisórias durante a calamidade sanitária, uma espécie de revival do regime anterior à EC 32/2001.

Em decisão monocrática, o Ministro Alexandre de Moraes negou o pedido do Executivo, mas deferiu o do Legislativo, entendendo ser “razoável, em tempos de estado de emergência (…), temporariamente, estabelecer a apresentação de parecer sobre as medidas provisórias diretamente em Plenário, por parlamentar designado na forma regimental, em virtude da impossibilidade momentânea de atuação da comissão mista”.

Três observações são importantes a respeito da cautelar contraposta apresentada pelas Mesas da Câmara e do Senado e deferida monocraticamente pelo Ministro Alexandre de Moraes:

(i) o STF não é órgão de consulta para analisar minuta de resolução conjunta das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal;

(ii) inexiste a dita impossibilidade de funcionamento da comissão mista, que também poderia se beneficiar da deliberação remota, ainda que com menor número de membros e prazo mais curto para apresentação do projeto de lei de conversão; e

(iii) a decisão monocrática do Ministro Alexandre de Moraes contraria o precedente firmado pelo Plenário do STF na ADI 4.029, além de conter em si uma contradição: não permite a suspensão do prazo máximo de vigência das medidas provisórias, em razão do disposto no art. 62, § 3º, da CF, mas julga razoável descumprir a exigência constitucional de instalação de comissões mistas para elaboração e votação do projeto de lei de conversão, exigido pelo art. art. 62, § 9o, da CF. Não há como fatiar o art. 62 da CF para respeitá-lo apenas em parte.

A pandemia exige soluções novas, eficazes e rápidas. Porém, não pode colocar em risco conquistas institucionais, como a representada pela efetivação das comissões mistas pelo Supremo Tribunal Federal e a declaração de inconstitucionalidade da apresentação de parecer diretamente em plenário.

Em momentos de crise é preciso aprimorar a qualidade da deliberação, e não o contrário. Diminuição de prazo para deliberação não é compatível com a ausência de previsão de comissões mistas, ainda mais em contrariedade a texto constitucional expresso. Pandemia pode exigir isolamento social, mas não autoriza o silenciamento de vozes e o desrespeito às forças plurais do Congresso Nacional. A Constituição não testa positivo para coronavírus.