Direito

Medidas estatais coercitivas e pandemia

Análise sobre intervenção coercitiva do Estado em casos de violação das medidas que tentam conter a propagação da pandemia

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Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que veem. Cegos que mesmo vendo, não veem” – Ensaio sobre a cegueira, por José Saramago.

Nos últimos dias, tem sido intenso o debate acerca da legitimidade da intervenção coercitiva do Estado em casos de violação das medidas que tentam conter a propagação da pandemia concernente à versão mais recente do coronavírus.

Tão logo foram noticiados os primeiros episódios relativos à atuação das forças policiais sobre indivíduos que infringiram as respectivas providências, surgiram manifestações sustentando a invalidade jurídica das restrições impostas à liberdade ambulatorial. Em lives promovidas por meio de redes sociais, alguns chegaram a afirmar que o policial que efetuasse prisão em flagrante nestas circunstâncias estaria, inclusive, sujeito a responder por crime de abuso de autoridade, nos termos da Lei n. 13.869/2019.

 

Tal entendimento é equivocado.

Inserido no Título VIII (que trata dos crimes contra a incolumidade pública) e, mais especificamente, no capítulo III (que trata dos crimes contra a saúde pública, sendo este o bem jurídico protegido na hipótese), o artigo 268 do vigente Código Penal estabelece que quem infringir determinação do poder público, destinada a impedir propagação de doença contagiosa, estará sujeito à pena de detenção, que pode variar de um mês a um ano, além de multa.

Na atualidade, o mencionado comando legal é complementado e detalhado: (1) pela Lei n. 13.979/2020, que especificou as respectivas medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública (entre elas, o isolamento e a quarentena); (2) pelo Decreto Legislativo n. 6, de 20/3/2020, no qual o Congresso Nacional reconheceu o estado de calamidade pública em razão da pandemia e (3) pela Portaria Interministerial n. 5, de 17/3/2020, que disciplina a aplicação das providências compulsórias previstas na referida Lei.

Em que pese a escassa aplicabilidade prática do citado tipo penal na história do Direito brasileiro, é preciso atentar para duas premissas básicas.

A primeira diz respeito ao princípio da continuidade das leis, segundo o qual, sob a ótica técnica, não existe distinção, quanto à eficácia e validade, entre lei velha e lei nova ou, no jargão popular, entre lei que “pega” ou que “não pega”. Toda e qualquer lei é vigente até que outra a modifique ou revogue, nos termos do artigo 2º da assim nominada Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei n. 4.657/1942, com a redação determinada pela Lei n. 12.376/2010).

A segunda premissa é pertinente ao fato de que a técnica normativa aplicável no caso em análise não configura novidade. O crime de infração de medida sanitária nada mais espelha senão um exemplo concreto do que o meio acadêmico secularmente conhece como norma penal em branco, ou seja, um comando de comportamento de índole criminal cujo conteúdo proibitivo é apenas completado por outra norma, segundo a precisa lição de Nelson Hungria[1]. Logo, não há que se falar em crime criado por decreto.

É importante esclarecer também que tal expediente tem sido pacificamente chancelado pela jurisprudência, não somente no Brasil, mas em diversos países democráticos. É o que ocorre, por exemplo, nas incriminações relativas a entorpecentes, que também ostentam a saúde pública como bem jurídico protegido e encontram-se atualmente estabelecidas pela Lei n. 11.343/2006, sendo certo que o rol de substâncias proibidas é fixado em ato administrativo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, uma autarquia federal. Não se tem notícia de condenação judicial que, nesta seara, tenha sido anulada ou revertida por Cortes Superiores com base em suposta violação ao princípio da legalidade penal.

Na hipótese em análise, a pandemia da Covid-19 configura fato de conhecimento público, notório, de sujeição global involuntária e que, por ora, não tem tratamento terapêutico ou preventivo cientificamente seguro, fatores que justificam, portanto, a constrição temporária e circunstancial do direito de ir e vir como única medida possivelmente eficaz para tentar evitar a saturação do sistema hospitalar, isto segundo a opinião majoritária das autoridades médicas e sanitárias ao redor do mundo.

Ainda assim, há também quem invoque a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Decreto n. 678/1992), conhecida também como Pacto de São José da Costa Rica. De fato, este tratado internacional consagra uma série de liberdades legítimas, sendo festejado pela parcela doutrinária que apregoa uma espécie de versão brasileira para o garantismo penal originalmente preconizado por Luigi Ferrajoli[2], que tem utilizado o diploma normativo referido como panaceia, autêntico remédio para quase todos os temas relacionados ao sistema penal.

Ocorre que a aludida Convenção consagra, também de maneira expressa, um relevante direito fundamental da coletividade que segue sendo esquecido ou seletivamente desprezado pelos defensores de uma liberdade absoluta e que, no presente caso, mostra-se letalmente nociva.

Refiro-me ao artigo 32, onde se atesta que “toda pessoa tem deveres para com a família, a comunidade e a humanidade” e que “os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, em uma sociedade democrática”. Tal norma reproduz o ditado extraído da sabedoria popular – e, porque não dizer, o princípio geral do direito – segundo o qual o direito individual termina onde começa o alheio. Em outras palavras, não há direitos absolutos, eis que, do contrário, permitir-se-ia a perversão da própria ideia de liberdade.

Outrossim, cabe chamar a atenção para o fato de que a intervenção estatal coercitiva para efetivar as tentativas de contenção da vigente pandemia tem se verificado em diversos países desenvolvidos, tais como EUA e França, berços do Estado Democrático e Constitucional de Direito. Isto denota o grau de descabimento das arguições de arbitrariedade e antijuridicidade observadas no Brasil a respeito da questão, sobretudo diante da imprescindibilidade de que o interesse social prevaleça – repita-se: neste momento e circunstância – em relação ao exercício egoístico e irresponsável da liberdade individual.

Nessa perspectiva, esse garantismo “à brasileira”, nos moldes radicais e míopes em que se revela, impede o enxergamento da relevância da preservação da vida em sociedade, razão pela qual esta corrente de pensamento encontra-se isolada e desprovida de qualquer amparo ou similitude em ordenamentos jurídicos estrangeiros[3].

Conclusivamente, a violação das medidas de restrição de locomoção decretadas visando à contenção da vigente pandemia implica no cometimento do crime previsto no artigo 268 do Código Penal, ensejando, portanto, de forma válida, a aplicação das respectivas consequências punitivas.

Ante a ausência de ilicitude em sua conduta, o agente público que empreender atos de contenção ou investigação desta atividade delitiva não incorre na prática de qualquer infração penal, sendo perfeitamente legítimas e juridicamente válidas tanto a condução do infrator à sede policial (se necessário, mediante uso da força), quanto a eventual formalização da prisão em flagrante (cf. art. 61 c/c art. 69, p. único, da Lei n. 9.099/95). Ao revés, se, por sentimento ou interesse pessoal, o agente público se omitir, deixando de atuar para fazer cessar a citada atividade criminosa, aí sim este incorrerá na prática do crime de prevaricação (cf. art. 301 do Código de Processo Penal c/c artigo 319 do Código Penal).

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[1] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 6. Ed. Rio de Janeiro: LMJ, 2014, p. 90.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. Ed. Trad. Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2006, p. 785.

[3] DE GRANDIS, Rodrigo. Prisões processuais: uma releitura à luz do garantismo penal integral. In: Garantismo penal integral: questões penais e processuais penais, criminalidade moderna e a aplicação do modelo garantista no Brasil. CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PELELLA, Eduardo (Org.). Salvador: Juspodivm, 2010, p. 368.