Coronavírus

O Congresso Nacional, o veto presidencial e a telemedicina

Importância da apreciação do Veto Parcial aposto por Bolsonaro, ao artigo 6º da Lei 13.989/2020, sobre o uso da telemedicina

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Muito se discutiu, nos últimos dias, sobre a utilização da Telemedicina, como um importante meio auxiliar de assistência médica à população de nosso País, seja no âmbito público, seja no âmbito privado, em tempos de pandemia, cujos efeitos, provocados pelo tão devastador e ainda pouco conhecido Covid-19, vêm mundialmente causando sérias consequências à sociedade, com um todo.

Por telemedicina, tem-se, originariamente, como sendo o uso da Medicina à distância, mediante intervenções, diagnósticos, decisões de tratamentos e recomendações, que sejam baseadas em dados, documentos e demais informações transmitidas, por sistemas de telecomunicação[i]. Seguindo-se nesta linha, o Conselho Federal de Medicina definiu a Telemedicina como sendo uma modalidade de exercício da Medicina, através do uso de meios interativos de comunicação audiovisual e de dados, com a finalidade de proporcionar a assistência, educação e pesquisa em Saúde[ii].

 

Na escala maior de utilização das várias vias da Telessaúde[iii], firmaram-se várias ferramentas de assistência à saúde, com especial enfoque no teleatendimento, para os fins de estabelecimento de diagnósticos e indicação terapêutica, com segunda opinião do respectivo médico especialista, bem como na propriamente telecirurgia, com auxílio da robótica e inteligência artificial.

Superados estes primeiros contornos introdutórios ao tema, é digno de nota que a questão relacionada à teleconsulta sempre suscitou no meio médico grande polêmica, principalmente quando da atualização da regulamentação, ora vigente, que redundou, inclusive, na tentativa de se estabelecer parâmetros para este tipo de assistência remota, passível de não ser pela modalidade, em regra, presencial. Em assim sendo, não alcançado o desejável consenso, a respectiva Resolução, baixada pelo mesmo Conselho Federal de Medicina acabou por ser posteriormente revogada, retornado ao status quo ante.[iv]

Acontece que o Ministério da Saúde declarou o Estado de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), por força da eclosão da Pandemia do Covid-19, alinhando-se às vias de atuação mundial firmadas pela Organização Mundial de Saúde, nos termos da Portaria nº 188/GM/MS e da Lei nº 13.979/2020, de modo que fossem operacionalizadas as medidas de enfrentamento à pandemia, com vistas em especial à redução da circulação de pessoas no País.

Em sendo assim, o Conselho Federal de Medicina atravessou ofício, em resposta a prévia consulta, no qual informava que havia decidido aperfeiçoar ao máximo a eficiência dos serviços médicos prestados, e em caráter excepcional, enquanto durasse o combate ao contágio da Covid-19, reconhecendo a possibilidade e a eticidade da utilização da telemedicina, além do disposto na Resolução CFM nº 1.643/2002, autorizando, por sua vez, apenas a teleinterconsulta, para exclusivamente viabilizar a troca de informações e opiniões entre médicos, para auxílio diagnóstico ou terapêutico[v].

Ato continuo, o Ministério da Saúde baixou diretriz normativa, que estabeleceu, em caráter excepcional e temporário, as ações de Telemedicina, inclusive com a possibilidade de consulta, visando efetivar as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional, advindas da pandemia do Covid-19[vi].

Em paralelo, transcorreu iniciativa legislativa que, mediante a propositura do Projeto de Lei nº 696/2020, estabeleceu regramento mínimo, mas suficiente para o uso da Telemedicina, enquanto perdurar a dita pandemia, disciplinando-a com vistas inclusive a (i) conceituá-la como sendo o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde; (ii) estabelecer a obrigação do médico em bem informar ao paciente sobre todas as limitações inerentes ao uso da telemedicina, tendo em vista a impossibilidade de realização de exame físico durante a consulta; (iii) impor a observância dos padrões normativos e éticos usuais do atendimento presencial, inclusive em relação à contraprestação financeira pelo serviço prestado, não cabendo ao poder público custear ou pagar por tais atividades quando não for exclusivamente serviço prestado ao Sistema Único de Saúde (SUS)[vii]

Acontece que, após a apreciação e aprovação deste projeto lei pelo Congresso Nacional, foram apostos dois vetos parciais por Sua Exa. o Presidente da República à agora Lei 13.989/2020, os quais estabeleciam as seguintes regras, quais sejam: (i) a validade das receitas médicas apresentadas em suporte digital, desde que possuíssem assinatura eletrônica ou digitalizada do profissional que realizou a prescrição, dispensando-se a apresentação em meio físico (Parágrafo único do art. 2º); e (ii) a atribuição de competência ao Conselho Federal de Medicina para regulamentação da telemedicina, após o período de sua temporária vigência (Art. 6º).

Neste excelente espaço acadêmico, que amplifica o campo político-jurídico das ideias, antes da propriamente dita análise das razões do veto parcial[viii] que teriam como fundamento negar a atribuição legal do Conselho Federal de Medicina para a devida regulamentação da telemedicina, merecem ser verificados quais seriam os limites legais de sua competência originária.

Para tanto, observa-se que a Lei 3268/1957 (norma de regência e de criação da dita autarquia), a teor do disposto nos seus artigos 2º e 15, estabeleceu as atribuições do Conselho Federal e dos Conselhos Regionais de Medicina, de modo que possam disciplinar o exercício ético da profissão, como órgãos fiscalizadores, disciplinadores e julgadores. Por este prisma a regulamentação do exercício ético-profissional da medicina, em suas diversas vertentes de atuação, está consolidada no rol de suas competências, não havendo motivo para que se subtraia este poder-dever, justamente a respeito desta tão sensível, complexa, útil e promissora área da telemedicina.

Nesta mesma linha seguiu o legislador ordinário, quando preceituou o caráter experimental de procedimentos em Medicina, ratificando a competência fiscalizadora dos Conselhos Regionais de Medicina, como também para aplicação das sanções pertinentes em caso de inobservância das normas determinadas pelo Conselho Federal de Medicina, conforme estampado no artigo 7º da Lei 12.842/2013, conhecida como Lei do Ato Médico.

Mas retornando às razões que levaram ao dito veto presidencial, têm-se que estas se consubstanciaram na justificativa de que: “A regulação das atividades médicas por meio de telemedicina após o fim da atual pandemia é matéria que deve ser regulada, ao menos em termos gerais, em lei, como se extrai do art. 5º, incisos II e XIII, da Constituição”.[ix]

Há de verificar que não está a se discutir a necessidade de se criar uma segunda lei para disciplinar o livre o exercício da medicina, enquanto ofício/profissão, e eventual atendimento de suas respectivas qualificações, nem tampouco se cogitar ao exame da máxima constitucional de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (artigo 5º, incisos II e XII da Constituição).

Isto porque, como sabemos, a lei regulamentadora da profissão médica já existe, estando em plena vigência e bem traduzida na Lei do Ato Médico, citada acima, na qual já estão compactadas todas as atividades médicas passíveis do seu pleno exercício, conforme listadas nos seus artigos 2º e 3º.

Por outro vértice, também não se mantém hígida a referida fundamentação contida no veto presidencial, tendo em vista não estar em jogo – frise-se a exaustão – a regulamentação das atividades médicas passíveis de serem praticadas, pois estas já foram contempladas por lei anterior.

Em verdade, a controvérsia legislativa, ora instaurada, está resumida ao estabelecimento de regras que disciplinem o alcance e a forma como serão tais atividades médicas desenvolvidas pelo meio eletrônico/digital – característica que marca conceitualmente a telemedicina – segundo o atual avanço tecnológico, matéria esta que se encontra naturalmente sob o crivo regulamentador do Conselho Federal de Medicina.

No mais, com a palavra, o Congresso Nacional!

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[i] Segundo o seu clássico conceito instituído na “Declaração de Tel Aviv sobre Responsabilidades e Normas Éticas na Utilização da Telemedicina”, adotada pela 51ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, em Tel Aviv, Israel, em outubro de 1999. In http://www.dhnet.org.br/direitos/codetica/medica/27telaviv.html.

[ii] Conforme o teor da Resolução CFM 1643/2002. In http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2002/1643_2002.pdf.

[iii] Aqui compreendida como sendo o Sistema mais amplo, na qual se insere a Telemedicina, hoje também aplicada no Sistema Único de Saúde.

[iv] RESOLUÇÃO CFM nº 2.227/2018 (REVOGADA). In https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2227.

[v] Oficio CFM Nº 1756/2020 – COJUR In https://portal.cfm.org.br/images/PDF/2020_oficio_telemedicina.pdf.

[vi] Portaria nº 467/2020. In http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-467-de-20-de-marco-de-2020-249312996.

[vii] Texto final do PL 696/2020 aprovada pelo Congresso e enviado à sanção presidencial. In https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_pareceres_substitutivos_votos?idProposicao=2239462 e https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141263.

[viii] In http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=515&pagina=6&data=16/04/2020

[ix] In http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=515&pagina=6&data=16/04/2020