Pandemia

A crise sanitária na União Europeia frente à Covid-19 e a solidariedade

A solidariedade torna-se elemento central para analisar se a atuação da União Europeia frente à Covid-19

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Crédito: Pixabay

A União Europeia, organização supranacional que conta atualmente com 27 Estados-membros tornou-se (assim como em outras regiões do mundo) epicentro do contágio gerado pelo coronavírus – Covid-19.

Neste contexto, a solidariedade, como fundamento e valor estipulado pelo Tratado de Lisboa (2009), torna-se elemento central para analisar se a atuação da União Europeia frente à Covid-19 deu-se de modo reativo e não proativo, retardando a adoção de medidas eficientes, coordenadas e coerentes.

Para compreender como o “agire” da União Europeia (UE) poderia ter ocorrido de forma mais rápido, evitando a propagação dos contágios, deve-se dividir as medidas tomadas em três âmbitos que se inter-relacionam: sanitário, político e econômico.

O foco desta análise está, sobretudo, no setor sanitário, a partir do apoio dado entre os Estados-membro no recebimento de doentes advindos de outros Estados, o fornecimento de equipamentos hospitalares e insumos médicos e de proteção etc. Contudo, deve-se também examinar o aspecto jurídico, relacionado com a atuação das instituições europeias na concertação e diálogo entre os membros do bloco.

A solidariedade também chamada “Cláusula de Defesa Mútua” conforma-se pela assistência mútua (artigo 42.7 [1] do Tratamento de Funcionamento da União – TFUE) e, também, pela cláusula de solidariedade prevista no Tratado da União Europeia em seu artigo 3º (que trata justamente dos objetivos da União) e no Tratado de Funcionamento da União Europeia em seu artigo 222 [2].

A assistência mútua fora anteriormente utilizada nos eventos de ataques terroristas na França e não se aplica ao presente caso. Para a situação da Covid-19, o foco maior centra-se na Cláusula de Solidariedade e no consequente questionamento de ser tal previsão um dever ou uma mera faculdade a impor-se aos Estados-membros e à própria União.

A resposta pode ser encontrada nos parágrafos do referido artigo 222 TFUE, especialmente em seu parágrafo 2º [3]. Esta menção à solidariedade entre Estados-membros seria, portanto, um dever ou teria um caráter “facultativo”, ou seja, cada Estado responderia ao pedido de ajuda feito pelo Estado afetado, a partir de suas possibilidades e respectivos interesses, ou haveria um dever de atendimento ao pedido?

O parágrafo 3 do artigo 222 TFUE demonstra que a solidariedade poderia representar um compromisso “obrigatório”, tendo em vista a edição da Decisão do Conselho de 24 de junho de 2014 relativa às regras de execução da cláusula de solidariedade pela União (2014/415/UE).

Com foco na mencionada Decisão, foram adotados os mecanismos que podem ser acionados para a coordenação e resposta da UE em caso de catástrofe e/ou crise (como é o caso da Covid-19):

  1. Mecanismo Integrado da UE de Resposta Política a Situações de Crise (IPCR), aprovado pelo Conselho em 25 de junho de 2013, cuja função é estabelecer um diálogo político para tomada de decisão que, posteriormente, demandará medidas operacionais para contornar a crise;
  2. Mecanismo de Proteção Civil da União estabelecido pela Decisão 1313/2013/UE do Parlamento Europeu e do Conselho que visa reforçar a cooperação entre os Estados-Membros e a União e facilitar a coordenação no domínio da proteção e defesa civil;
  3. A Decisão 1313/2013/UE que cria o Centro de Coordenação de Resposta de Emergência (CCRE), com capacidade operacional permanente colocada à serviço dos Estados-Membros e da Comissão Europeia (instituição executiva da União Europeia), para a plena utilização dos meios previamente disponibilizados (recursos humanos, infraestrutura, insumos, etc.)

O IPCR foi estabelecido como uma base para o Mecanismo de Proteção Civil da UE para trazer maior flexibilidade, agilidade e aproveitamento de recursos, estruturas e capacidades existentes no bloco, sendo gerado a partir de uma resposta das instituições políticas, em especial, o Conselho Europeu.

Na prática, a invocação da Cláusula de solidariedade pode ser feita pelo Estado-membro afetado que dirige sua solicitação ao Conselho e à Comissão via CCRE.

Uma vez invocada a Cláusula, a presidência do Conselho aciona o IPCR e, simultaneamente, a Comissão que como instituição executiva deverá:

i) identificar os instrumentos relevantes da União para responder a crise;

ii) indicar ao Conselho em que medida tais instrumentos são suficientes;

iii) apresentar relatórios periódicos e informações em tempo real sobre o estado da situação gerada pela crise, coordenando a atuação conjunta dos Estados-membros.

Diante da situação gerada pela Covid-19, o IPCR foi acionado no dia 28 de janeiro de 2020 no modo de compartilhamento de informações (acionamento parcial) e no dia 2 de março de 2020 no modo de ativação total, gerando as seguintes medidas: criação de uma reserva comum de material médico; apoio às pesquisas científicas (com financiamento europeu de 140 milhões de euros); esforços para repatriar cidadãos europeus; realocação de 37 bilhões de euros do orçamento da UE no âmbito da política de coesão; apoio à empresas e trabalhadores facilitando as regras de ajuda estatal (Programa SURE para manutenção de empregos e apoio às empresas com montante previsto de 540 bilhões de euros), além de outros medidas como a flexibilidade orçamentária, apoio à inovação tecnológica, entre outros.

Diante desse breve panorama, a análise deve-se centrar se o sistema funcionou de modo efetivo ou, ao contrário, foram identificadas falhas que poderiam ter sido contornadas, dada a dimensão e imprevisibilidade gerada pela Covid-19.

Observe-se o cronograma de ações demonstrando um lapso temporal que resultou numa resposta tardia e descoordenada pela União e que não foi condizente, portanto, com a urgência da situação:

26/02: Itália aciona o Mecanismo Europeu de Proteção Civil, solicitando a provisão de máscaras e equipamentos de proteção sanitário;

27/02: Centro de Resposta de Emergência da UE solicita a todos os Estados-membros que se mobilizassem para atender à solicitação italiana;

06/03: Resposta da Comissão Europeia: exige medidas específicas e menciona que outros países da UE devem examinar e observar a experiência italiana, dada a probabilidade de situações semelhantes ocorrerem em outros Estados europeus. A União Europeia inicia medidas para flexibilização do regramento comum para compra dos materiais (regime diferenciado de contratação pública);

16/03: UE adota (somente nesta data) medidas concretas como o fechamento das fronteiras e do espaço aéreo europeu, a criação de linhas rápidas (fast lines) para transporte de mercadorias, alimentos, remédios etc.

31/03: Adoção das Orientações da Comissão Europeia sobre contratos públicos em virtude da crise gerada pela Covid-19 (2020/C 108 I/01) para agilizar a compra de equipamentos hospitalares, insumos sanitários e medicamentos;

01/04: A Presidente da Comissão Ursula von Leyen pede desculpas à Itália em carta enviada ao Jornal La Repubblica[4].

Nota-se, com essa breve linha do tempo, que houve falha no atendimento ao pedido da Itália (invocação da solidariedade e dos mecanismos a ela vinculados) feito em 26 de fevereiro de 2020 e que, nas palavras da própria presidente da Comissão Europeia Ursula von Leyen, não resultou em uma resposta célere, firme e com a eficiência necessária para evitar a catástrofe vivenciada.

Quais lições a aprender por parte da União Europeia? Para além da discussão sobre a distribuição formal de competências e dos mecanismos previamente estabelecidos, deveriam ser reforçadas as ações em matéria de proteção civil, evitando-se a demora no tempo de resposta, ao representar um fator crucial para evitar a propagação do vírus.

Além disso, a solidariedade, como dever de cooperação não só estabelecida pelo Tratado da UE, mas que fundamenta toda atuação europeia, deve pautar-se em medidas concretas e coordenadas por todos os Estados-membros, sempre sob o manto da atuação da União.

A solidariedade deve ser encarada como um dever, não podendo existir, como no caso da Covid-19, recusa ou inércia diante da invocação de solidariedade feita por um dos membros da União.

Conforme expressado pela Presidente da Comissão Ursula von Leyen em seu pedido de desculpas: “é preciso reconhecer que, nos primeiros dias da crise, diante da necessidade de uma resposta europeia comum, muitos pensaram apenas em seus próprios problemas domésticos. Eles não perceberam que só podemos derrotar essa pandemia juntos como uma União. Tal atitude foi prejudicial e poderia ter sido evitada.” (grifo nosso)

A União Europeia deve demonstrar sua força, concretizar seu lema (Unida na diversidade), ressaltar como a integração entre os Estados, os povos e as culturas serve não só ao crescimento econômico, mas também para o bem-estar, a dignidade humana, a preservação da vida…

Espera-se que os esforços empreendidos durante os mais de 70 anos de integração regional não tenham sido em vão e, acima de tudo, não sejam destruídos pelo tsumani sanitário no qual Europa e o mundo se encontram…

 


[1] Tratado da União Europeia pode ser consultado em https://eur-ex.europa.eu/resource.html?uri=cellar:9e8d52e1-2c70-11e6-b497-01aa75ed71a1.0019.01/DOC_2&format=PDF, acesso em 30 mar 2020.

[2] Artigo 222 do Tratado da União Europeia, disponível em: https://eur-lex.europa.eu/resource.html?uri=cellar:9e8d52e1-2c70-11e6-b497-01aa75ed71a1.0019.01/DOC_2&format=PDF, acesso em 30 mar 2020.

[3] Artigo 222, § 2 do Tratado da União Europeia, disponível em https://eur-lex.europa.eu/resource.html?uri=cellar:9e8d52e1-2c70-11e6-b497-01aa75ed71a1.0019.01/DOC_2&format=PDF, acesso em 30 mar 2020.

[4]https://rep.repubblica.it/pwa/commento/2020/04/01/news/europa_ursula_von_der_leyen_bruxelles_scusateci_ora_la_ue_e_con_voi-252912437/?ref=nrct-1, acesso em 02 abr 2020.