Artur Muxfeldt
Associado da prática tributária do escritório BVZ Advogados
O instituto da transação tributária, que no âmbito federal foi instituído pela Lei nº 13.988/20 e que vem sendo instituído também por outros entes federados, tem se demonstrado uma interessante alternativa para os contribuintes regularizarem seus débitos por meio de negociação e de concessões mútuas entre Fisco e contribuintes, sobretudo no atual cenário de crise econômica.
Com base em levantamento realizado pelo Núcleo de Pesquisa em Tributação do Insper, divulgado em fevereiro de 2021[1], no caso das transações individuais federais, por exemplo, o crédito fiscal total transacionado corresponde a aproximadamente R$ 1,4 bilhão de reais, sendo que sobre esse montante já foram aplicados descontos de aproximadamente R$ 520 milhões de reais, ou seja, 37% do total. De acordo com o mesmo estudo, o maior desconto identificado até então foi de aproximadamente R$ 155 milhões de reais.
Como se depreende, sob determinadas condições os contribuintes podem obter significativos descontos para a regularização de seus débitos, por meio da redução de multa, juros e/ou encargos legais.
No entanto, há muito se discute, tanto perante a Receita Federal quanto o Poder Judiciário, qual seria o tratamento tributário adequado às remissões ou perdões de dívidas, especialmente no que toca à tributação dos valores anistiados por IRPJ/CSLL e PIS/COFINS.
A controvérsia acerca da tributação desses valores se deve ao fato de que, sob o ponto de vista estritamente contábil, a remissão de dívida representa redução do passivo tributário da empresa, o que, a rigor, gera aumento do seu patrimônio líquido, muito embora não haja efetivo ingresso financeiro. Com base nisso, o Fisco costuma defender que a redução do passivo consiste em receita tributável.
No entendimento dos contribuintes, contudo, não haveria que se falar em efetivo acréscimo patrimonial nessas hipóteses, mas sim de mera diminuição de passivo, o que por si só, não seria suficiente para repercutir na base de cálculos dos referidos tributos, que demandariam ingresso de recursos novos com capacidade de agregar positivamente ao patrimônio do contribuinte.
Apenas para ilustrar o impacto tributário dessa definição, no exemplo acima de desconto de R$ 155 milhões, caso o contribuinte seja optante pelo regime não cumulativo de apuração e ofereça tais valores à tributação, deverá arcar com PIS/COFINS de 9,25%, o que corresponderia à uma carga tributária aproximada de R$ 14 milhões reais, que seria acrescida, ainda, por IRPJ/CSLL, cuja alíquota nominal é em regra de 34%.
Há casos em que a legislação tributária é expressa quanto à não inclusão de valores anistiados na base de cálculo dos referidos tributos, a exemplo da Lei nº 11.941/09[2], que instituiu o antigo “Refis da Crise” e da nova Lei de Falências (Lei nº 14.112/20[3]), que, após a recente derrubada do veto presidencial pelo Congresso Nacional, em 16 de março de 2021, passou a afastar a tributação do denominado “haircut” sobre os passivos não tributários em planos de Recuperação Judicial.
Contudo, há casos como, por exemplo, o do Programa Especial de Regularização Tributária (PERT)[4] e o da própria Transação Tributária, de que trata o presente artigo, em que as respectivas normas regulamentadoras não abrigam previsão expressa para a exclusão da tributação dessas reduções do passivo.
Nessas hipóteses, tanto a jurisprudência administrativa quanto a judicial ainda não se posicionaram em definitivo sobre o tema. Contudo, no âmbito da Receita Federal o entendimento atual é de que tais valores perdoados devem ser oferecidos à tributação, com base no tratamento contábil dado a essas reduções.
Nesse sentido, destaque-se, por exemplo, a Solução de Consulta COSIT nº 65 de 01.03.2019, que ao analisar a remissão de dívida no âmbito do PERT entendeu pela incidência do IRPJ, da CSLL, do PIS e da COFINS sobre os valores de juros e multas reduzidos.
No âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), atualmente, o entendimento também é desfavorável aos contribuintes, no sentido de que os valores perdoados deverão ser levados à tributação, a exemplo da decisão da 3ª Turma da Câmara Superior que manteve a autuação para a cobrança de PIS e COFINS sobre os valores de remissão de dívida (Processo nº 16327.720855/2014-11 e Acórdão nº 9303-008.341)[5].
Por outro lado, perante o Poder Judiciário, a tese dos contribuintes vem ganhando cada vez mais força após os julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF), sob o rito da repercussão geral, dos Recursos Extraordinários nº 606.107 e nº 574.706, por meio dos quais definiu-se o entendimento de que o conceito tributário de “receita bruta” não se confunde com o conceito contábil, para fins de apuração da base de cálculo do PIS e da COFINS, uma vez que aquele deve corresponder ao efetivo ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo. Embora tais julgamentos não tratem especificamente sobre a tributação de valores perdoados, o fato é que o racional ali adotado para a definição do conceito de receita deve ser igualmente aplicado nessa hipótese.
Nessa linha, embora ainda sejam poucos os precedentes sobre o tema, merece destaque a recentíssima decisão da 6ª Vara Federal de Campinas, em fevereiro de 2021, que, com base no mencionado entendimento do STF, deferiu a liminar pleiteada pelo contribuinte, em mandado de segurança, para afastar a inclusão de dívidas perdoadas por instituição financeira da base de cálculo do PIS e da COFINS (Processo nº 5002526-13.2021.4.03.6105).
Diante desse cenário, conclui-se que a despeito da ausência de previsão expressa em lei sobre a não tributação das reduções do passivo na transação tributária e da atual indefinição da jurisprudência, verifica-se que, entendimento em sentido contrário, não só nos parece fugir do intuito pretendido pela transação tributária, sobretudo em relação às empresas que aderiram ao programa durante processo de recuperação judicial, como também acaba por contrariar o atual entendimento do STF sobre o conceito de receita.
Portanto, apesar da atual indefinição da controvérsia, entendemos que os contribuintes possuem relevantes fundamentos para afastar a tributação das reduções do passivo no âmbito da transação tributária. Contudo, deverão ser avaliados os prós e contras de se ingressar com medida judicial para se discutir antecipadamente a cobrança ou se aguardar uma definição da Receita Federal sobre o tema em específico, observado o risco de eventual lavratura de auto de infração.
[1]https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2021/03/Relatorio_Insper_Transacao_Fevereiro-2021_final.pdf
[2] Art. 4º (...) Parágrafo único. Não será computada na apuração da base de cálculo do Imposto de Renda, da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, da Contribuição para o PIS/PASEP e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS a parcela equivalente à redução do valor das multas, juros e encargo legal em decorrência do disposto nos arts. 1o, 2o e 3o desta Lei.
[3] Art. 50-A. (...)
I - a receita obtida pelo devedor não será computada na apuração da base de cálculo da Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins);
II - o ganho obtido pelo devedor com a redução da dívida não se sujeitará ao limite percentual de que tratam os arts. 42 e 58 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995, na apuração do imposto sobre a renda e da CSLL; e
III - as despesas correspondentes às obrigações assumidas no plano de recuperação judicial serão consideradas dedutíveis na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL, desde que não tenham sido objeto de dedução anterior.
[4] Instituído pela Lei nº 13.496, de 2017.
[5] Cabe registrar que tal precedente é anterior à extinção do voto de qualidade, havendo possibilidade de alteração desse posicionamento futuramente.