Arbitragem

Anulações de cláusula arbitral por hipossuficiência de uma das partes acendem alerta

Jurisprudência do STJ é consolidada no sentido oposto, mas decisões preocupam por oferecer riscos à segurança jurídica

arbitragem
Crédito: Unsplash

A falta de recursos financeiros de uma das partes foi o fundamento para um acórdão recente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) afastar a cláusula arbitral assinada anteriormente. A decisão acende um alerta na comunidade arbitral. Esta não foi a primeira nem a única decisão do tipo. Não se trata de um movimento consistente de virada de jurisprudência e tem se dado, por ora, de forma mais concentrada nas instâncias ordinárias. Ainda assim, especialistas da área entendem ser necessário ter atenção a esta questão.

A opção pela arbitragem é feita no momento da celebração dos contratos, por meio de cláusula que define que, diante de um conflito, o procedimento por meio do qual a solução será buscada é a arbitragem. Ela é um meio alternativo de resolução de conflitos que se consolidou no Brasil entre atores privados, dentre outros motivos, por evitar a morosidade do Judiciário e pela especialização do tratamento e a flexibilidade do procedimento. De acordo com a lei, não cabe recurso contra uma sentença arbitral e, até aqui, o Judiciário tem uma postura de defesa desse princípio.

Portanto, decisões tomadas pela Justiça no sentido de anular a cláusula arbitral colocam árbitros e especialistas em alerta. Eles temem que a segurança jurídica do instituto possa ser ameaçada se acórdãos deste tipo se avolumarem. Eles sustentam que a opção é feita no momento da assinatura do contrato entre entes privados e que disponham de patrimônio. Além disso, em caso de hipossuficiência comprovada, há alternativas a serem verificadas pela própria arbitragem.

Acórdão de São Paulo

Sob o argumento da hipossuficiência de uma joalheria, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP afastou cláusula arbitral em uma relação de franquia. O colegiado destacou que há jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no sentido de afastar a arbitragem em razão da situação de hipossuficiência de franqueado frente à franqueadora. Assim, determinou o retorno dos autos para reabertura da instrução.

O acórdão é de dezembro de 2022. O relator do caso na 1ª Câmara Reservada, Cesar Ciampolini, ao fazer referência a um julgado anterior, afirmou que os franqueados tiveram ciência da cláusula compromissória, conforme o contrato, o termo de declaração e aceite, com a assinatura do sócio operador da franqueada. “Mas, apesar dessa inequívoca ciência, havendo hipossuficiência, reconhecida pela isenção ora concedida às custas processuais, fato é que os franqueados não poderão suportar as despesas de uma arbitragem.”

No caso, a joalheria argumentou que a “situação fático-jurídica imposta aos franqueados impede o acesso ao sistema de Justiça”. Portanto, procuraram o Judiciário para obter a nulidade do contrato, além de indenização para reparação das perdas e danos e pelo abuso de dependência econômica.

Na fundamentação, a primeira instância reconheceu que a cláusula arbitral deveria ser aplicada: “há que se destacar que as partes pactuaram contrato de franquia, cuja natureza é eminentemente empresarial, presumindo-se a situação de relativa igualdade”. A sentença, portanto, extinguiu o processo, sem resolução de mérito, condenando os autores aos pagamentos de custas e honorários.

A franqueada apelou, argumentando que a cláusula em questão é de adesão, afirmando que houve imposição da cláusula arbitral. No caso, o procedimento arbitral foi mensurado em cerca de R$ 100 mil, um ônus que seria pesado demais. “A natureza da cláusula compromissória neste contrato funciona apenas como instrumento para estabelecer um salvo conduto para que a franqueadora possa praticar toda a sorte de ilegalidade comercial”, alegou.

Já a franqueadora pontuou que a cláusula arbitral, devidamente assinada pelas partes, é plenamente válida. “A intenção de se esquivarem de suas obrigações pecuniárias fica muito clara quando verificamos que a situação narrada sequer versa sobre a situação real dos apelantes. Trata-se de um estratagema claro para o descumprimento obrigacional”.

No voto, Ciampolini cita outra decisão da mesma Câmara. Neste outro caso, o acórdão afirma que o problema não estaria na forma, mas em se retirar o sujeito do sistema de Justiça: “Há que se refletir sobre o caso concreto, de modo que a aparente legalidade (preenchimento dos requisitos formais, como o do art. 4º da Lei 9.307/96), não seja fonte de ilegalidade, caracterizado pelo abuso de direito (art. 187 do Código Civil), por exceder ‘manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

O desembargador avalia que sem a devida informação quanto ao custo de uma arbitragem, não há como se validar a cláusula compromissória. A Câmara identificou, então, uma situação assimétrica. Naquele caso, a discussão se dá em cima da questão da transparência entre as partes envolvidas no contrato.

Ambiente consolidado

Advogada, árbitra e mediadora, Eliana Baraldi se preocupa com decisões deste tipo. Especialmente por esta, de São Paulo, estado conhecido por ter varas especializadas na matéria e por ter ajudado a consolidar a solidez do instituto no país. “Eu respiro arbitragem há tempos e posso falar que, sinceramente, isso choca um pouco e desestabiliza o ambiente de segurança jurídica que vem sendo construído ao longo dos anos pela comunidade arbitral”, disse.

De acordo com ela, uma cláusula arbitral inclui uma renúncia expressa da jurisdição estatal. “E essa renúncia tem que ser inequívoca e feita por escrito, o que está previsto na Convenção de Nova York, na nossa Lei de Arbitragem. As partes têm que ser capazes e têm que dispor sobre direito patrimonial disponível. E o STJ já reconheceu diversas vezes que a hipossuficiência não é causa de invalidade da cláusula compromissória.” Assim, ela espera que haja recurso à Corte e que o acórdão seja revisto.

“Ele tinha uma situação econômica favorável, até porque estava comprando uma franquia. Uma circunstância superveniente de dificuldade financeira não autoriza a flexibilização da renúncia válida da jurisdição que fez lá atrás, como não o isentaria de uma multa, por exemplo, não o isentaria do cumprimento de uma obrigação contratualmente assumida”, continuou Baraldi.

Para o advogado Ian Velásquez, especialista na área, decisões como esta não estão em consonância com o entendimento jurisprudencial do STJ. Uma das razões é que qualquer matéria de validade, existência e eficácia de cláusula compromissória deve ser primeiro decidida pelos árbitros. “Essa é a prática que se tem nos principais pólos de arbitragem no mundo. Existem alguns países que funcionam um pouco diferente, como os Estados Unidos, mas a princípio essa é a regra. Ou seja, o árbitro é quem vai analisar a própria jurisdição, se uma cláusula compromissória é válida ou não, se existe ou não e se tem ou não eficácia”, explica.

Velásquez também destaca que quando as partes celebram qualquer contrato, ainda mais no cenário empresarial, existe um equilíbrio econômico-financeiro do contrato e a cláusula arbitral não escapa disso. “Existe uma legítima expectativa do credor e do próprio devedor de que a solução dos conflitos será dirimida por um tribunal arbitral ou por um árbitro único a depender de como as partes convencionaram essa cláusula compromissória. E simplesmente afastar a cláusula sem pensar nesse equilíbrio econômico-financeiro do contrato deve ser visto com a devida preocupação”, afirmou.

Ambos os especialistas acrescentam que há a possibilidade do financiamento da arbitragem por terceiros. Ainda que o tema possa gerar polêmicas e discussões, há fundos no Brasil (TPF – third party funding) que financiam litigantes em procedimentos arbitrais, tanto que as câmaras arbitrais têm se preocupado em estabelecer regras para tais hipóteses.

“Isso porque mesmo empresas que estão em recuperação judicial ou falência não podem nem por esse fato afastar a cláusula arbitral. A mera alegação de hipossuficiência não é suficiente para afastá-la. Por isso, a análise tem que ser muito rigorosa”, pontuou Velásquez. “Se todo mundo que alegar que não tem dinheiro ter afastada a cláusula, isso gera uma insegurança muito grande e pode gerar o que a gente chama de tática de guerrilha, ou seja, acionar o Judiciário para fugir da arbitragem.”

Discussão recorrente

Em outro exemplo, em 2021, a Justiça do Rio de Janeiro publicou acórdão que afastou a obrigatoriedade do cumprimento da cláusula arbitral pela parte devedora. No caso, argumentou que a massa falida não tinha condições de arcar com os custos da arbitragem, ante à fragilidade econômica. A relatora do caso no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) entendeu que, à época da contratação da cláusula compromissória, a empresa devedora tinha condições de se submeter ao procedimento arbitral, mas, em estado falimentar daquele momento, o cenário foi alterado e a incapacidade financeira não permitiria que cumprisse a obrigação firmada anteriormente.

Da mesma forma, acrescentou que a massa falida não poderia ser obrigada a se submeter ao procedimento arbitral e, de outro lado, que seria possível discutir a controvérsia na Justiça, por força do princípio da inafastabilidade da jurisdição. Ela ressaltou que, diferentemente da arbitragem, no processo judicial é possível pleitear a gratuidade da Justiça. Na ocasião, o acórdão também recebeu críticas da comunidade arbitral, que lembrou a jurisprudência do STJ que reconhece que a hipossuficiência não é causa suficiente para caracterização das hipóteses de exceção ao princípio da kompetenz-kompetenz, segundo o qual cabe aos árbitros verificarem, em primeiro lugar, se eles são competentes para julgar aquela causa.

Em outro precedente, o STJ reafirmou que controvérsias “acerca da existência, validade e eficácia da cláusula compromissória deve ser resolvida, com primazia, pelo juízo arbitral”, impossibilitando-se “essa discussão perante a jurisdição estatal”.