A jornada de um paciente oncológico é composta por muitas etapas, desde as primeiras consultas com o especialista, realização de exames diagnósticos, possíveis cirurgias e o início de terapias. O processo naturalmente complexo pode tornar-se ainda mais desafiador quando o paciente sabe que existe uma nova tecnologia indicada para o tratamento do seu tipo de câncer, mas que ele ainda não pode ter acesso a ela – esse é o caso, principalmente, da população acolhida pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Os obstáculos enfrentados pelos brasileiros com câncer e tratados no sistema público de saúde para ter acesso às drogas oncológicas mais efetivas e adequadas para cada um foi um dos principais temas discutidos durante o 12° Fórum Nacional Oncoguia. ‘’O paciente oncológico aguarda a chegada de novas tecnologias, porque ele sabe que é aquilo que pode garantir sua cura ou o controle da sua doença, permitindo na prática que ele viva mais e melhor. Esse avanço, muitas vezes, já existe e é frustrante demais saber que não são todos que têm acesso a ele’’, diz Luciana Holtz, fundadora e presidente do Instituto Oncoguia, responsável pela organização do evento, que ocorreu entre os dias 26 e 29 de abril. Com o tema “Priorizando o Câncer além da Pandemia”, o Fórum trouxe pautas atuais do setor, tirando os holofotes da crise sanitária de Covid-19, protagonista dos debates da saúde pública dos últimos dois anos.
Entre o surgimento de uma nova tecnologia para o tratamento do câncer e o momento em que esse medicamento chega ao organismo do paciente, há um longo caminho que envolve análise, aprovação e financiamento. Para ser comercializado no Brasil, o medicamento deve ser aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e passar pela avaliação de preço da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED).
A partir disso, o processo se bifurca. Para que a droga seja disponibilizada pelos planos de saúde, se ela for oral, ela é levada para análise da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) enquanto, no SUS, qualquer nova tecnologia deverá passar pela análise da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec). Para auxiliar na tomada da decisão, a Conitec utiliza a Avaliação de Tecnologia em Saúde (ATS), que leva em consideração uma série de critérios. Com uma indicação positiva para a incorporação do medicamento, o Ministério da Saúde tem 180 dias para disponibilizar a tecnologia no SUS.
O processo de incorporação de novas tecnologias no SUS já é longo por natureza – a Conitec tem um prazo de 180 dias, prorrogáveis por mais 90 dias, para concluir a avaliação. Mas um tratamento aprovado não significa um tratamento acessível. O anúncio de que um novo medicamento poderá ser disponibilizado pelo SUS é sempre motivo de comemoração entre os pacientes, mas isso não significa que a nova terapia alcançará todos que necessitam dela, nem mesmo que a droga estará disponível rapidamente após sua aprovação pela Conitec. O 12° Fórum Oncoguia exibiu o relato de Silvia, paciente com câncer de mama metastático que tem acesso, por meio da saúde suplementar, à medicação mais adequada atualmente para o tratamento da sua doença: os inibidores de ciclina (CDK). Silvia explicou que se aproximou de mulheres que compartilham o mesmo tipo de câncer, mas que não são tratadas com a mesma tecnologia na saúde pública – algumas nem sabem que ela existe, inclusive. O tratamento em questão foi incorporado pela Conitec em dezembro do ano passado e ainda está dentro do prazo para ser disponibilizado pelo SUS, mas é preciso que ele caiba no orçamento destinado a esse tipo de câncer dos hospitais da saúde pública – e esse nem sempre é o caso.
Embora o avanço científico e o surgimento de drogas oncológicas ocorram de forma cada vez mais acelerada, o financiamento para disponibilizar esses tratamentos na rede pública não acompanha o processo na mesma velocidade. O palestrante André Ballalai, diretor de Acesso & Valor da IQVIA, nos Estados Unidos, destacou que o modelo de financiamento das tecnologias oncológicas foi desenhado em um contexto de duas décadas atrás, quando não se falava em medicina personalizada e terapia-alvo para o tratamento do câncer.
O arsenal de tratamentos era vasto, mas os custos eram muito semelhantes entre eles. “Precisamos pensar em um modelo que reflita o setor oncológico de 2022 e que irá refletir os avanços das próximas décadas, com terapias cada vez mais personalizadas’’, diz Ballalai. O que ocorre é que, hoje, na maioria dos casos, os tratamentos disponibilizados pelas unidades de saúde são pagos pelo SUS através da Autorização de Procedimentos de Alta Complexidade (APAC), que estabelece o orçamento para cada tratamento dos diferentes tipos de câncer. Contudo, os hospitais têm autonomia para utilizar o valor da forma que optarem, sem a obrigação de seguir as recomendações mais atuais. Isso significa que, mesmo com a avaliação positiva da Conitec para a incorporação de um medicamento, o valor da APAC para tratar a doença nem sempre é suficiente para bancar os custos da nova droga e o hospital opta por manter um tratamento mais ultrapassado e menos caro. Nesses casos pode haver, inclusive, uma sobra no orçamento, o que foi apontado no Fórum como mais uma evidência de que essa forma de financiamento deve ser repensada, pois ela pode gerar dificuldade no acesso aos tratamentos e desigualdade dentro de um mesmo sistema de saúde.
Foi o que ocorreu, por exemplo, com a incorporação da imunoterapia para o tratamento do melanoma metastático que, passados os 180 dias após o aval da Conitec, ainda não havia chegado aos pacientes do SUS por falta de disponibilidade orçamentária. Recentemente, foi anunciado que a APAC destinada para esse tipo de câncer aumentaria em quase sete vezes e passaria de cerca de R$ 1.080 para R$ 7.500 – uma diferença considerável que chegou a surpreender os médicos e especialistas do setor. Porém, o valor não parece ter sido calculado com base no que realmente é preciso para adquirir a imunoterapia, o que faz com que os pacientes sigam sem acesso ao tratamento e o hospital ganhe uma verba a mais para continuar administrando uma droga menos eficaz.
Algumas soluções foram apresentadas durante o Fórum. Denizar Vianna, ex-secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde e professor associado da UERJ, destacou a importância de haver um orçamento específico para a oncologia, como já ocorre com o HIV. Vianna explicou que cerca de 80% da demanda oncológica do SUS é composta por seis principais tipos de cânceres e que seria possível focar nos tumores mais prevalentes no Brasil para criar um modelo de priorização explícita deles em “mandatos’’ de quatro anos.
Dessa forma, durante esse período, seria possível focar no pacote com mais previsibilidade, monitorando os avanços de tecnologias e fazendo as adaptações necessárias com o orçamento. Atualmente, a opção de compra centralizada dos medicamentos – quando é o próprio Ministério da Saúde que se encarrega de negociar, adquirir e distribuir as drogas aos hospitais — é uma exceção no mundo da oncologia. ‘’O Ministério da Saúde tem um poder de barganha muito grande porque negocia a compra em uma escala maior e isso ajudaria muito a oncologia, que representa a segunda maior causa de mortes no Brasil, ficando atrás apenas das doenças cardiovasculares’’, conclui Vianna.
O Fórum também mostrou que os obstáculos para o acesso a uma nova tecnologia podem ser ainda maiores dependendo de qual unidade da rede pública o paciente é atendido. Para mergulhar no assunto, o palestrante Tiago Farina Matos, conselheiro estratégico de Advocacy do Oncoguia, apresentou os resultados de uma pesquisa realizada em 2017 pelo instituto. Batizada de ‘’Meu SUS é diferente do teu SUS’’, o estudo analisou, via Lei de Acesso à Informação, a uniformidade na oferta de tratamento oncológico em mais de 100 unidades habilitadas na rede pública. Os resultados mostraram que cada centro hospitalar dispõe de protocolos diferentes – a maioria segue um padrão abaixo do que é preconizado, alguns estão na média e outros – em menor quantidade – chegam a ficar acima do que é esperado. ‘’Se de 2017 para cá trazemos essa discussão novamente é porque o problema ainda existe. O SUS deveria funcionar como uma espécie de franquia de lanchonete, onde tudo é padronizado. Uma vez dentro do SUS, não deveríamos ter como saber em que estado brasileiro nos encontramos porque o tratamento deveria ser igual em todos os locais. Hoje, infelizmente, é o CEP de uma pessoa que determina sua expectativa de vida’’, explicou Matos.
Ainda dentro do debate sobre o assunto, a enfermeira Talita de Souza Matos, da Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas, ressaltou que a diferença no atendimento muitas vezes é notada até mesmo em municípios de um mesmo estado, entre cidades próximas. ‘’Já acompanhei pacientes com um mesmo tipo de câncer iniciando o tratamento em menos de 60 dias e outros, em um local quase vizinho, tendo acesso ao mesmo medicamento com um intervalo de tempo bem superior. Muitos deles, inclusive, nem sabem o nome da droga administrada e o que há de disponível no mercado. É preciso haver uma alfabetização da saúde’’, diz.
A pesquisa ‘’Percepções da População Brasileira sobre o Câncer’’, realizada pelo Oncoguia em parceria com o DataFolha e divulgada durante a abertura do Fórum, mostrou que 63% dos brasileiros escolhem o câncer como doença que deveria ser priorizada pelo governo. Além disso, 42% da população associa a doença a sentimentos negativos, citando a morte com frequência. ‘’Estar bem informado sobre a doença faz toda a diferença, pois quanto mais o paciente tem acesso às informações, mais ele participa do tratamento, questionando e cobrando seu médico e sendo mais bem amparado quando precisa’’, conclui Luciana Holtz.
Sobre o Instituto Oncoguia
Fundado em 2009, o Instituto Oncoguia é responsável pelo Fórum Nacional Oncoguia, que reúne gestores, profissionais da saúde, parlamentares e pacientes para discutir o cenário da oncologia no Brasil. O evento desde ano foi 100% online, teve mais de 2.800 inscrições e mais de 60 palestrantes. Para debater sobre a incorporação de novas tecnologias e as diferenças no SUS, o Fórum contou com a presença de Luciana Holtz, fundadora e presidente do Oncoguia; Antônio Brito, diretor executivo da ANAHP (Associação Nacional de Hospitais Privados); Denizar Vianna, professor Associado da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Carisi Anne Polanczyk, cardiologista e coordenadora do INCT-IATS; André Ballalai, diretor Acesso & Valor do IQVIA-USA; Vânia Cristina Canuto Santos, diretora do Departamento de Gestão e incorporação de Tecnologias e Inovações em Saúde do Ministério da Saúde; Eduardo Calderari, vice-presidente executivo da Interfarma; Rafael Kaliks, diretor científico do Instituto Oncoguia; André Santos, gerente de dados do Oncoguia; Tiago Farina Matos, conselheiro estratégico de Advocacy do Oncoguia; Angelo Maiolino, professor de hematologia da UFRJ; Pascoal Marracini, presidente da Associação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Combate ao Câncer (ABIFICC), e Talita de Souza Matos, associada da Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas FEMAMA.