
A Secretaria de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde firmou um acordo de cooperação técnica com a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) para acelerar a transformação digital no Sistema Único de Saúde (SUS). A estratégia prevê a análise da maturidade dos sistemas de informação no país a partir de uma lista de indicadores, como a forma de gerenciamento de dados até a infraestrutura, a regulação e a administração dos serviços.
Uma vez identificadas as necessidades e formulado o projeto, a ideia é ir em busca de financiamento para garantir as melhorias. Uma das possibilidades é solicitar linhas de apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que já financia projetos semelhantes de cooperação entre a Opas e outros países.
“Com a cooperação, o Brasil receberá diretrizes e orientações dentro da política formulada pela Opas. Ao mesmo tempo que nos alinhamos com diretrizes mais amplas, temos oportunidade de dar visibilidade para políticas que serão desenvolvidas internamente”, afirmou ao JOTA a secretária de Informação e Saúde Digital, Ana Estela Haddad.
O primeiro passo do acordo foi a realização nesta semana de um seminário em Brasília para discutir a saúde digital no Brasil e as necessidades mais urgentes.
Um dos pontos destacados foi a desigualdade de acesso. Dados preliminares de um levantamento realizado pelo Ministério da Saúde indicam, por exemplo, que das cerca de 43 mil unidades de atenção primária do país em funcionamento, 1.300 não têm conectividade. Outras 900 têm conectividade ruim. Aproximadamente 400 unidades estão instaladas onde não há como ter conexão por internet por via terrestre. “Precisamos pensar em soluções portáteis. Será preciso verificar qual a melhor alternativa para esses locais”, afirmou a secretária.
E é justamente nas regiões mais isoladas que a saúde digital é tão importante. “São as regiões que mais necessitam. Conectividade é essencial para fixar o profissional de saúde na região e para ter segunda opinião, por exemplo”, afirmou o diretor do Departamento de Saúde Digital e Inovação, Cleinaldo Costa.
Na semana passada, uma reunião foi feita com o Ministério das Comunicações para pensar alternativas. Ana Estela, que também integra o conselho do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações, afirmou que um levantamento será feito com a Secretaria de Atenção Primária à Saúde e com a Secretaria de Saúde Indígena para identificar as necessidades e fazer investimentos para garantir a conexão. “Vamos buscar articulação com outras áreas de governo e outros parceiros que possam aportar recursos para contribuir.”
A infraestrutura é um dos aspectos chave, mas nem de longe o único. Ana Estela observa que o uso de tecnologias digitais para melhorar a saúde no SUS não é algo recente. Em 2007, foi criado o programa de telessaúde, em parceria com o Ministério de Ciência e Tecnologia, voltado para a melhoria da qualidade de atendimento, usando também ferramentas de educação permanente, além de um processo de digitalização das unidades de atenção primária.
A saúde digital no SUS foi se instalando aos poucos. Na pandemia da Covid-19, contudo, diante das necessidades, o uso das ferramentas digitais aumentou de forma expressiva.
A mudança trouxe um imenso potencial benéfico: ampliação de acesso, melhoria do cuidado, treinamento de profissionais de saúde. Ao mesmo tempo, ampliaram-se os riscos, tanto para a saúde individual como coletiva.
Durante as discussões nesta semana, Ana Estela resumiu: “A pandemia intensificou o tráfego online de dados pessoais de informações sensíveis como dados de saúde, deixando o setor de saúde digital penetrável e vulnerável a ataques cibernéticos e de hackers colocando em risco a saúde e a vida de pacientes. Dados de saúde são interoperáveis, de alto risco de potencial lesivo e discriminatório”.
Os exemplos de riscos são vários. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) faz referências à forma como devem ser tratadas informações de saúde, mas deixa uma série de lacunas que precisam ser regulamentadas. Como agir, por exemplo, no caso de agentes que não possuem licença sanitária mas usam dados de saúde para obter vantagens? Como proteger as pessoas de que seus próprios dados sejam usados a seu desfavor? Quem será responsabilizado, por exemplo, por erros de tratamentos decorrentes de falhas em algoritmos?
O mesmo raciocínio pode ser aplicado à inteligência artificial. Ela pode ser um recurso importante para auxiliar na vigilância epidemiológica, no telecuidado, para garantir boas práticas clínicas. “Por outro lado, a automatização de decisões no processo de sistema de saúde podem refletir tendências à exclusão e discriminação. Ou servir como instrumento para facilitar e melhorar o acesso a populações vulneráveis a ações e cuidados de saúde. Muito para o bem ou para o mal. Esse equilíbrio é um desafio a se buscar”, disse Ana Estela no encontro.
As necessidades, afirmou a secretária ao JOTA, são inúmeras. E não há como se estabelecer uma lista de prioridades, um cronograma. “Temas estão interconectados. Difícil escolher um só. Temos de um lado a LGPD, uma preocupação com resguardar os usuários. Precisamos lembrar que o ministério controla os dados, mas os dados são dos usuários.”
Ana Estela Haddad cita ainda o uso da inteligência artificial. “A tomada de decisão a partir do aprendizado de máquina também traz repercussões quanto a responsabilidades. São todas questões que guardam aspectos éticos, aspectos de valores, de regulamentação que vão exigir uma discussão integrada.”
O acordo de cooperação com a Opas vai auxiliar em diversos aspectos. Pelo desenho proposto, equipes deverão trabalhar em municípios dispostos a participar da primeira etapa da iniciativa. A expectativa é que o grupo inicial, formado por municípios com diferentes graus de maturidade, comece as atividades ainda no primeiro semestre.
“Vamos identificar gestores estaduais e municipais motivados para iniciar o processo. Não será possível fazer o país todo numa etapa única. Também não vamos conseguir esgotar os temas numa gestão. Mas o trabalho de implementação e transformação digital em diferentes contextos e diferentes graus de maturidade ajudará a construir uma experiência de aprendizado”, disse a secretária.
Esse ganho, conta, ocorreu com o programa Telessaúde Brasil. “O programa iniciou pontualmente e, com o tempo, houve uma progressão.”
O gerente de Sistemas de Informação e Saúde Digital da Opas, Marcelo D’Agostino, afirmou em entrevista ao JOTA: “O projeto não está previsto para ser feito em um ano ou dois. Ele vai se transformando, a partir da identificação do que é importante. Como a própria natureza da tecnologia da informação”. D’Agostino ressalta a importância de se definir um padrão de atuação. “E, aos poucos, ele vai ganhando vida própria.”
Iniciativas semelhantes são realizadas em 22 países, segundo ele. O diretor do Departamento de Evidências e Inteligência para Ação em Saúde da Opas, Sebastian Garcia Saiso, também destacou ao JOTA as diferenças de maturidade digital, identificadas não apenas no Brasil. “O avanço é heterogêneo. Não há um nível compartilhado. O modelo de cooperação técnica permite identificar as necessidades de cada local, as prioridades e, a partir do diagnóstico, desenhar estratégias específicas.”
D’Agostino diz estar convicto de que, uma vez mapeadas as necessidades, recursos para implementação serão necessários. Ele observa que a cooperação vai além de medidas pontuais. Um dos objetivos é fazer diretrizes, roteiros para que interessados em desenvolver estratégias possam iniciar as atividades, independentemente de estarem no grupo selecionado para fazer os trabalhos iniciais.
Ana Estela Haddad afirma que a próxima etapa será fazer o planejamento estratégico e projetos. “Depois disso, vamos atrás dos recursos. Na gestão pública o que chama recurso é ter projeto. Se não tem projeto, você não vai encontrar dinheiro em lugar nenhum.”