É indiscutível o poder atribuído e conquistado pelas Supremas Cortes e Cortes Constitucionais. Acadêmicos de todo o mundo discutem o alcance da autoridade desses Tribunais, e questionam até mesmo a legitimidade do controle exercido sobre as decisões políticas, tudo de maneira completamente normal, como deve acontecer em um ambiente democrático.
Nos últimos anos, contudo, surgiram casos em que agentes políticos não apenas buscam reduzir os poderes dos Tribunais Constitucionais, mas também demonstram pretensões de submetê-los às suas vontades. Esse fenômeno foi verificado em países como Venezuela, Hungria e Polônia, onde a independência de tribunais sucumbiu diante de investidas de líderes autoritários. Com isso em mente, decidi realizar uma série de entrevistas com estudiosos de diversos países para discutir como as Cortes vêm perdendo sua independência diante de ataques iliberais.
No texto de estreia desta série, apresento o caso de Israel, onde centenas de milhares de pessoas têm ido às ruas, semana após semana, para protestar contra a tentativa do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e de sua coalizão de promover uma “reforma” que enfraqueceria substancialmente a Suprema Corte daquele país. Entre as medidas propostas é possível verificar uma “cláusula de superação”, que autorizaria o Parlamento a tornar sem efeito decisões da Corte com apenas 61 dos 120 votos do Legislativo; ademais, a proposta também estabelece um quórum de 80% dos votos do Tribunal para que uma legislação seja invalidada; por fim, Netanyahu também quer permitir que a escolha de juízes – inclusive os da Suprema Corte – seja feita por políticos sem qualquer forma de contrapeso.
Para tratar do caso, contei com a participação de Yaniv Roznai, professor de de Direito Constitucional da Universidade Reichman, que jogou luz sobre a situação e explicou como a sociedade civil, as elites, os acadêmicos e a mídia têm se mobilizado para lutar contra as medidas que colocariam em risco a própria separação de poderes em Israel.
Professor Yaniv, para começar nossa conversa, estou curioso sobre a origem e os motivos dos ataques à Suprema Corte de Israel. Quando e por que isso se tornou um problema significativo?
Essa é uma excelente pergunta. O ataque à Suprema Corte começou há mais de uma década, por volta de 2009. O ex-ministro da Justiça, Professor Daniel Friedman, queria limitar a autoridade do Tribunal, e isso deu início à tendência. No entanto, a ideia ganhou mais força em 2015, quando tivemos um governo de direita liderado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. O governo fez propostas para diminuir o poder do Tribunal, incluindo restringir a possibilidade de ações judiciais e intervenções. Ayelet Shaked, então Ministra da Justiça, foi uma das principais defensoras dessa iniciativa. Ela publicou um vídeo famoso com um perfume chamado “fascismo”, onde ela cheirava o perfume e dizia: “cheira como democracia para mim”. Isso foi feito para limitar a autoridade do Tribunal e permitir um governo sem a separação de poderes. Com o atual governo sendo o mais extremista de direita e religioso que já tivemos, a ameaça à independência judicial está aumentando.
Professor, exatamente o que levou o Primeiro-Ministro e sua coalizão a seguir esse caminho? Eu pergunto isso porque já vi o senhor comparar a situação de Israel com o que aconteceu na Hungria, onde a Suprema Corte irritou o governo com decisões progressistas e acabou perdendo o confronto. Isso também aconteceu com a Suprema Corte da Polônia, que seguiu caminho semelhante. Vimos o que aconteceu lá, com a nomeação de juízes alinhados ao governo, redução da capacidade do Judiciário de exercer seu papel contramajoritário etc.
Com isso em mente, eu pergunto: o que, no comportamento do Tribunal – em suas decisões –, levou Netanyahu a concluir que ele precisa enfraquecer o Tribunal?
De uma perspectiva neutra, é claro que a Suprema Corte tem sido bastante ativista em vários aspectos nos últimos 30 anos. Por exemplo, a Corte expandiu a possibilidade de ações judiciais, permitindo que qualquer pessoa vá diretamente à Corte Superior. Além disso, não há limitações para a justiciabilidade, o que significa que qualquer decisão do governo ou lei pode ser levada ao Tribunal. É discutível se o Tribunal tem autoridade explícita para revisar legislação, e o Tribunal afirmou tal autoridade, mas foi mais um raciocínio no estilo Marbury v. Madison.
O Tribunal tem o poder de rever emendas constitucionais?
A Suprema Corte tem sido bastante ativista no sentido de expandir sua autoridade e poder nas últimas décadas, o que mudou o equilíbrio entre os poderes do governo e tornou o Tribunal extremamente forte. Nos últimos anos, a Corte chegou a afirmar que tem a autoridade para revisar as Leis Fundamentais em si mesmas, e expandiu a doutrina da razoabilidade na revisão administrativa para revisar qualquer decisão de qualquer agência administrativa, ministro ou governo, independentemente de ser “razoável” ou não.
Então, tudo isso de alguma forma mudou o equilíbrio entre os poderes e tornou o Tribunal extremamente forte. No entanto, nos últimos 15 anos, o primeiro-ministro Netanyahu sempre bloqueou várias tentativas de reformar o Judiciário. Então, você pode se perguntar: por que agora? Por que agora ele está disposto a fazê-lo, se até então ele impediu isso?
Aqui, acho que uma análise de realpolitik é importante. Primeiro, Netanyahu está sendo julgado criminalmente na Corte Distrital de Jerusalém por corrupção e fraude. Acredito que agora ele não tenha um incentivo para proteger o Tribunal, algumas pessoas até podem dizer o contrário, ou seja, que ele tem motivos para querer controlar a nomeação de juízes, aqueles que poderiam julgar seu recurso criminal. Então, temos essa noção de que o Primeiro-Ministro não tem estímulos para proteger o Judiciário.
Em segundo lugar, temos partidos religiosos que visam promover várias iniciativas que são iliberais e discriminatórias, e o Tribunal provavelmente as impediria. Portanto, esses partidos religiosos têm seus incentivos para limitar o Tribunal.
Também temos partidos de extrema direita na coalizão que buscam a anexação do território ocupado, e o Tribunal é um órgão que pode bloquear isso. Logo, eles também têm estímulos para se livrar do Tribunal e de qualquer limitação a esse projeto.
E, finalmente, temos alguns ministros que foram condenados por acusações criminais e o Tribunal disse que é “irrazoável” nomeá-los como ministros, então eles têm seus próprios interesses pessoais em enfraquecer a Corte e se livrar da doutrina da razoabilidade.
Há um acúmulo de interesses aqui, a maioria deles políticos e estritamente pessoais, infelizmente.
O que o senhor quis dizer quando se referiu a ativismo? A pergunta é importante porque é uma palavra que, pelo menos nos últimos anos, tornou-se plurissignificativa.
Eu acredito que aqueles que argumentam que a Suprema Corte de Israel é ativista diriam que ela vem expandindo suas autoridades e intervindo mais na jurisdição dos Poderes políticos. Esta é uma definição justa de ativismo judicial. Contudo, se olharmos para a taxa de intervenção do Tribunal na legislação, ela não parece ser extremamente ativista. Desde 1992, quando a Lei Fundamental de direitos humanos foi promulgada, o Knesset (Parlamento) aprovou mais de 4000 leis, das quais o Tribunal invalidou apenas 22 delas ou disposições delas. No entanto, a questão é que a autoridade da Corte vem, de fato, se expandindo e ela tem adquirido mais poder em relação aos outros Poderes do Estado.
A revisão de emendas constitucionais recai tanto sobre a forma quanto sobre a substância?
Essa é uma pergunta complicada. A resposta é sim, tanto em forma quanto em substância. Desde 2017, a Suprema Corte desenvolveu duas doutrinas. A primeira é a doutrina das emendas constitucionais inconstitucionais, que afirma que o Knesset (Parlamento), mesmo quando age como um poder constituinte, não tem a autoridade para mudar os valores fundamentais do Estado como um Estado judeu e democrático. Esses princípios são a base da ordem constitucional. Embora a Corte tenha declarado isso em uma importante decisão de 2021, ela ainda não utilizou essa doutrina como base para invalidar uma Lei Fundamental.
A segunda doutrina é a do poder constituinte abusivo, ou do abuso das Leis Fundamentais. De acordo com essa doutrina, o Tribunal decidiu que uma norma jurídica que não é destinada a ser uma norma constitucional não pode ser elevada ao status de norma constitucional simplesmente pela mudança de seu título. Isso é especialmente verdadeiro para normas que são específicas para um indivíduo, temporárias por natureza ou cuja substância não deve ser incluída na Constituição.
A doutrina do poder constituinte abusivo já foi aplicada em dois casos pela Suprema Corte. Nestes casos, o Tribunal não invalidou a Lei Fundamental em questão, mas emitiu uma notificação de invalidação ao Knesset, servindo como um aviso de que se a mesma norma for repetida, o Tribunal a invalidará, algo semelhante a um cartão amarelo.
O que o Parlamento precisa fazer para implementar essas mudanças na Suprema Corte? O Parlamento tem a vontade e o quórum para fazê-lo? Essas mudanças podem ser feitas por meio de leis ordinárias ou precisam ser promulgadas como Leis Fundamentais?
Em Israel, não há um procedimento especial para promulgar ou alterar uma Lei Fundamental. É como a legislação ordinária e pode ser aprovada com maioria simples em um dia. Atualmente, o governo da coalizão possui 64 dos 120 membros do Knesset, o que significa que eles têm a maioria e a vontade política para aprovar qualquer legislação que desejarem, tanto procedimental quanto formalmente.
No entanto, a coalizão carece de legitimidade porque há uma ampla objeção a isso que chamam de “reforma”. Todas as semanas, há protestos com 150.000 a 200.000 pessoas protestando contra ela. A elite acadêmica, a elite econômica e a indústria de alta tecnologia também são contra. Se eles aprovarem essa legislação como está, é provável que o Tribunal a invalide, deixando-os sem legitimidade.
Portanto, eles estão buscando agora um compromisso que lhes permita encontrar uma fórmula equilibrada e obter alguma legitimidade da oposição.
Os protestos em massa em defesa da Suprema Corte que vimos em Israel nas últimas semanas são, de fato, atípicos, além de carregarem um significado importante do ponto de vista democrático. Ao contrário da Venezuela, Hungria ou Polônia, o público em Israel está defendendo a independência de seu Judiciário.
No entanto, tenho outra pergunta. O senhor mencionou que a Suprema Corte tem o poder de invalidar essas mudanças. Vimos uma situação semelhante, embora não exatamente a mesma, na Índia, onde o Parlamento enfrentou a Suprema Corte sobre a autoridade do Tribunal de invalidar certos tipos de leis. Então, minha pergunta para o senhor, com um pouco de especulação, é o que se espera que aconteça se o projeto de lei for aprovado?
Antes de mais nada, deixe-me falar algo sobre os protestos. Eu acredito que parte da vantagem que vimos em termos de tamanho e intensidade dos protestos se deve às lições que aprendemos com o que aconteceu na Polônia e na Hungria. Como acadêmicos constitucionalistas, vimos a erosão democrática ocorrer em outros países e fomos rápidos em reconhecer os sinais de alerta. Nos últimos três meses, temos feito uma quantidade incrível de trabalho para conscientizar [a população] sobre as possíveis implicações da reforma proposta. Temos dado palestras pro bono por todo o país, em casas particulares, escolas e empresas de alta tecnologia. Também concedemos entrevistas na mídia, tanto em Israel quanto no exterior, e produzimos vídeos curtos para compartilhar no YouTube, TikTok e outras plataformas de mídia social. Todo esse trabalho foi feito para educar o público sobre as mudanças propostas e seu impacto potencial. Então, de uma maneira modesta, acredito que tenhamos contribuído para a conscientização pública sobre o que está em jogo.
Quanto ao Tribunal, como mencionei anteriormente, ele declarou que o Knesset não pode violar os valores básicos do Estado como um país democrático. Se essa reforma for aprovada como está, é provável que a Corte a anule usando essa fórmula, o que nos levará a uma crise, porque é questionável se o governo dará ouvidos ao Tribunal. Se eles não o fizerem, enfrentaremos a crise final – uma situação em que a burocracia, incluindo a polícia e o exército, deve decidir a quem ouvir: o governo ou o Tribunal.
Espero que não cheguemos a esse ponto.
As agendas populistas que temos visto em muitos países não param nos tribunais; os tribunais são apenas um passo em uma escada na contramão da liberdade, parafraseando o livro do professor Timothy Snyder. Então, preciso perguntar: houve outras medidas tomadas pelo governo israelense para restringir os direitos das minorias ou algo do tipo nos últimos anos?
Sim, definitivamente. Enfraquecer o Poder Judiciário é apenas um dos muitos meios. Vimos várias tentativas de limitar os “guardiões dos portões” (gatekeepers), como conselheiros jurídicos do governo. Houve também tentativas – bem-sucedidas – de capturar a posição de ombudsman e várias leis destinadas a limitar o poder da oposição. Além disso, houve tentativas de enfraquecer a mídia e os canais de comunicação, bem como o setor cultural. Por exemplo, o Estado não patrocina concertos que minam os valores do Estado.
Práticas retiradas diretamente do manual de Legalismo Autocrático.
Sim, sim. Vimos leis que limitam a sociedade civil, organizações de esquerda, organizações de direitos humanos e acadêmicas. É exatamente o mesmo manual.
O modus operandi de Netanyahu, como ficou claro, segue padrões retirados diretamente das “cartilhas” de líderes autoritários de outros países. Contudo, diferentemente de outras nações, Israel parece ter se mobilizado e lutado a tempo para frear uma escalada rumo ao iliberalismo.
Nos textos que seguintes desta série, pretendo abordar outros casos de ataques à independência judicial. Países como Venezuela, Hungria, Polônia e Turquia têm muito a contribuir para os estudos do tema, permitindo que, assim como Israel, possamos verificar quando ameaças pairam sobre nossos sistemas e, mais importante, como e quando nos mobilizarmos para combatê-las.