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A rotina de procedimentos de uma agência reguladora é por vezes monótona e hermética para grande parte da população desacostumada com os padrões técnicos que o setor de saúde exige. Com algumas exceções, essa rotina prevaleceu na Anvisa ao longo dos últimos 21 anos. Mas no contexto de uma pandemia politizada desde seu início, os holofotes que hoje apontam para a agência levantaram dúvidas sobre critérios que deveriam ser estritamente técnicos.
A suspensão do estudo clínico da vacina CoronaVac, parceria entre o laboratório chinês Sinovac e o Instituto Butantan, só ganhou atenção pelo clima beligerante entre Jair Bolsonaro e o governador de SP, João Doria. Não fossem os posts provocativos do presidente da República ou a insistência do governador em anunciar datas para o início da vacinação, o processo de análise clínica seguiria o rito que sempre teve na autarquia.
Outras duas pesquisas com voluntários brasileiros já sofreram interrupções causadas por eventos adversos. Em setembro, a AstraZeneca e a Universidade de Oxford comunicaram uma possível reação adversa grave em um dos participantes no Reino Unido, diagnosticado com mielite. Em outubro foi a vez da Janssen-Cilag suspender os testes após a morte de um voluntário que havia recebido placebo. Em ambos os casos, os estudos foram retomados após análise de comitês independentes.
Dentro desse processo, estritamente técnico, cabe lembrar que a avaliação de causalidade em eventos e efeitos adversos é objetiva, baseada em algoritmos e critérios específicos. Geralmente as agências sanitárias utilizam os nove critérios de Bradford Hill para inferir causalidade a partir de evidências epidemiológicas: força da associação, consistência de diferentes estudos, especificidade, precedência temporal, gradiente biológico, plausibilidade biológica, coerência com outro conhecimento biológico, evidências experimentais e analogia. Trata-se, portanto, de ciência pura.
Caso seja confirmada a informação de que o voluntário da CoronaVac cometeu suicídio, o procedimento de suspensão ganha contornos ainda mais específicos. No limite da plausibilidade, casos de depressão poderiam ser considerados efeitos adversos de um medicamento — ainda que não haja relatos objetivos de que a vacina interfira no sistema nervoso central. E é sempre válido atentar à terminologia nesses casos. Enquanto não há suspeita, fala-se em “evento”. Quando há suspeita de nexo causal já se pode falar em “reação” e quando há confirmação de nexo causal fala-se em “efeito”.
No caso da suspensão dos testes com a CoronaVac, o Instituto Butantan enviou a informação sobre a morte de um voluntário numa sexta-feira à noite, no último dia do prazo previsto na regulamentação, de sete dias. A Anvisa, por sua vez, determinou a interrupção, como cabe a qualquer agência sanitária que regula esse tipo de estudo, na segunda-feira seguinte. E alertou que os dados que recebera eram inconclusivos.
Foi um procedimento dentro dos padrões técnicos, prejudicado em parte por falhas no sistema eletrônico da autarquia — de acordo com a Anvisa, após os ataques cibernéticos ao DataSUS, a agência reforçou procedimentos de segurança que podem ter causado atrasos na tramitação de alguns processos internamente.
Há onze vacinas contra o coronavírus na fase três de estudos clínicos ou próximas da última etapa de pesquisas em todo o mundo. E o Brasil, em razão de suas dimensões, precisará possivelmente de mais de uma vacina para imunizar sua população. Toda e qualquer suspensão de agências reguladoras sobre vacina por um prazo razoável e a partir de dados técnicos é um bom sinal, pois significa que o produto final chegará à população com a maior segurança possível. Mas quando conflitos políticos tentam passar à frente da avaliação dos especialistas, o processo ganha contornos conspiratórios. E ninguém ganha com isso.