Fronteiras de Concorrência e Regulação

Cade subiu a barra, mas em detrimento da análise econômica?

Na primeira reprovação em sua nova composição, órgão demonstra maior rigor, mas deve seguir se pautando por evidências econômicas

26/05/2024|05:00
cade paper eldorado
Fachada externa do prédio do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) / Crédito: Jefferson Rudy/Agência Senado

Na sessão de 24 de abril, o Tribunal do Cade  (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) reprovou a aquisição da Trevo pela Knauf, empresas do mercado de drywall. Foi a primeira reprovação realizada nesta composição do conselho, recém-renovada, e gerou um justificado frisson. Será que o Cade está testando novas alturas do sarrafo, no sentido de endurecer a ação antitruste?

A pergunta é pertinente porque essa maior exigência do enforcement antitruste vem ocorrendo no mundo inteiro. A Comissão Europeia e a Competition and Markets Authority (CMA), da Inglaterra, entre várias outras, vêm liderando essa tendência há bastante tempo. Até há algum tempo, os Estados Unidos eram quase a única jurisdição relevante que perseverava em se espelhar, de maneira algo retrógrada, nos parâmetros ultra tolerantes de Chicago.

Mas o governo Biden varreu para longe o tratamento condescendente que se vinha dando à política antitruste. Adotou uma postura oposta, de combate ostensivo à concentração excessiva da economia norte-americana, especialmente no que tange às chamadas big techs, ampliando em muito o escopo da ação antitruste para além dos temas restritos à análise econômica centrada no padrão do bem-estar do consumidor[1].

Agora, parece que chegou a hora de o Brasil se mover na mesma direção – embora provavelmente de maneira menos contundente. Vejamos.

No voto do relator da operação Knauf-Trevo, Victor Fernandes, o trecho que mais chama a atenção é aquele que alega a chamada presunção estrutural: a redução de quatro para três (sem franja) do número de empresas no mercado de drywall seria evidência suficiente para assegurar que a operação redundaria em maior probabilidade de atuação coordenada entre as empresas remanescentes. No entender do relator, essa presunção seria cabível porque não haveria ferramental econômico preciso o suficiente para identificar a existência de vetores de mitigação dessa maior propensão à coordenação da estrutura de mercado resultante.

É uma argumentação engenhosa. Claramente o relator evitou o argumento da presunção estrutural para efeitos unilaterais – que vem sendo uma tônica importante da barra mais alta da política antitruste norte-americana recente, mas também da Europa e de várias jurisdições. Saiu por uma tangente tecnicamente mais sólida, porque de fato os instrumentos econômicos são menos precisos quanto à ação coordenada. Mas chegou ao mesmo lugar: falar em maior propensão à coordenação equivale a falar também em redução da rivalidade. E, em mercados muito concentrados, a rivalidade oligopólica, por sua natureza sempre muito intensa, é de longe o argumento que mais sustenta a aprovação (ainda que com remédios) de operações complexas como esta.

O voto vogal do conselheiro Diogo Thomson, secundando o relator, não poderia ser mais explícito. Afirma que a razão de decidir reside na dimensão estrutural – que requereria das empresas a demonstração de que a competição não seria prejudicada, praticamente invertendo o ônus da prova. Este é o cerne da chamada presunção estrutural: na presença de uma fusão que resulte em concentração muito elevada, não caberia à autoridade antitruste demonstrar o dano competitivo, mas sim às partes provar que a operação não traria prejuízos à concorrência. No caso em tela, dada a precariedade das ferramentas econômicas, essa prova não teria sido produzida.

Ainda assim, os conselheiros se debruçaram sobre todo o conjunto de evidências apresentadas pelas partes – para, ao final, concluírem pela sua insuficiência para demonstrar de maneira robusta a ausência de efeitos anticompetitivos da operação.

No fim das contas, o relator e seus colegas entenderam que a redução da rivalidade pela eliminação da Trevo do mercado só teria como ser reparada pela adoção de um remédio estrutural – o desinvestimento de ativos que fossem capazes de recriar uma empresa com o mesmo potencial competitiva da que seria eliminada pela operação. Dada a ausência de ativos com essa característica estrutural, não restaria outro caminho que não a reprovação.

A pergunta fundamental, a partir desse caso, é: será este o novo padrão, bem mais exigente, das análises do Cade? Que o sarrafo ficou mais alto, não há dúvida. Ainda mais se se tomar em conta também o voto vogal de Camila Alves, a única economista do colegiado, que enfatizou a virtude de uma análise da dinâmica concorrencial, em detrimento do ferramental econômico convencional.

Um aspecto adicional bastante relevante, e inédito, até onde estou informado, em âmbito internacional, vale ser mencionado. A partir do dia seguinte ao da reprovação da operação, a empresa-alvo, a Trevo, passou a apresentar em seu site uma carta dirigida aos “clientes, colaboradores, fornecedores e parceiros”, celebrando a decisão (embora sem mencioná-la expressamente) e, ainda, anunciando “o maior programa de investimento da história da Trevo Drywall”[2].

Este comunicado como que passa um atestado irretorquível quanto ao acerto da decisão do Cade. Não só terá sido preservada a condição competitiva do mercado, como ainda, cereja do bolo, catalisado uma grande ampliação de capacidade produtiva, acirrando a rivalidade em prol da concorrência e do consumidor. Pode-se aqui, poupando recursos públicos, prescindir das análises retrospectivas, que buscariam avaliar o impacto das decisões da autoridade antitruste.

Nesse contexto, tomando por parâmetro o debate e a decisão do Cade, e esse inusitado atestado proporcionado por uma das partes do processo, não é difícil concluir que o colegiado se sente encorajado a prosseguir na direção ensaiada nessa operação. Ou seja: a partir de agora, a análise econômica terá que ser oferecida em moldes mais amplos, condizentes com uma visão dinâmica estrutural dos mercados afetados. E o conjunto das evidências terá que compor uma narrativa muito convincente e robusta que ateste a saúde competitiva dos mercados afetados.

Daí, contudo, não se deve depreender que assistiremos a uma virada para o rumo mais radical que emana dos Estados Unidos. Naquela jurisdição, provavelmente, esta mesma operação seria reprovada mesmo que houvesse remédios estruturais disponíveis – e mesmo que houvesse provas econômicas mais robustas.

O Cade sempre se pautou por uma postura algo agnóstica das operações, tratando-as caso a caso. Avaliamos que este enfoque deve persistir, mas com maior exigência – com pé firme nas evidências econômicas e fáticas, mas preservando um terreno extenso para a instrução estruturada e para o contraditório. E a racionalidade (econômica!) da operação terá que seguir sendo um núcleo decisivo da argumentação oferecida ao Cade.


[1] Samuel, Leah and Scott-Morton, Fiona “What Economist Mean When They Say “Consumer Welfare Standard””. Promarket, Fevereiro de 2022. https://www.promarket.org/2022/02/16/consumer-welfare-standard-antitrust-economists/, em 21/05/24,

[2] https://www.trevodrywall.com.br/, consultado em 21/05/24.logo-jota