Luciano Aragão Santos
Procurador do Trabalho e coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas do Ministério Público do Trabalho
Após a instituição, em 1995, dos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel, a política brasileira de combate ao trabalho escravo teve importantes avanços em sua estruturação e implementação a partir da solução amistosa do Caso 11.289 (José Pereira), no qual o Estado Brasileiro reconheceu sua responsabilidade internacional pela incapacidade de prevenir a ocorrência do trabalho escravo e de punir os responsáveis pelas violações denunciadas.
Na solução amistosa, o Estado comprometeu-se a realizar modificações legislativas, medidas de fiscalização e repressão, entre as quais o fortalecimento do Ministério Público do Trabalho e do Grupo Especial de Fiscalização, e medidas de sensibilização, através de campanha nacional. Também como desdobramento do Caso 11.289, foi criada a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae).
Apesar do reconhecimento da responsabilidade, da assunção de compromissos solenes e, ao menos parcialmente, dos esforços envidados para estruturar uma política nacional de erradicação do trabalho escravo, o Estado Brasileiro veio a ser novamente demandado no Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
No caso 12.066, o Estado brasileiro foi denunciado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos pela sua omissão em investigar adequadamente a ocorrência de trabalho escravo na Fazenda Brasil Verde e pelo desaparecimento de dois adolescentes que trabalhavam no local. Em sua manifestação o Estado suscitou a inadmissibilidade da petição e que as autoridades internas realizaram as investigações devidas.
A Comissão concluiu, no Relatório 169/11, que o Estado brasileiro é responsável pela violação de direitos consagrados na convenção americana e que “a Comissão considera que o Brasil não adotou medidas suficientes e efetivas para garantir, sem discriminação, os direitos dos trabalhadores encontrados nas fiscalizações de 1993, 1996, 1997 e 2000” e que, por esse motivo, violou diversas garantias e direitos previstos na Convenção Americana. Por fim, recomendou que o Estado adote medidas efetivas para garantir os direitos das vítimas e implemente políticas públicas para erradicação do trabalho escravo[1].
A Comissão submeteu o caso à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em razão das violações de direitos humanos descritas no Relatório 169/11. A Corte declarou, em sentença datada de 20 de outubro de 2016, que o Estado brasileiro “é responsável pela violação do direito a não ser submetido a escravidão e ao tráfico de pessoas” e determinou que o Estado: i) reinicie as investigações e processos relacionados aos fatos, de forma a assegurar, em prazo razoável, a punição dos responsáveis; ii) adote medidas para que a prescrição não seja aplicada ao “delito de direito internacional de escravidão e suas formas análogas”; iii) pagamento de indenização por danos materiais e imateriais. Além das determinações incluídas nas obrigações decorrentes da condenação, constou da fundamentação da decisão que “a Corte insta ao Estado a continuar incrementando a eficácia de suas políticas e a interação entre os vários órgãos vinculados ao combate da escravidão no Brasil”[2].
Passados mais de sete anos da condenação no caso 12.066, o Estado ainda não adotou de forma efetiva as recomendações e determinações oriundas do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. No Relatório 169/11 a Comissão recomendou a adoção de medidas efetivas para garantir os direitos das vítimas de trabalho escravo e a implementação de políticas públicas para erradicação do trabalho escravo. Na sentença da Corte foi determinada a adoção de medidas para que a prescrição não seja aplicada ao “delito de direito internacional de escravidão e suas formas análogas”, além do pagamento de indenização por danos materiais e imateriais.
Desde então o Estado pouco avançou em sua política consolidada de garantia de direitos aos trabalhadores resgatados, que consiste basicamente no pagamento das verbas rescisórias e na concessão de três parcelas de seguro-desemprego. Nesse sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em relatório produzido em 2021, assinalou que “a vertente de atuação assistencial-preventiva nesta área ainda carece de desenvolvimento no país”, sendo que “não há diretrizes específicas para a proteção social das vítimas de trabalho em condição análoga à escravidão e para a interrupção do ciclo de regresso a essa prática”[3].
Além da garantia de direitos às vítimas em sentido estrito, não foi adotada pelo Estado política mais ampla, destinada a potenciais vítimas desses ilícitos. Na sentença da Corte registrou-se que “ficou evidenciada a situação de extrema e especial vulnerabilidade que afetou os trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, sobre a qual o Estado não adotou medidas suficientes ou eficazes para sua prevenção”. Nesse aspecto, pouco foi feito pelo Estado na adoção de políticas públicas voltadas à redução das vulnerabilidades relacionadas ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo. Na verdade, ao lado de tímidas iniciativas voltadas à recuperação das vítimas, inexiste política estruturada de prevenção focada na redução de vulnerabilidades.
No que diz respeito à inaplicabilidade da prescrição aplicada ao trabalho escravo, não ocorreu alteração legislativa que adequasse expressamente a lei brasileira à compreensão já consagrada no direito internacional e que foi objeto da condenação. O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 1053) requerendo que o crime de redução de pessoa a condição análoga à escravidão seja considerado imprescritível (declarando-se a não recepção, sem redução de texto, dos artigos do Código Penal relativos à prescrição no que diz respeito ao crime de redução a condição análoga à de escravo (artigo 149 do Código Penal). Vale ressaltar que em ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Trabalho (RRAg – 1000612-76.2020.5.02.0053) foi reconhecida, pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), a imprescritibilidade da reparação dos danos causados pelo trabalho escravo. Além desse caso,
Nesse contexto no qual o Estado brasileiro ainda falha no cumprimento das recomendações e determinações da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, é imprescindível tratar do Protocolo de 2014 à Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho. Se, por um lado, há reconhecidas deficiências na política brasileira, por outro há instrumento normativo internacional que, caso incorporado ao ordenamento jurídico, pode constituir significativo avanço no marco normativo de uma política estruturada para enfrentamento dessa questão.
Isso porque o Protocolo estipula uma série de obrigações aos Estados relativas à prevenção, aos direitos das vítimas e ao enfrentamento ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo, inclusive em cadeias produtivas. Entre as obrigações dos Estados incluem-se a de adotar medidas educativas para esclarecer os agentes interessados; medidas voltadas à proteção de pessoas, inclusive migrantes, contra práticas fraudulentas de recrutamento; medidas destinadas a reduzir as causas profundas e fatores de risco que podem facilitar a ocorrência de tráfico de pessoas e trabalho escravo e medidas de apoio ao due diligence no setor público e privado para prevenir os riscos dessa violação a direitos humanos. O Protocolo determina, ainda, a adoção de políticas eficazes de proteção, recuperação e reabilitação das vítimas, numa perspectiva de proteção integral e garantia ampla de direitos.
Percebe-se que o Protocolo de 2014 vai ao encontro exatamente das recomendações oriundas do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, incorporando, no direito interno, aquelas obrigações que têm sido reiteradamente objeto de atenção do sistema interamericano. Assim, sem prejuízo do reconhecimento de que o Protocolo, como norma internacional em vigor nos países que o ratificaram, já é capaz de produzir efeitos e gerar direitos e obrigações no Brasil quanto às matérias que regula, na forma dos arts. 6º da Constituição Federal e art. 8º da CLT, a incorporação no direito interno de suas disposições relacionadas à prevenção, reparação, políticas públicas de enfrentamento amplo ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo pode constituir importante subsídio para a atuação de agentes estatais no desenho e implementação de políticas públicas de combate ao trabalho escravo.
A aprovação, no Congresso Nacional, do Protocolo de 2014 constitui, portanto, importante passo do Estado brasileiro no cumprimento das recomendações do Sistema Interamericano de Direitos Humanos em relação ao enfrentamento do tráfico de pessoas e do trabalho escravo. Espera-se que em breve o Brasil possa contar com esse importante instrumento normativo para a identificação, proteção, recuperação e reabilitação de vítimas do trabalho escravo, pavimentando o caminho para se atingir a necessária erradicação dessa prática inaceitável em nosso país.
[1] Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/corte/2015/12066FondoPt.pdf
[2] Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_por.pdf.
[3] Situação dos direitos humanos no Brasil. CIDH, 2021. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/relatorios/pdfs/brasil2021-pt.pdf.