Falar de segurança jurídica – locução construída para expressar a ideia de estabilidade sobre as consequências a serem geradas (futuro) pelos atos-fatos produzidos (passado) e juridicamente constatados (presente) – é chover no molhado: não há quem sustente, em sã consciência, que a expectativa de previsibilidade a que nos referimos represente um sentimento injusto, um desejo descabido.
É essa obviedade que faz da segurança, se não a principal, no mínimo uma das mais importantes diretrizes de qualquer sistema jurídico que se pretenda democrático.
Em nível tributário, o sentimento de segurança jurídica descola-se do campo abstrato, passando a operar em termos concretos por meio de técnicas muito conhecidas – legalidade, anterioridade e irretroatividade, talvez sejam as de que sempre lembramos.
Como nem tudo são flores entre Fisco e contribuinte, às relações tributárias "convencionais" (as materiais) juntam-se as de tom processual, variante instrumental das primeiras, posta para eliminar o dissenso.
Como fenômeno jurídico, também essas relações (as processuais) seguem subordinadas à ideia de segurança – valor universal que é, vale repetir.
Nesse nível (o do processo), entretanto, seu aparelhamento objetivo é viabilizado por técnicas próprias, tipicamente dirigidas ao ambiente da processualidade, sem prejuízo da simultânea incidência das técnicas gerais (legalidade, por exemplo, regra que bate em todos os setores do direito).
A coisa julgada, arriscamos dizer, seria a mais notável técnica de projeção processual, em termos objetivos-concretos, da noção de segurança, à medida que cumpre o exato papel de início referido: define as consequências, para o futuro, dos atos-fatos do passado e que foram constatados no tempo da decisão judicial (o "presente" do direito).
Sabendo-se que, em termos tributários, os conflitos giram em torno da circunstancial incerteza sobre o fenômeno da incidência (e, por conseguinte, da efetiva imponibilidade do pagamento), a coisa julgada a eles correlata terá, por lógica, dois tons: confirmatório (improcedência da demanda antiexacional) ou infirmatório da incidência (procedência).
Pois é sobre esse segundo ponto que devemos nos reter.
Tratando da coisa julgada, a legislação processual de que dispomos o faz de forma ampla, seguindo sua natural vocação: o Código de Processo Civil, sabe-se, é diploma geral, voltando-se à disciplina do processo como figura materialmente indefinida, sem sobrenome e, por derivação, sem decote temático.
No guarda-chuva projetado pelo Código estão incluídos, portanto, todos os dissensos desguarnecidos de disciplina própria, escaninho em que se põem os tributários.
Esse estado de coisas nos coloca numa curiosa situação: se nos perguntarmos sobre a disciplina, em nosso sistema, da coisa julgada tributária, buscamos (e encontramos) a resposta no Código de Processo Civil, embora dele nada se extraia sobre os aspectos materiais do dissenso de base. Temos a resposta, em suma, mas uma resposta materialmente lacônica, fato gerador de inúmeros "sobredissensos".
Talvez por isso, quando uma ação antiexacional é definitivamente julgada procedente, afastando-se a incidência, tenhamos tantas dificuldades, na vida real, para definir o que isso quer de fato significar, objetiva, subjetiva e temporalmente falando.
Mas não deveria ser assim – não pelo menos com tanta recorrência: se segurança se conforma como expectativa de estabilidade (futuro) quanto às consequências dos atos-fatos do passado-presente (premissa um), se a coisa julgada é um instrumento realizador da ideia de segurança (premissa dois), seria natural concluir que ela, a coisa julgada, não é (ou não deveria ser) um problema, mas sempre a solução.
Com os olhos sobre a realidade, constatamos que, em alguma medida, ajustes na disciplina da coisa julgada tributária nos retiraria desse campo de incertezas, permitindo que a atividade econômica (base fática de incidência das normas tributárias) deixasse de depender tanto da “opinião” (no mais das vezes difusa) de agentes secundários, tanto os públicos como os privados – auditores, procuradores, juízes, advogados, contadores, etc.
Esse panorama é o que queríamos fincar neste segundo artigo da série “Processo Administrativo, Judicial e Execução Fiscal do século XXI” (confira o primeiro texto aqui), deixando o detalhamento dos ajustes que visualizamos para a etapa seguinte, em que abordaremos, possível adiantar, a necessidade de explicitação do impacto dos precedentes supervenientes sobre decisões acobertadas por definitividade, o alcance da coisa julgada sobre os fundamentos, a desejável extensibilidade dos efeitos da coisa julgada tributária teorética em relação a terceiros, o definitivo estabelecimento da relação de prejudicialidade da decisão judicial sobre o litígio administrativo, entre outros pontos.
O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça: