Tributário

O diferimento do ICMS nas operações com energia

A interpretação do artigo 425 do RICMS SP

setor
Linha de transmissão de energia que liga a Hidrelétrica de Belo Monte ao Sudeste. Crédito: Beth Santos/Secretaria-Geral da PR

Desde a publicação do Decreto 66.373 de 2021, que deu nova redação ao artigo 425 do Regulamento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) do estado de São Paulo, com início de vigência em 1º de abril de 2022, várias dúvidas têm surgido sobre a interpretação deste artigo e os limites de aplicação do diferimento do pagamento do ICMS nas operações com energia elétrica no estado de São Paulo, nele previsto:

“RICMS-SP — Artigo 425 — O lançamento do imposto incidente nas sucessivas operações internas com energia elétrica, desde a sua importação ou produção, fica diferido para o momento em que ocorrer a última operação da qual decorra a sua saída com destino a estabelecimento ou domicílio localizado no território paulista para nele ser consumida pelo destinatário”.

O primeiro ponto que deve ser analisado é que a regra geral do ICMS é existir o débito na saída e o crédito na entrada, e desta forma, uma saída sem débito, resultado do diferimento, é uma regra de exceção, e deve ser analisada desta forma.

Dito isto, quais são as condições previstas no Regulamento do ICMS-SP para se aplicar o tratamento excepcional do diferimento, previsto no artigo 425, e não se cobrar do remetente vendedor o imposto na operação de circulação de mercadoria?

  • Ocorrer uma operação interna, de saída de energia elétrica, no Estado de São Paulo, assim entendido como aquela realizada entre dois estabelecimentos localizados no Estado, cujo objetivo não seja o consumo da energia no estabelecimento destinatário.

E logo a seguir vem a indagação:

  • Como o remetente vendedor vai saber a intenção do destinatário comprador, antes de ocorrer a operação de saída da mercadoria (energia elétrica), de forma a aplicar a adequada tributação, definir os custos e o preço da mercadoria, e cumprir as obrigações tributarias principal e acessória relativas ao ICMS?

Para responder esta indagação precisamos entrar no campo da interpretação da norma e analisar os eventos do mundo real no qual tais operações são realizadas.

O primeiro ponto a ser destacado é que o mercado de energia elétrica no Brasil é regulado por normas específicas, que impõem aos operadores do setor regras que vão além das regras aplicáveis ao comércio em geral. Assim os geradores, transmissores, distribuidores, comercializadores e consumidores de energia elétrica devem, por força de normas federais que regem o setor, realizarem atos e negócios jurídicos dentro de formas e limites definidos, bem como se qualificar dentro de limites e condições definidas, para realizar operações com energia elétrica.

O segundo ponto é que o agente econômico qualificado pelas regras setoriais como consumidor de energia elétrica adquire e recebe a energia para consumo. Nesta situação, em regra, estão as residências, os comércios varejistas e atacadistas, as indústrias, a agricultura, a pecuária, a mineração, os hospitais, os prestadores de serviço em geral, os órgãos públicos e a iluminação pública. Sejam grandes ou pequenos, estes agentes econômicos, em regra, adquirem e recebem energia elétrica para consumo.

O terceiro ponto é que o agente econômico qualificado pelas regras setoriais como comercializador ou distribuidor de energia elétrica, compra e vende energia elétrica como sua atividade principal. Nesta situação, quando o comercializador ou o distribuidor de energia participa do contrato na condição de comprador de energia, há de se presumir que a compra não foi para consumo, mas para revenda.

O quarto ponto é que no mundo real os agentes econômicos podem ter atividades mistas, e também que podem ocorrer eventos futuros e incertos, não previstos no momento da realização do contrato. Neste caso, como ficaria a tributação da operação com energia elétrica?

Seria razoável responsabilizar, ou punir, o vendedor da energia elétrica, se ele vendeu energia para um agente econômico, sem cobrar o ICMS sobre a energia, pois entendeu ser aplicável o diferimento, mas posteriormente se descobre que o adquirente, um comercializador de energia elétrica, registrado nos órgãos setoriais, como Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), na condição de comercializador de energia, acabou por consumir parte da energia comprada, em seu estabelecimento, onde também comercializa outras mercadorias, como, por exemplo, gêneros alimentícios, que necessitam de refrigeração em larga escala?

Entendemos que neste caso o vendedor não deve ser responsabilizado, ou punido, se tomou as cautelas de praxe no setor econômico que ele opera, se verificou a qualificação do seu cliente (conheça seu cliente) e se formalizou o contrato dentro das normas civis e setoriais aplicáveis. Não seria adequado aplicar qualquer sanção ao vendedor se ele foi diligente, se ele cumpriu as regras; e se o único responsável pelo desvio do uso da energia elétrica foi o adquirente.

Nesta situação, de posterior desvio da utilização da energia, sem controle ou conhecimento do vendedor, a pessoa que deu causa ao desvio é que deve ser responsável por pagar o imposto devido, mas não cobrado, na operação de circulação de mercadoria, em decorrência da aplicação do diferimento, e por pagar eventuais penalidades, se devidas.

Quanto à aplicação de penalidade, se o desvio do uso da energia, de mercadoria adquirida para revenda, para mercadoria adquirida para consumo próprio, se deu dentro de condições normais de mercado, não há que ser aplicada qualquer penalidade; desde que o fato seja comunicado pelo adquirente da energia ao fisco, na forma prevista na legislação, e que o imposto seja recolhido tempestivamente, e antes de qualquer ação fiscal.

Quinto ponto, como deveria proceder a empresa adquirente de energia elétrica que realiza atividades mistas, e, por exemplo, comercializa gelo e energia elétrica; e para tanto adquire energia para consumo na fabricação e comercialização de gelo e adquire energia para revenda de energia no mercado de energia?

Uma resposta em tese para a questão descrita deve partir do princípio de que a empresa deve conhecer seu negócio, deve saber antes de realizar a compra, qual seria a quantidade de energia a ser comprada para desenvolver cada atividade. Eventualmente a empresa pode adquirir energia de fornecedores diversos, um fornecedor para a operação de gelo, outro fornecedor para o comércio de energia. Neste caso, não haveria problema algum, pois uma compra seria com tributação normal (gelo) e outra compra seria com diferimento (comércio de energia).

Por outro lado, se a empresa faz compras de um único vendedor, para utilizar a energia adquirida de duas formas, em finalidades distintas, no mesmo estabelecimento, no mesmo mês, o adquirente deveria, com base no ocorrido no passado e no projetado para o futuro, formalizar contratos distintos com o vendedor, um na condição de consumidor de energia (para fabricar gelo), outro na condição de comercializador de energia (para revenda de energia); e assumir a responsabilidade de pagar o imposto devido, na hipótese de no decorrer de sua atividade normal, acabar por consumir no negócio de gelo, energia comprada sem ICMS, com intuito original de revenda de energia.

Sexto ponto. Seria o diferimento previsto no Artigo 425 do RICMS-SP facultativo, podendo o vendedor remetente paulista aplicar o diferimento quando desejar, e deixar de aplicar quando não desejar?

Entendemos que o diferimento previsto no artigo 425 do RICMS-SP não representa um “benefício tributário” facultativo, mas de uma política tributaria definida pelo Estado, para ser aplicada em um mercado regulado e específico. Neste contexto não caberia a cada agente econômico escolher quando e como usar, ou não usar, o diferimento previsto na legislação tributaria estadual, pois tal conduta poderia gerar desvio de neutralidade tributária, e gerar incentivo a fraudes de todo o gênero, prejudicando o ambiente de negócios no estado e no país.

Talvez se no Brasil existisse um IVA amplo e abrangente, tal como desenhado nas propostas de reforma dos impostos sobre o consumo em trâmite no Congresso Nacional, várias dificuldades inerentes a tributação das operações com energia elétrica pelo ICMS estadual, em especial no que tange ao crédito no consumo de energia elétrica, seriam melhor endereçadas. Mas enquanto a reforma não chega, seguimos com o ICMS. Neste sentido, o presente artigo trata de um tema novo no âmbito de um imposto antigo, e como qualquer tema novo, interpretações distintas podem surgir e eventualmente prevalecer, e assim esperamos que o artigo e as ideias apresentadas sejam tratados como um convite ao estudo e ao debate, e não de forma dogmática e finalística.logo-jota