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Desmatamento e coronavírus: lições para o Direito Ambiental

Eclodida por zoonose de animais silvestres, pandemia exige efetiva regulação e controle do desmatamento

Crédito: Fotos Públicas

Em um mundo literalmente em metamorfose, na lição do sociólogo Ulrich Beck[1], investigando a explosão da pandemia em curso, autoridades públicas de saúde vêm alertando para as relações originárias do novo coronavírus com o avanço do desmatamento e da expansão de atividades humanas sobre ecossistemas florestais.[2]

As hipóteses aventadas convergem para a proliferação das zoonoses, decorrentes do desmatamento das florestas, da perda da biodiversidade e das mudanças climáticas, o que implica política ambiental atenta a tal relação. O termo zoonose se refere, segundo as Nações Unidas, a doenças que os animais vertebrados podem transmitir para o homem. A AIDS, a gripe suína H1N1, a influenza aviária H5N1 e o ebola são exemplos dessas patologias.[3]

As doenças zoonóticas representam cerca de 75% das doenças que afetaram humanos no útilmo século[4], e os fatores para a sua proliferação refletem o modo como a população humana ocupa e explora o ambiente em que vive, incluindo as migrações humanas não controladas, poluição e degradação ambiental, agravada pela precariedade das condições socioeconômicas (habitação, educação, saúde, entre outras).

É o que aponta o relatório “A Survey of Zoonoses Programmes in the Americas”[5], com o qual a OMS destaca que o crescente número de zoonoses emergentes pode ser causado pela modernização das práticas agrícolas, particularmente nos países em desenvolvimento, com destruição e invasão de habitats, e também pela mudança climática, contexto pressionado por uma população crescente.

No mesmo relatório, a OMS preconiza que as nações mundiais, em especial as que possuam biomas florestais, devem fortalecer os programas nacionais e locais de prevenção, vigilância, controle e eliminação das zoonoses, o que pode ser feito ao se levar em conta fatores como mudanças climáticas, desmatamento, incêndios florestais e consequentes perdas de biodiversidade.

Justamente no ponto de eclosão da pandemia do novo coronavírus, na província chinesa de Hubei, onde se localiza a cidade de Wuhan, dados da Global Forest Watch[6] mostram que as suas oito principais regiões foram responsáveis por 53% de toda a perda de cobertura arbórea entre 2001 e 2018, indicando, só até a semana de 16 de março de 2020, novos 435 alertas de incêndio florestais na região.

Naquele ambiente natural, as populações de animais silvestres como os morcegos – e os vírus que eles carregam – são limitadas por seus ecossistemas. Entretanto, segundo cientistas europeus[7], com o avanço do desmatamento, os morcegos deslocados podem encontrar nichos ambientais antropizados, e assim, afetar outros animais, que, por sua vez, transmitem vírus aos humanos.

Não por acaso as Nações Unidas, através do seu Programa para o Meio Ambiente (PNUMA), alertaram oficialmente já em 2016 que nas últimas décadas as doenças emergentes (que impactam humanos e se relacionam à poluição ambiental) tiveram custos diretos de mais de US $ 100 bilhões, com esse número saltando para vários trilhões de dólares se os surtos se tornassem pandemias humanas[8].

Ainda pelo documento, a ONU, ressaltando que nos últimos anos várias doenças zoonóticas emergentes foram manchetes do mundo por causarem ou ameaçarem causar grandes pandemias, declara que as zoonoses ameaçam o desenvolvimento econômico, o bem-estar animal e humano e a integridade dos ecossistemas.

Não bastasse, estudos alertam que o desmatamento pode estar criando um laboratório acidental para o surgimento de novos vírus em ecossistemas perturbados por atividades humanas (grande parte de modo ilegal), argumentando ainda que o caminho das zoonoses é pavimentado pelo desmatamento[9].

Assim, é evidente a estreita relação entre desmatamento, vulnerabilidade do bioma florestal e a disparada de doenças zoonóticas no mundo (como a Covid-19), o que exige sistêmica fiscalização das atividades econômicas, públicas ou privadas, que causem significativo impacto ambiental sobre ecossistemas florestais, devendo haver políticas de ampla conservação de áreas protegidas, em especial por serem, como visto, hotspots de biodiversidade.

O homem e os animais disputam o mesmo espaço de sobrevivência: o meio ambiente. Embate este que deflagra a crise ambiental mundial.

Isso porque, está relacionada à progressiva perda dos biomas florestais, causada sobretudo pelo paradigma de desenvolvimento econômico-estrutural, baseado na fronteira agropastoril, com vasta produção de commodities, industrialização, urbanização e produção de alimentos de origem animal em larga escala.

As florestas são consideradas áreas de relevância ecológica, possuidoras de vegetação diferenciada das demais e, por tais condições, abrigam espécies endêmicas (de locais específicos), que por sua vez, possuem complexa relação viral. Precisam ser, portanto, efetivamente conservadas e com impactos sistematicamente regulados pelo Direito Ambiental, em conjunto com o Direito Sanitário.

O Brasil, por possuir os biomas Amazônico e de Mata Atlântica, regiões de potenciais doenças zoonóticas[10], pressupõe sistêmica fiscalização e regulação estatal sobre o desmatamento e manutenção da biodiversidade potencialmente vetora das zoonoses.

No entanto, os números do desmatamento no Brasil estão em elevação. Segundo o INPE, pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), 2019 registrou aumento de 29,54% no desmatamento em relação a 2018, com 9.762 km² de área da Amazônia Legal desmatada[11].

Neste contexto, potencializa-se o cenário de zoonoses no país, o que exige políticas de atuação coordenada dos órgãos públicos e da sociedade civil na repressão ao desmatamento, com leis ambientais efetivamente observadas e atuação conjunta de autoridades sanitárias, sob pena de novas pandemais como a do novo coronavírus.

Desde o ano de 2015, o Ministério Público Federal, diante do avanço e da especialização do desmatamento ilegal, considerando a necessidade de uma rigorosa postura de enfrentamento criminal, bem como a reflexão em relação aos crimes a ele conexos, implantou o Grupo de Trabalho sobre Desmatamento.

Através dele, o MPF indica[12], entre as medidas fundamentais em face do desmatamento:

  1. Regulação do desflorestamento amazônico e da origem (i)legal da madeira;
  2. Uso de técnicas de sensoriamento remoto do corte raso e da degração ambiental;
  3. Controle dos manejos sustentáveis, sobretudo no bioma amazônico;
  4. Análise do fornecimento de madeira para indústrias e exigência da sustentabilidade socioambiental; e
  5. Observância ao mercado internacional da madeira amazônica.

É preciso superar a condição de mito alçada ao desenvolvimento sustentável, instrumentalizando-o pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, das Nações Unidas, em especial o n. 15: “Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de biodiversidade”.

Do mesmo modo, o ODS n. 16, para “promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”, com transparência, prevenção e controle ambiental contínuo, por uma cultura de compliance ambiental.

É possível atingir tal objetivo através de compulsórios Programas de Conformidade Ambiental nas principais atividades econômicas com impactos ecológicos, como aponta o recente relatório da ONU: Environmental Rule of Law, First Report[13], tema que é objeto do Projeto de Lei 5.442/2019, na Câmara dos Deputados, já debatido neste espaço.[14]

Como o biólogo norte-americano Jared Diamond expõe, a história das civilizações e o seu colapso são fruto do modo pelo qual se relacionam com o entorno, com o meio ambiente e seus recursos, questão crucial para a sua sobrevivência[15].

Com efeito, a pandemia põe em choque o modelo de desenvolvimento vigente, que é chancelado pelas omissas políticas governamentais atuais e por um Direito desconexo com a natureza, porém não o conduz à reflexão acerca das reais causas para o Coronavírus: a poluição e degradação ambiental. As zoonoses são um custo oculto do desenvolvimento econômico humano[16].

Inevitável repisar lição de Chefe Seattle, citado por Capra, em sua obra a A Teia da Vida: “Tudo que acontece com a Terra, acontece com os filhos da Terra. O homem não tece a teia da vida; ele é apenas um fio. Tudo o que faz à teia, ele faz a si mesmo”.[17]

Logo, o desmatamento descontrolado (quando não ilegal) está diretamente ligado às zoonoses, como a do novo coronavírus, exigindo um Direito Ambiental estruturado à complexidade de pandemias globais, momentum para o homem compreender efetivamente a sua total interdependência com a natureza.

 

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[1] BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade. Tradução: Maria Luiza X. de Borges. Revisão técnica: Maria Claudia Coelho. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

[2] Bats are not to blame for coronavirus. Humans are. Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/03/19/health/coronavirus-human-actions-intl/index.html

[3] Mais de 60% dos organismos causadores de doenças chegam aos humanos por animais vertebrados. Disponível em: https://nacoesunidas.org/mais-de-60-dos-organismos-causadores-de-doencas-chegam-aos-humanos-por-animais-vertebrados/

[4] TUMPEY, T.M.; GARCÍA‑SASTRE, A.; MIKULASOVA, A.; TAUBENBERGER, J.K.; SWAYNE, D.E.; PALESE, P.; BASLER, C.F. Existing antivirals are effective against influenza viruses with genes from the 1918 pandemic virus. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America. Disponível em: https://www.pnas.org/content/99/21/13849

[5] Preliminary Report A Survey of Zoonoses Programmes in the Americas. Disponível em: https://www.paho.org/panaftosa/index.php?option=com_docman&view=download&slug=preliminar-report-zoonosis-080716-8&Itemid=518

[6] Global Forest Watch. Disponível em: https://www.globalforestwatch.org/dashboards

[7] How Deforestation Drives The Emergence Of Novel Coronaviruses. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/jeffmcmahon/2020/03/21/how-deforestation-is-driving-the-emergence-of-novel-coronaviruses/#6f6f779d1723

[8] Coronavirus outbreak highlights need to address threats to ecosystems and wildlife. Disponível em: https://www.unenvironment.org/news-and-stories/story/coronavirus-outbreak-highlights-need-address-threats-ecosystems-and-wildlife

[9] Host and viral traits predict zoonotic spillover from mammals. Disponível em: https://www.nature.com/articles/nature22975

[10] Malária na Mata Atlântica do Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.ini.fiocruz.br/mal%C3%A1ria-na-mata-atl%C3%A2ntica-do-rio-de-janeiro

[11] Inpe estima em 9.762 km² desmatamento na Amazônia Legal em um ano. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-11/inpe-estima-em-9762-km2-desmatamento-na-amazonia-em-12-meses

[12] Roteiro de atuação – Desmatamento. MPF. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/publicacoes/roteiro-atuacoes/docs-cartilhas/desmatamento.pdf

[13] Environmental Rule of Law, First Report. Disponível em: https://www.unenvironment.org/resources/assessment/environmental-rule-law-first-global-report

[14] O momento do compliance ambiental: uma análise do PL 5.442/2019. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-momento-do-compliance-ambiental-uma-analise-do-pl-5-442-2019-06022020

[15] DIAMOND, Jared. Colapso: Como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. 1 ed. São Paulo: Record, 2005.

[16] The age of extinction Environment ‘Tip of the iceberg’: is our destruction of nature responsible for Covid-19? Disponível em: https://www.theguardian.com/environment/2020/mar/18/tip-of-the-iceberg-is-our-destruction-of-nature-responsible-for-covid-19-aoe

[17] CAPRA, Fritjof. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1996.