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Como se privatiza uma empresa estatal: mitos e verdades - parte 2

O que acontece depois da inclusão da empresa no Programa Nacional de Desestatização?

Eletrobras
Edifício da Eletrobras. Crédito: Eletrobras/Divulgação

Em 21 de junho foi publicado neste JOTA artigo de nossa lavra denominado “Como se privatiza uma empresa estatal: mitos e verdades”. Queria, nesse artigo, ter mostrado todas as agruras e penúrias relativas a um processo dessa natureza. No entanto, as laudas que me foram disponibilizadas não seriam suficientes. Com certeza a “culpa” não é do meu editor e tampouco do JOTA, mas do processo em si que é deverasmente complexo.

O leitor apressado já poderia dizer: então, basta desburocratizar! Perderíamos mais dois anos neste processo e pouco avançaríamos na desburocratização.[1] Então, só nos resta tentar fazer as duas coisas ao mesmo tempo – iniciar processos de privatização e desburocratizar os processos de privatização. Também ajuda parar de reclamar, trabalhar muito, ser resiliente e ter foco – a dispersão em um número grande de projetos gera grandes deseconomias de coordenação e supervisão, bem como amplia o número de opositores ao processo.

Voltemos à segunda parte do artigo. No texto anterior, finalmente, havíamos incluído a empresa no Programa Nacional de Desestatização (PND). E agora? O primeiro passo é saber que, segundo a Lei 9.491/1997, a Lei do PND, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é designado como o gestor ou coordenador do processo de privatização. Assim, o ministério setorial a qual esteja vinculada a empresa estatal a ser desestatizada deve contratar o BNDES para realizar o processo.

E o BNDES faz os estudos? Não. O BNDES coordena os estudos. Para tanto, o banco deve contratar quantos estudos forem necessários para fazer a modelagem da privatização. São contratados diversos estudos, que vão do valuation do projeto (2 valuations, trataremos disso novamente) à estratégia do negócio e modelagem jurídica. Para realizar tais contratações, o BNDES deve fazer extensos e detalhados termos de referências que sejam consistentes com a completude que demanda estudos de privatização. Também devemos lembrar que, apesar das melhorias trazidas pela Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais), esses estudos têm que ser contratados por um processo competitivo. Algo um pouco menos complexo que uma licitação strictu-sensu.

Pronto! Consultores contratados, vamos aos estudos? Não. Primeiramente, há um longo processo de captação de dados junto à empresa a ser desestatizada. Uma série de due diligences será realizada: contábil, financeira, jurídica, ambiental etc... Literalmente trata-se da transferência de milhares de arquivos. Coletada toda esta informação, as consultorias começam a fazer a modelagem. Sempre observadas de perto por um batalhão de técnicos do próprio BNDES, do ministério setorial, do Ministério da Economia e da própria empresa estatal em discussão. Este é um processo que, se desenvolvido dentro de seis meses, é um grande sucesso.

Finalizada a discussão da modelagem, esta se transforma em relatórios do BNDES, que são submetidos à Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos (SPPI) do Ministério da Economia. Lá, estes relatórios de consultoria se transformam em uma Resolução do CPPI (Conselho do Programa de Parcerias e Investimentos) que aprova a modelagem do processo. Geralmente estas resoluções demandam longas discussões entre os técnicos do governo. Obviamente, debatido o mérito, deve-se avaliar seu conteúdo jurídico, com novas idas e vindas nas procuradorias jurídicas. Vale ainda considerar que a Resolução CPPI equivale à anterior Resolução do CND (Conselho Nacional de Desestatização). Não pode também descartar a realização de audiências públicas.

Acabou? Nada! Mas atingimos o clímax: todo o processo, inclusive os relatórios, decretos, resoluções CPPI etc. é encaminhado ao Tribunal de Contas da União (TCU). Segundo a Instrução Normativa TCU nº 81, de 2018, compete ao TCU "fiscalizar os processos de desestatização realizados pela Administração Pública Federal, compreendendo as privatizações de empresas, as concessões e permissões de serviço público, a contratação das Parcerias Público-Privadas (PPP) e as outorgas de atividades econômicas reservadas ou monopolizadas pelo Estado".

A discussão com o TCU é uma verdadeira saga. Primeiramente, uma montanha de informações e dados devem ser enviados ao órgão de controle – interessante ver o art. 4º da IN 81. Ademais, todas as atualizações ou incremento dessas informações também têm que ser enviadas ao TCU. A primeira discussão se dá com a área técnica, com os técnicos que irão produzir o relatório relativo à desestatização.

Após os desdobramentos da área técnica, o relatório do TCU é enviado ao gabinete do ministro relator. Antes da manifestação do ministro relator, normalmente o Ministério Público junto à Corte de Contas pede para se manifestar no processo. Lá se vão mais longas discussões. E agora? Com o relatório da área técnica, bem como o Parecer do MP de Contas, o ministro relator prepara seu voto.

Este voto é levado ao plenário do TCU, onde, finalmente, a privatização é discutida e votada. Não podemos deixar de esquecer que isso tudo é antecedido por um extenso roadshow nos gabinetes do TCU. Também não podemos esquecer que um pedido de vistas não está descartado. Por fim, geralmente um processo de auditoria também é feito pela Controladoria-Geral da União (CGU).

Antes do leilão ou da oferta, a última etapa do processo, tem que ser aprovado o preço mínimo. Os dois valuations contratados pelo BNDES, após os diversos ajustes do banco, gera um preço médio mínimo para o negócio: o valor da empresa num M&A ou o valor da ação numa oferta pública. Esse preço é efetivamente aprovado quando o TCU autoriza a continuidade do processo, porém ele também tem que ser formalmente aprovado pelo CPPI.

Existem outras atividades que eu chamaria de “atemporais”, ou seja, ocorrem ao longo de todo o processo. Já é tradicional a constituição de uma espécie de “grupo jurídico” das diversas áreas do governo para literalmente lutar contra as dezenas de ações judiciais que podem paralisar o processo. Somente como um exemplo, na privatização das distribuidoras da Eletrobras, entre 2016 e 2018, parei de contar quando as ações chegaram ao número de 60. Como a atuação do "grupo jurídico", é atemporal e itinerante a discussão com investidores, em especial estrangeiros que não estejam muito familiarizados com os negócios no Brasil.

Esta seria a jornada padrão de uma privatização com suas diversas etapas. Demonstra-se como é estafante, desafiante e, muitas vezes, consumidora da nossa própria confiança. Trata-se de um processo em que não sabemos se estamos sendo resilientes ou teimosos ou qual será o próximo problema completamente heterodoxo a ocorrer. Só sabemos que ele irá ocorrer, sua natureza iremos descobrir depois. Mas, com certeza, é um processo que envolve dezenas de profissionais, a maioria deles servidores ou empregados públicos, movidos por um incomensurável desejo de mudança, de transformação da nossa sociedade.


[1] Em que pese a tese dos desinvestimentos, construída em 2017 e consubstanciada no Decreto nº 9.188 do mesmo ano, e por aqui já citada, ter permitido um imenso avanço na privatização de subsidiárias de empresas estatais.logo-jota

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