A isenção de multas consta da Medida Provisória 703, a segunda regulamentação assinada pela presidente Dilma Rousseff para regulamentar a Lei 12.846. Ferramenta vital para a instrução dos Processos Administrativos de Responsabilização (PAR), que correm na Controladoria, a previsão de que empresas colaborassem com as investigações por meio de acordos de leniência não fazia parte da versão original da lei enviada pelo governo ao Congresso.
Abaixo, os principais trechos da entrevista com o ex-ministro Jorge Hage:
A Lei Anticorrupção é relativamente nova no Brasil. O país está preparado para ter resultados?
Não se trata de estar ou não preparado. O Brasil precisava de uma lei como essa, que veio suprir lacunas evidentes em nosso quadro legal punitivo e preventivo da corrupção. Não tínhamos uma lei que punisse a empresa corruptora, com facilidade. Somente por via da Ação de Improbidade contra o Agente Público, depois de provada a culpa ou dolo deste. E também a a culpa ou dolo da empresa (isto é, dos seus dirigentes), o que nunca acontecia. A única punição aplicável, de fato, era a inidoneidade, previstas nas leis de licitações e contratos; o que e nem sempre é a melhor opção.
O comportamento empresarial tende a mudar com a exigência de ações de compliance na iniciativa privada? É possível termos, a médio e longo prazo, uma exigência de compliance para a iniciativa privada e pública?
Sem nenhuma dívida. E já está mudando. Basta ver os dados sobre a demanda aos especialistas em compliance no setor privado. E na área pública, veja o que já ocorre na própria Petrobras, que estruturou uma Diretoria de compliance, reorganizou sua área de auditoria, etc.
Por que há polêmica em relação à participação ou não do Ministério Público na realização dos acordos de leniência? O processo de leniencia com a participação do Ministério Público traria mais segurança jurídica ao processo? Em que sentido?
Não há polêmica quanto à participação do MP, que eu saiba. Quando dirigi a CGU, sempre buscamos a articulação com o MP, embora a Lei 12.846 não o previsse. Para mim, isso era essencial. Eu mesmo tratei desse assunto com o Procurador-Geral da República (PGR) Rodrigo Janot e com o Subprocurador Nicolau Dino mais de uma vez. E meus sucessores deram continuidade a essa mesma postura de cooperação. Afinal, foi a CGU que, desde os tempos de sua criação, com o Ministro Waldir Pires, em 2003, tomou a iniciativa de celebrar Convênios de Cooperação com os Ministérios Públicos de todo o país, para o combate à corrupção, que só funciona bem se houver essa colaboração entre todos esses órgãos.
O que às vezes dificulta as coisas é a forma de fazê-lo, são as condições exigidas por cada um, e certas resistências em compartilhar as informações. Os acordos de leniência , sem a participação e a vinculação de todos os órgãos competentes para punir, obviamente não oferecem maior segurança jurídica para as empresas interessadas. Isso é elementar e a realidade da Lava Jato está mostrando isso.
No processo de elaboração da lei não poderia ter sido prevista a participação do Ministério Público para os acordos de leniência? Ou isso foi uma necessidade apresentada devido aos processos no âmbito da Lava Jato?
Os acordos de leniência não constavam no Projeto de Lei elaborado pela CGU e enviado ao Congresso pelo Presidente Lula, em 2010. Isso foi incluído por emenda, durante o processo legislativo, na Câmara dos Deputados, por iniciativa deles. Eu não saberia dizer, portanto, a razão der não terem previsto a participação do Ministério Público nos acordos. O que sei é que, mesmo sem previsão legal, nós, na CGU, sempre buscamos coordenar as ações com o Ministério Público. Nunca houve dificuldade com os Procuradores Gerais da República, desde Cláudio Fonteles, até Rodrigo Janot. Pelo contrário, a cooperação sempre foi ampla. Somente aqui e ali, com alguns procuradores específicos, tivemos dificuldade no compartilhamento de informações, pois um ou outro por vezes alegava não poder compartilhar. Mas eram casos isolados, felizmente.
É plausível e coerente afirmar que a MP é uma forma do governo dar uma "anistia" de combate à corrupção a empreiteiras? E sobre o fator econômico? Centenas de trabalhadores já foram demitidos e algumas obras do governo perderam fôlego… Afinal, as empresas ainda não sofreram punições, seja pagar multa ou ser excluída de licitação. O processo de acordo de leniência é lento?
Não vejo nenhuma “anistia” na MP 703. O que vejo é a preocupação do governo com a paralisação de obras e o desemprego. Pode-se concordar, ou não, com essa preocupação. Pode-se achar que ela é justificável, ou não. Que há ou não há exagero. Mas daí a dizer que a intenção é “anistiar” empresas, vai uma distância muito grande. Além de ser ofensivo aos milhares de profissionais que integram os corpo funcional dessas instituições: os Auditores de Controle Interno e Corregedores da CGU, os Advogados Públicos da AGU, os Procuradores da República do MPF e os Auditores de Controle Externo do TCU. São todos eles servidores do mais alto nível, concursados, estáveis e independentes, que não se submeteriam a isso. E sem a cumplicidade deles, nenhuma “anistia” ou outra manobra escusa poderia prosperar e seria denunciada, pois essas instituições, em um momento ou em outro, teriam alguma participação e tomariam conhecimento desse trâmite.
O que é fato e precisa ser lembrado, para afastar a confusão que cerca esse debate, é o seguinte: a Lei 12.846 (chamada Lei Anticorrupção) não prevê o fechamento de empresas, a não ser em dois casos extremos: o uso sistemático e habitual da pessoa jurídica para promover atos ilícitos ou empresas constituídas para ocultar ou dissimular interesses ilícitos (empresas fantasmas, laranjas, etc) – veja o artigo 19, § 1º da lei. E isso só pela via judicial. Não é a CGU quem pode fazer isso, nem o Ministério Público por si mesmo. Só o Judiciário.
Outra coisa diferente é a declaração de inidoneidade, e é isso que está preocupando muita gente e o governo, porque ela impede a empresa de licitar e contratar com o Poder Público, embora não a extinga. Ora, como no caso se trata de empreiteiras que trabalham quase que exclusivamente para o Poder Pública, aí a proibição de licitar acaba equivalendo a seu fechamento. Mas essa penalidade não está prevista na Lei 12.846, e sim na leis sobre licitações, como a 8.666, que existem já há muito tempo,. A 8.666, por exemplo, é de 1993. Tem já 22 anos. E nunca ninguém se assombrou com ela nem a considerou absurda ou exagerada. Essa pena já foi aplicada milhares de vezes no Brasil. Basta dar uma olhada no Cadastro de Empreses Inidôneas e Suspensas (CEIS), que está no site da CGU, junto ao Portal da Transparência. São alguns milhares de empresas já impedidas de contratar.
Então, qual é a questão? O que há de novo agora? É o tamanho do cartel que se formou nessa área da economia. É de tal modo grande que se for aplicar essa pena a essas empresas, se diz que isso vai “paralisar o país”.
O que foi errado foi permitir que se constituísse esse “clube”, mediante um conluio, envolvendo agentes públicos, e que domina todo esse segmento econômico há anos e anos.
E, agora, se forem punidas (com essa pena que, repito, nada tem de novo, pois é da lei de 1993), tem-se um problema que se alega ser gigantesco, principalmente, em minha opinião, pelo lado do desemprego dos trabalhadores, que é realmente o que preocupa.
A situação se assemelha à que houve nos Estados Unidos, quando daquela crise envolvendo uma mega corporação, que se temia iria ter um efeito dominó desastroso sobre toda o sistema financeiro americano ( e talvez mundial). E aí surgiu a frase: “too big to fail”(muito grande para falir, ou para desaparecer); e, depois, também, um livro chamado “Too big to jail” (Muito grande para ir pra cadeia).
Então, o país tem um problema concreto a resolver. E ele terá que ser resolvido pelas instituições que para isso existem. Não pode ser a opinião pessoal de ninguém. São as instituições em seu conjunto, cada qual no seu papel: CGU, Ministério Público, TCU e AGU, principalmente. E a mim me parece que a Medida Provisória almeja a construir os mecanismos para que isso ocorra de forma ordenada, transparente a sem atritos.
Os canais de comunicação entre a CGU, o MPF, o TCU e a AGU sempre estiveram abertos quando fui Ministro e continuaram com os que lá me sucederam, plenamente abertos. Fora daí, o resto é debate político, é disputa eleitoral, ou, num plano menor, em um ou dois casos isolados, é disputa por protagonismo pessoal. Mas isso não deve, e não pode, contaminar o funcionamento dessas quatro instituições que são hoje um patrimônio do Brasil.