CONTEÚDO PATROCINADO

Patentes de segundo uso voltam ao debate após consulta pública da Anvisa

Agência discute permitir diferenças entre as bulas de medicamentos genéricos e as de fármacos de referência em relação ao uso

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Interfarma

Os investimentos na área farmacêutica são notoriamente de alto risco – por isso frequentemente se ouvem histórias de fracassos espetaculares. Assim, a propriedade intelectual desempenha um papel fundamental para que o capital continue a fluir e novas curas sejam desenvolvidas.

A decisão sobre o que é ou não protegido por uma patente reflete as prioridades de políticas públicas, que não escapam da realidade de que os fluxos de investimentos buscam empreendimentos de menor risco e maior retorno.

Na época clássica da indústria farmacêutica, as novas curas resultavam geralmente do desenvolvimento de novas moléculas, cujo efeito terapêutico justificava a concessão de patentes de invenção.

Contudo, mais recentemente, a marcha do avanço das novas curas se moveu em larga medida para pesquisas sobre novos usos de substâncias já conhecidas (isto é, o chamado reposicionamento de fármacos).

É errôneo assumir que a primeira invenção é sempre a mais importante. Atualmente, por exemplo, a descrição inicial e a identificação de um gene ou uma sequência menor de DNA podem ser bastante relevantes.

O grande desafio, contudo, costuma residir no trabalho posterior de estimulação e controle dos genes criados externamente e, em particular, sua operação nas circunstâncias reais de tratamento.

Para se obter uma patente é preciso demonstrar que a invenção atende os requisitos legais de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. A invenção é considerada nova quando não compreendida no estado da técnica, que é constituído por tudo aquilo tornado acessível ao público antes da data do pedido da patente.

Ela é dotada de atividade inventiva quando, para um técnico no assunto, não decorrer de maneira evidente ou óbvia do estado da técnica. O último requisito é atendido quando a invenção puder ser utilizada em qualquer tipo de indústria.

Ainda, a invenção não é necessariamente um produto, mas também pode ser um processo de fabricação ou mesmo um uso específico de um produto ou processo. A lei não dispõe sobre o que pode ser patenteado, apenas estabelece os requisitos legais e define o que não é patenteável (artigo 18 da Lei da Propriedade Industrial) ou considerado invenção (artigo 10).

Nesse sentido, não se consideram invenção os métodos terapêuticos ou de diagnóstico. Trata-se de uma proteção aos profissionais da área de saúde (tanto humana quanto veterinária), limitada aos métodos que eles possam eventualmente empregar.

Naturalmente, com o aumento dos investimentos em pesquisas sobre novos usos médicos de substâncias conhecidas, surgiram pedidos de patentes referentes a essas aplicações.

Na Europa, o Instituto Europeu de Patentes decidiu, em 1984, que não somente o primeiro uso deveria ser protegido, mas também os usos subsequentes. Inicialmente, exigiu-se que as reivindicações dessas patentes fossem redigidas na forma convencionalmente chamada de “fórmula suíça”.

No Brasil, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) também concede proteção às invenções de segundo uso, como são identificadas as patentes que reivindicam novos usos sobre substâncias já conhecidas. A autarquia exige que o requerente redija a reivindicação de sua patente na forma da fórmula suíça: “uso de um composto de fórmula X, caracterizado por ser para preparar um medicamento para tratar a doença Y”1.

Essa posição resguarda o trabalho dos profissionais de saúde, como médicos e enfermeiros, ao mesmo tempo em que não frustra o fluxo de investimentos a pesquisas que podem gerar novas curas.

Por exemplo, a pregabalina foi originalmente desenvolvida para tratar convulsões epiléticas; posteriormente, após novos investimentos em pesquisa e desenvolvimento, identificou-se que a substância era eficaz no tratamento da dor neuropática e do transtorno de ansiedade generalizada.

O sildenafil foi inicialmente desenvolvido para tratar doenças cardiovasculares; depois, pesquisas notaram a possibilidade de utilizar essa molécula no tratamento de disfunção erétil, o que levou ao medicamento Viagra.

A aceitação de patentes de “segundo uso” reflete a inteligência do legislador que, cuidadosamente, tratou de privilegiar inovações voltadas à obtenção do resultado “cura” ou, em alguns casos, “tratamento”, em vez de delimitar a condição de obtenção de patente apenas à obtenção de uma nova substância, o que inibiria esforços para uma solução clínica inovadora com base em moléculas já existentes.

O Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), que tem competência para julgar ações envolvendo o INPI, já há muito confirmou a legalidade da concessão de patentes de segundo uso. O Tribunal ressalta, ainda, que essas patentes somente são concedidas quando os requisitos de patenteabilidade foram cumpridos inequivocamente:

 “[E]m que pese o denominado ‘segundo uso’ não ser expressamente vedado por nosso ordenamento, há que haver em relação a ele, um inequívoco preenchimento dos requisitos da novidade e inventividade, os quais ainda devem ser aferidos de forma bem mais rigorosa, uma vez que se trata de partir de alguma coisa já conhecida (no caso o conjunto substância e processo), ambos no estado da técnica, para que se lhe estenda um outro monopólio”. 

O trecho do julgado revela aspectos cruciais em qualquer análise séria sobre patentes de segundo uso: o de que a invenção de segundo uso (i) deve cumprir com os requisitos legais de patenteabilidade; e (ii) se limita apenas ao novo uso patenteado.

Com efeito, (i) uma reivindicação sobre um segundo uso não protege um novo uso óbvio; o uso deve ser inventivo per se. E o escopo da proteção limita-se ao uso da substância para a nova aplicação terapêutica, de modo que (ii) as patentes concedidas não cobrem nem o primeiro uso, nem a substância – a infração de uma reivindicação de segundo uso ocorre quando a entidade química é utilizada na fabricação de um medicamento que possa tratar a indicação terapêutica mencionada na patente que cobre o referido segundo uso.

A possibilidade de patenteamento de novos usos abre espaço para pesquisas de novas curas alicerçadas na maior disponibilidade de capital. Esse é um espaço aberto tanto aos grandes conglomerados internacionais quanto à indústria farmacêutica nacional, em colaboração com centros de pesquisa e ensino nacionais.

A concessão de proteção ao segundo uso, assim, favorece a indústria nacional, que encontra uma oportunidade de desenvolver soluções patenteáveis, sem ter que recorrer à síntese de novas substâncias, atividade que exigiria investimentos muito mais significativos.

Apesar de conhecidos os benefícios e a legalidade das patentes de segundo uso, um retorno à temática se justifica em razão da recente consulta pública realizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre a possibilidade de passar a permitir diferenças entre as bulas de medicamentos genéricos e similares, de um lado, e as bulas padrão dos medicamentos de referência, de outro, em relação a indicações (isto é, o uso) protegidas por patente.

A depender do resultado da consulta, o lançamento de medicamentos genéricos com a exclusão, na bula, de indicação terapêutica patenteada, o chamado skinny label, poderá ser previsto em normas infralegais – a despeito de possíveis questionamentos quanto à legalidade da prática.

As empresas do setor estarão atentas ao resultado da consulta e acompanhando as eventuais implicações comerciais, assim como as entidades sociais e representativas dos pacientes estarão de olho em possíveis impactos não apenas sobre acesso a medicamentos, mas também na segurança dos pacientes.

Seja qual for o resultado da consulta, as patentes de segundo uso permanecem instrumento de avanço social e econômico, por meio do qual mais empresas e centros de pesquisa têm a oportunidade de lastrear financeiramente seus esforços de pesquisa, colaborando para expandir o potencial para a invenção de novas curas e tratamentos, o que é, afinal, o objetivo da pesquisa na área da saúde.

1 Segundo as Diretrizes de Exame do INPI, “a atividade inventiva é avaliada em função da doença a ser tratada” (5.44). Além disso, no item 9.1 da Resolução 208/2017, a Diretoria de Patentes do INPI aponta os diversos aspectos que devem ser observados pelo examinador quanto à novidade a à atividade inventiva em pedidos envolvendo um novo uso médico.