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Afinal, processo é forma ou instrumento?

No plano do formalismo puro, seria impensável um juiz atuar como acusador e julgador

01/10/2024|05:00
Atualizado em 01/10/2024 às 11:42
código civil
Estátua da Justiça, com o mastro da Praça dos Três Poderes ao fundo. Crédito: Dorivan Marinho/STF

Na história do direito, o formalismo e o instrumentalismo se intercalaram. No Direito Romano clássico, houve o formalismo do “ius civile”, flexibilizado pelo direito pretoriano. No Direito anglo-saxão, a rigidez formal do “common law”, foi permeado por remédios de “equity”.

No Brasil, há uma obra fundamental sobre o tema da tensão entre forma e instrumentalidade na obra do professor C. Dinamarco na USP (denominado por seus seguidores “instrumentalista”). Há, na obra de Dinamarco, uma crítica ao exagero do formalismo que caracterizou a dogmática processual que lhe antecedeu, como que permitindo uma flexibilização do rigor formal por uma busca de uma realidade social ou concreção de direitos previstos pelo ordenamento jurídico. Todavia, não tenho notícia de que ele tenha avançado ou mesmo criado uma metodologia adjudicatória para tanto.

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Enquanto a ciência processual discute conceitos, a realidade dos tribunais segue. Nem bem se pode caracterizá-la por formalista, nem exatamente por instrumentalista. Faltam estudos empíricos, jurimétricos que permitiram essa conclusão. Em trabalho estatístico, a Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) demonstrou, inclusive, um considerável descolamento entre a pesquisa acadêmica jurídica e a realidade dos tribunais.

Na ausência de tal estudo jurimétrico, valho-me aqui da metodologia científica denominada de “método do caso”. O caso concreto que proponho à análise diz respeito a um recente precedente do STF que estabeleceu a responsabilidade por grupo econômico da empresa Starlink por atos de outra empresa, alegadamente controladas pela mesma pessoa (Elon Musk). Trata-se de uma decisão judicial exarada no chamado “inquérito das fake news”, instaurado de ofício pelo STF a fim de investigar e punir violações à democracia, entre outros ilícitos.

No plano do formalismo puro, seria impensável um juiz atuar como acusador e julgador. Também seria impensável a decretação de ofício de grupo econômico e desconsideração da pessoa jurídica. Será que devemos entender como formalismo exagerado a inércia do poder judiciário? E o que dizer da confusão entre investigação, acusação e julgamento? Seria formalismo?

De outra parte, sob a ótica instrumentalista, poderíamos pensar que o mais importante é que regras da democracia sejam respeitadas e que princípios e regras processuais não deveriam ser óbices a isso, especialmente em se tratando de um contumaz descumpridor de decisões judiciais.

Mas será que seria esse o pensamento de um instrumentalista? Nesse caso, como estabelecemos limites ao poder instrumental de um magistrado no caso concreto trazido?

Deixo essas perguntas em aberto aos processualistas.

Sob minha ótica, creio que nessa tensão que o caso concreto traz entre forma e instrumento, a teoria processual ganharia vigor se buscasse o pragmatismo, no sentido de pensar e refletir sobre consequências práticas decisórias.

Posner, em seu neopragmatismo próprio, defende que a aplicação de regras legais tem fundamental importância para a consistência do sistema jurídico; mas não por puro amor à forma, mas porque a ponderação dos efeitos de um juiz descumprindo o texto da lei ensejaria um debate que colocaria em risco a integridade do sistema jurídico e a segurança jurídica. A importante obra do juiz Anderson Paiva sobre o pragmatismo no processo penal, que poderia ser aplicada também ao campo civil, traz esses conceitos de Posner para o Brasil.

Possivelmente, isso permitiria concluir que deveríamos levar a sério alguns princípios e regras do processo civil, até textualmente, como a citação, a inércia do poder judiciário e a separação entre acusação e julgamento, além do próprio incidente de desconsideração da personalidade jurídica; nessa toada, a forma prevista em lei teria presunção de adequação e necessidade de respeito.

E ponderações consequencialistas do caso, expressamente enfrentadas pelo magistrado, poderiam ensejar algum grau de flexibilização instrumental da formalidade, especialmente com relação à citação (por exemplo, uma interpretação que não permita que partes oportunistas escapem à jurisdição nacional ou apostem em prescrição).

Mas essas consequências devem ser escrutináveis, baseadas em teorias e evidências científicas, não podendo se tratar de um mero “consequenciachismo” ou algum “supertrunfo” retórico constitucionalmente justificado. Ou seja, nada além do que a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB) determina aos magistrados. logo-jota