Pandemia

Coronavírus: constitucionalidade das reduções de salário e jornada

Inobservância das disposições previstas na MP 936 tem potencial de ocasionar significativa perda de empregos

reforma trabalhista
Crédito: Marcos Santos/USP Imagens

O mundo sofre atualmente os reflexos de um vírus descoberto em dezembro de 2019, em Wuhan, na China: a Covid-19. Essa realidade provoca impactos diretos na economia mundial, o que, consequentemente, influencia diretamente as relações de trabalho, colocando em risco a manutenção dos empregos.

Diante do panorama traçado, o Governo Federal implementou medidas de promoção e proteção dos postos de trabalho e da saúde financeira dos empregadores. Dentre elas, foi editada a MP nº 936, de 1º abril de 2020.

A priori, insta salientar que a MP 936/20 estabelece como um de seus objetivos a manutenção do emprego e da renda (art. 2º, I), adotando como uma das medidas possíveis a redução proporcional da jornada de trabalho e salário (art. 3º, II), preservando o salário-hora do empregado (art. 7º, I), o qual receberá, ainda, o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, custeado pela União (art. 5º).

Em 2 de abril de 2020, foi ajuizada Ação Declaratória de Inconstitucionalidade contra a MP 936/20 (ADI 6363), a qual se embasou, fundamentalmente, na violação dos artigos 7º, VI, XIII e XXVI, e 8º, III e VI, da Constituição Federal, em virtude das previsões constantes nos artigos 7º, II; 8º, §§1º, 3º, II; 9º, §1º, I e 11 caput da Medida Provisória, que não observariam a imprescindibilidade da negociação coletiva para fins de redutibilidade salarial.

Foi deferida, em parte, a medida liminar, para conferir interpretação conforme a Constituição ao §4º do art. 11 da MP 936/20, estabelecendo que os acordos individuais de redução de jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporário do pacto laboral deverão ser comunicados pelos empregadores aos sindicatos profissionais, no prazo de até dez dias corridos, de sua celebração, para caso queira, deflagre a negociação coletiva.

Nova decisão proferida em 13 de abril de 2020, em razão de Embargos Declaratórios opostos pelo Advogado Geral da União, não alterou o teor do decisum. Além de previsão expressa de rejeição do recurso interposto, ficou esclarecido que a validade do acordo individual firmado, apesar de produzir efeitos imediatos, está condicionada à inexistência de negociação coletiva superveniente, conforme se observa da transcrição parcial do julgado:

“[…] os eventuais acordos individuais já celebrados – e ainda por firmar – entre empregadores e empregados produzem efeitos imediatos, a partir de sua assinatura pelas partes, inclusive e especialmente para os fins de pagamento do benefício emergencial no prazo estipulado, ressalvada a superveniência de negociação coletiva que venha a modificá-los, no todo ou em parte.”

Analisando-se o disposto nos incisos VI e XIII do art. 7º da Constituição Federal, verifica-se a inexistência de qualquer impeditivo à redução salarial acompanhada de diminuição proporcional da carga horária, especialmente em momento excepcional como o presente. O que se veda é que, sem prévia negociação coletiva, ocorra a pura e simples redução, desprovida da correspondente modificação da jornada, providência que não se confunde com aquela adotada pela MP 936/20.

Trata-se, portanto, de regra de paridade e não há redução de salário, conciliando-se a diminuição da atividade econômica empresarial com a redução de jornada de trabalho, sem qualquer alteração no salário-hora do empregado. Aliás, não se visualiza qualquer violação ao inciso XIII do art. 7º da CF, visto que sequer se discute compensação de jornada.

E mais: na medida do possível, a perda salarial será complementada pelo benefício assistencial custeado pelo governo.Tais medidas encontram-se em perfeita harmonia com os preceitos constitucionais do valor social do trabalho e livre iniciativa, dignidade da pessoa humana, solidariedade, promoção do bem comum, função social da empresa, justiça social, existência digna, redução das desigualdades e busca pelo pleno emprego (CF, art. 1º, III e IV; 3º, I e IV; 5º, XXIII; 170, “caput”, III, VII e VIII).

No mesmo sentido, a Declaração Universal de Direitos Humanos (art. XXIII, “1”) prevê o direito ao trabalho e à proteção contra o desemprego.

A questão foi regulada pelo artigo 503 da CLT – na minha ótica, recepcionado pela Constituição Federal – e, posteriormente, pelo art. 2º da Lei nº 4.923/65 (aplicado pelas Cortes Trabalhistas, inclusive TST), o qual exigiu, concomitantemente à redução salarial, a diminuição proporcional de jornada e a prévia negociação coletiva – ou eventual suprimento judicial no caso de injustificada recusa.

Ante o teor da Lei nº 4.923/65, há de se concluir que foi recepcionada pela Carta Magna de 1988, na medida em que, consideradas circunstâncias ordinárias, observa-se que foi estabelecido patamar mais protetivo, trazendo condicionante não imposta pelo texto constitucional (a necessidade de prévia negociação coletiva para a redução salarial, acompanhada da proporcional diminuição da jornada de trabalho). Como o requisito não encontra assento constitucional, não há óbice para que leis ordinárias ou medidas provisórias promovam alterações neste particular.

Ressalte-se que, em vista de situações fáticas excepcionais ou diferenciadas (como a atual crise de saúde pública), deve-se permitir a adaptação ou redução temporária do patamar dos direitos sociais, ressalvando-se, apenas, o mínimo existencial, com a finalidade de dar concreção a outros valores centrais da ordem jurídica, em prol de toda a coletividade.

Nesse sentido, o Tribunal Constitucional Português respaldou medidas legislativas implementadas pelo governo em decorrência das repercussões da crise econômica de 2008, a exemplo da redução de pensões (Processo 72/11 – Acórdão 396/2011 – Plenário – Rel. Cons. Joaquim de Sousa Ribeiro).

Feitas estas considerações, vale assinalar que, ainda que se confira distinta interpretação ao art. 7º da CF e se entenda pela necessidade de acordo coletivo para a redução salarial com proporcional diminuição da jornada, também é possível chegar à conclusão de que a MP 936 é compatível com o texto constitucional, notadamente diante da possibilidade de flexibilização de direitos sociais e da viabilidade de adaptações ou reduções temporárias via acordo individual  de direitos fundadas em situações extraordinárias.

A propósito, trata-se de mera harmonização de valores constitucionais igualmente amparados pela Constituição Federal. Diante da colisão entre direitos trabalhistas individualmente considerados e a preservação do emprego, constata-se que, embora a MP 936/2020 sacrifique parcialmente os primeiros, consegue, ao final, atingir maior grau de concreção de valores constitucionalmente assegurados.

Ademais, a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RE 563851, 2ª Turma, DJe 27/03/2008), a respeito de direitos sociais elencados no art. 7º da CF, revela que, mesmo quando não há ressalvas expressas, eles não detêm caráter absoluto. Um exemplo bastante notório encontra-se no art. 7º, XVI, da CF/88, que prevê o direito ao pagamento de horas extras quando há labor acima da 8º hora diária e/ou 44ª semanal.

Todavia, o inciso II do art. 62 da Consolidação das Leis do Trabalho, por exemplo, excetua desta regra os exercentes do cargo de confiança ou gerência, o que foi considerado recepcionado pela Subseção I Especializada em Dissídios Individuais do TST (E-RR-540991-54.1999.5.05.5555, DEJT 06/06/2003), não obstante a ausência de previsão desta exceção no texto constitucional.

Em síntese, o posicionamento é que o inciso XVI do art. 7º estabelece apenas a regra geral, o que não impede que a legislação ordinária preveja excepcionalidades, logicamente, fundadas no objetivo de se resguardar valores igualmente enaltecidos pela ordem constitucional (como a preservação do emprego) e observado o mínimo existencial.

Também não se deve olvidar que, diante das recentes alterações trazidas pela Lei  13.655/18, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, o Poder Judiciário deve atentar-se para as consequências práticas de suas decisões. No caso, a experiência comum revela a incomunicabilidade de muitas entidades sindicais e a dificuldade de contatá-las, especialmente por micro e pequenas empresas.

Além disso, existe procedimento próprio para aprovação de acordo coletivo pelas assembleias da categoria, sem contar a duração natural das tratativas entre as empresas e os dirigentes sindicais. E não se pode deixar de admitir que a demora que lhe é inerente mostra-se incompatível com a situação emergencial vivenciada pela maioria dos empregadores em razão da crise decorrente da pandemia de Covid-19.

Assim, a inobservância das disposições previstas na MP 936 tem o potencial de ocasionar significativa perda de empregos em território brasileiro, o que, portanto, deve ser evitado.

Não se trata, pois, de raciocínio exclusivamente utilitarista, uma vez que também se está a concretizar valor central da ordem jurídica, isto é, a busca pelo pleno emprego e sua preservação. Isto porque de nada vale a preservação absoluta de todos os direitos dos empregados, se ensejará o risco de que uma parte considerável dos trabalhadores perca o emprego, deixando de usufruir de qualquer um deles.

Aliás, a MP 936, inclusive, mostra-se protetiva, porque, além da preservação do salário, garante o recebimento de auxílio emergencial correspondente a um percentual do seguro-desemprego, e, ainda excluiu-se da possibilidade de acordo individual os trabalhadores que recebem entre R$ 3.135,00 (três salários mínimos) e R$12.202,12 (duas vezes o teto do Regime Geral de Previdência Social), pois, ainda com o valor do auxílio emergencial, teriam uma substancial redução de renda, o que se procurou evitar.

Desta forma, conclui-se que:

  1. As políticas adotadas pela Medida Provisória nº 936/20 têm como finalidade assegurar direitos básicos de preservação do emprego e proteção contra o desemprego, além de concretizar valores centrais da CF/88;
  2. Inexiste vedação constitucional à possibilidade de redução salarial com proporcional diminuição da jornada de trabalho por acordo meramente individual, uma vez que não há a previsão de que deva haver prévia negociação coletiva;
  3. Atualmente, a redução salarial, com proporcional diminuição da jornada de trabalho, é regulada pela Lei nº 4.923/65, não havendo óbice para que leis ordinárias ou medidas provisórias promovam alterações neste particular;
  4. Os direitos sociais não possuem caráter absoluto e, em situação específica, o TST e o STF já reconheceram que, embora o inciso XIII do art. 7º da CF não faça ressalva ao direito às horas extras, o inciso II do art. 62 da CLT foi recepcionado pela Carta Magna, pois estabelece exceção, devidamente justificada.