Senado

As origens do Regime Disciplinar Diferenciado

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Capítulo 1

Nascimento do RDD

Há poucos dias o Tribunal de Justiça de São Paulo indeferiu pedido de internação no Regime Disciplinar Diferenciado – [simple_tooltip content=’Este texto está sendo escrito em agosto de 2006.’]RDD[/simple_tooltip], formulado por mim quando estava na secretaria, contra os principais líderes do PCC – Marcola, Julinho Carambola e outros – sob o argumento de que esse regime fere a Constituição Federal. Seria uma espécie de pena cruel e degradante. Creio que é a primeira decisão que acolhe essa tese. O assunto está gerando grande polêmica nos meios jurídicos, junto às autoridades públicas e nos meios de comunicação.

[simple_tooltip content=’“O Estado de S. Paulo, Notas e Informações, pág. 3, 17.08.2006.’]O “Estadão” disse em seu editorial[/simple_tooltip]: “A decisão causou perplexidade, pois, se é discutível, no mérito, poderá ser desastrosa, em suas conseqüências sociais”…. “Desde o advento de organizações criminosas violentas, como a Máfia, o isolamento rigoroso como dispositivo de segurança é aceito em quase todo o mundo. Ele é baseado num princípio jurídico que, sem ferir garantias fundamentais e apelar para medidas de exceção, põe o interesse público acima de outros princípios, como o da individualização da pena. Infelizmente, ao se prender a um formalismo estéril no exame do RDD, a 1ª Câmara Criminal do TJ deixou de lado o saudável princípio que, em matéria de segurança, prioriza o interesse público e protege a parte mais interessada – a sociedade”.

Dois dias antes dessa decisão, em 12 de agosto de 2006, sábado, um jornalista e um auxiliar técnico da Rede Globo foram sequestrados, provavelmente por ordem do PCC. Logo após o sequestro, libertaram o auxiliar técnico e por meio dele enviaram uma fita gravada contendo uma manifestação do PCC contra o RDD. Os criminosos exigiam a divulgação da gravação, ameaçando de morte o jornalista Guilherme Portanova, caso a exigência não fosse atendida.

Os diretores da Rede Globo, depois de consultarem entidades e especialistas do exterior, decidiram atender à exigência e puseram no ar a gravação contendo a fala de um sujeito com capuz no rosto, que leu uma mensagem reclamando do RDD, com o argumento de inconstitucionalidade. A mensagem estava rebuscada de expressões jurídicas. Descobriram depois que era transcrição de trechos de um parecer do Conselho Nacional de Política Criminal de Penitenciária – CNPCP, órgão do Ministério da Justiça.

Esses dois fatos: seqüestro do jornalista com exigência da divulgação do comunicado, mais a decisão do Tribunal de Justiça, dando respaldo jurídico aos reclamos da facção criminosa, acenderam as luzes de alerta da elite intelectual do País. Todos debatem e estão preocupados com a situação da segurança. Todos querem encontrar instrumentos para combater o crime organizado. As principais entidades de representação dos profissionais da área de comunicação fizeram manifestação pública de indignação e a divulgaram pelos jornais e emissoras de televisão.

Poucos sabem, mas o RDD foi concebido, criado e batizado na secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo, por meio de uma resolução de minha responsabilidade, a de nº 26, de 04 de maio de 2001.

Foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei Federal nº 10.792, de 01.12.2003. Essa Lei foi inspirada na resolução de São Paulo, ou melhor, mais que inspirada, foi editada mediante proposta nossa ao Governo Federal. O governador Geraldo Alckmin deu apoio decisivo para sua aprovação. Fui eu que pedi ao governador para apoiar o projeto, a ele explicando seu significado e sua importância.

Esse instrumento é o único de natureza legislativa produzido no Brasil desde o advento da Lei de Execução Penal em 1984, com a finalidade de combater as organizações criminosas no interior dos presídios. Não existe outra Lei em vigor com a finalidade específica de combater o crime organizado nas prisões.

Um dos procuradores de Justiça que integram o grupo montado pelo Ministério Público para combater o crime organizado afirmou sobre a decisão do TJ que considerou o RDD inconstitucional o seguinte: [simple_tooltip content=’Em “O Estado de S. Paulo” de 17.08.2006, editorial, pág. 03.’]“Isso é decisão de quem tem segurança e tapete vermelho por onde vai. E agora? Você fica aqui arriscando a vida e os caras no ar condicionado fazendo uma coisa dessas”, [/simple_tooltip]concluiu, após chamar a atenção para a indignação e desestímulo que a decisão provocou nos órgãos encarregados da segurança pública.

*     *     *     *

Curiosa a vida. Ao final da chamada “Crise de Maio” (contada em outro capítulo), houve quase que unanimidade de opinião nos meios de comunicação e também em algumas instituições. A grande maioria pediu minha cabeça, com o argumento de que eu era muito liberal com os presos. Os promotores de Justiça que atuam no DECRIM – Departamento de Execuções Criminais chegaram a elaborar um ofício, tornado público, pedindo minha demissão do cargo de secretário. Os jornais noticiaram que dos seis promotores lá designados cinco assinaram o ofício.

Imaginando que havia alguém que não concordava com essa postura, telefonei para um juiz que trabalha lá e perguntei quem seria esse amigo que não assinou. Para minha surpresa (ou nem tanto), ele me respondeu:

— “Nagashi, sinto muito, mas fui descobrir que a única promotora que não assinou está doente e em licença para tratamento de saúde. Todos os demais assinaram”.

Curiosa a vida, porque os órgãos de comunicação e membros do Ministério Público que pediram com tanta ênfase minha saída da secretaria estão agora defendendo com igual ou maior ênfase uma medida que foi criada por mim e pela minha equipe. Ou seja, aquele que não servia – na ótica deles — para ser secretário foi quem deixou como herança o maior instrumento de trabalho para o Ministério Público combater o crime organizado.

Mas vamos ao que interessa.

 

Capítulo 2

A escolha do nome

Batismo

Após o dia 18 de fevereiro de 2001, quando 29 unidades penais se rebelaram, comecei a estudar meios para evitar novas ocorrências daquela natureza. Afinal teria sido a maior rebelião de presos do mundo. O motivo da megarrebelião era evidente: foi a transferência de líderes do PCC para penitenciárias mais rigorosas. De duas uma: ou nos conformávamos com a fatalidade da situação, aceitando as imposições do crime organizado para manter a chamada “paz dos pântanos”, ou partiríamos de vez para o enfrentamento.

Por muitas e muitas vezes havia dito aos meus companheiros da secretaria: se for para ficar aqui, conformado com a inevitabilidade das coisas, aceitando chantagens de facções criminosas, prefiro pegar o boné e ir para casa. Enquanto eu for secretário não há acordo de espécie alguma. Vamos enfrentar essas organizações, com coragem e com determinação, mas sem bravatas, dentro da Lei e obedecendo rigorosamente os ditames da Constituição.

Com base nessas premissas montei uma equipe incumbida de estudar o assunto. Dela faziam parte [simple_tooltip content=’Secretário Adjunto, delegado de polícia de carreira.’]José Carneiro de Campos Rolim Neto[/simple_tooltip], [simple_tooltip content=’Procurador de Estado aposentado e Ouvidor da SAP.’]Pedro Armando Egydio de Carvalho[/simple_tooltip], [simple_tooltip content=’Procurador de Estado da ativa e Coordenador dos Estabelecimentos Prisionais – COESPE.’]Sérgio Ricardo Salvador[/simple_tooltip], [simple_tooltip content=’Advogada, Chefe da Assessoria Técnica de Gabinete da SAP.’]Fabiane Furukawa[/simple_tooltip] e [simple_tooltip content=’Advogada criminalista, concursada da FUNAP.’]Selma Montanari Ramos[/simple_tooltip]. Depois de muitos estudos e análises, durante uma reunião com outros membros da equipe, decidi baixar a resolução criando o RDD para as lideranças do crime organizado.

Havia a questão do nome: uns sugeriam “regime disciplinar”; outros, “isolamento preventivo”, “regime disciplinar rigoroso” e mais alguns que não lembro mais. Foi Sérgio Ricardo Salvador que veio com o “Regime Disciplinar Diferenciado” – RDD, que agradou a todos. Da minha parte não dei muita importância ao nome, porque o que importava mesmo era a essência do que se criava.

Pela primeira vez no País nascia um regime disciplinar diferente para presos que querem enfrentar o Estado, subvertendo a ordem nas prisões, ou que representam sério risco para a sociedade. Antes do RDD a Lei de Execução Penal sempre deu idêntico tratamento a todos os presos, nos direitos, nas obrigações e nas sanções.

Sérgio Ricardo Salvador era procurador do Estado concursado, já há alguns anos na carreira. Jovem, brilhante na formulação de idéias, seu cérebro parecia uma usina de onde saíam sempre propostas novas. Eu o conheci por meio da Selma, que o trouxe ao meu gabinete no início de 2000, época em que procurava alguém para substituir o coordenador Lourival Gomes.

*     *    *     *

Sérgio entrou na minha sala e começou a falar das suas idéias para aperfeiçoar o sistema penitenciário. Dizia das alas de progressão penitenciária, uma espécie de galpão ao lado das penitenciárias, onde os detentos com direito ao regime semi-aberto ficariam aguardando vaga nos estabelecimentos próprios. Mostrava preocupação com a insuficiência de vagas, de recursos e de funcionários. Diferente de outros profissionais da área jurídica, conhecia a secretaria como um todo e tinha boas idéias para enfrentar os problemas.

Gostei dele. Em nossa primeira conversa já pensei em convidá-lo a assumir a coordenadoria geral do sistema. Por cautela fiz umas investigações sobre sua vida e sobre sua atuação como procurador. Não podia correr o risco de trazer para minha equipe alguém com antecedentes, nem diria criminal, porque um procurador não deveria ter problemas nessa área, mas no campo ético e moral. Para esse cargo se aplicava perfeitamente a máxima sobre a mulher de César (não basta ser honesta, tem que parecer honesta).

Diante de todas as informações favoráveis, decidi convidá-lo para o importante cargo. Entusiasmado, ele aceitou o convite. Para sua nomeação tive que fazer um malabarismo. Não podia simplesmente pedir a publicação no diário oficial, porque havia necessidade de autorização da Procuradoria Geral do Estado, órgão a que ele estava subordinado. Todos comentavam que o coordenador, se soubesse antecipadamente da sua substituição, poderia criar sérios problemas.

Achei que era exagero e fui em frente. Pedi autorização para afastamento do Sérgio e ele veio, primeiro, como assessor, em 30 de março de 2000. Ninguém sabia da minha intenção em nomeá-lo coordenador. Depois, enviei ao diário oficial sua nomeação. No momento em que tive certeza de que o ato seria publicado no dia seguinte, convoquei todos os diretores e comuniquei a decisão em reunião geral realizada na Academia Penitenciária. O Lourival, no discurso de despedida, chorou e levou às lágrimas muitos diretores. Apesar das divergências conceituais, ideológicas, gerenciais e mesmo no campo ético e moral, devo reconhecer que Lourival Gomes tinha liderança e era benquisto por muitas pessoas.

*     *     *     *

Muitas das propostas do Sérgio se transformaram em realidade. As alas de progressão penitenciária foram construídas ao lado de 19 penitenciárias, resolveram o problema da falta de vagas no regime semi-aberto e hoje fazem parte da realidade do sistema prisional paulista. Representantes de outros Estados vieram conhecer a novidade, por ser uma solução prática e barata.

No dia 25 de abril de 2006 Sérgio foi vítima de latrocínio. Quando voltava do trabalho para a residência, em circunstâncias ainda não esclarecidas, foi morto. Seu corpo estava ao lado do seu veículo. Um dos seus companheiros inseparáveis, [simple_tooltip content=’Diretor do departamento de controle e execução penal da SAP.’]Marco Antonio Peres[/simple_tooltip], que fazia parte da equipe dos fiéis mosqueteiros que ele trouxera à secretaria, escreveu sobre a morte do Sérgio: “o que lamento de fato, e para isso não existe solução, é a perda de um grande homem, vítima da mesma violência contra a qual lutou. É como dizia John Lennon: ‘Um rei sempre acaba sendo morto por um dos seus súditos’. Entretanto, ninguém jamais acabará com os ensinamentos e os exemplos a nós legados. Por isso, é assim que me refiro a ele: no presente”.

De fato, o nome “Sérgio Ricardo Salvador” ficará para sempre gravado na memória e na história do sistema penitenciário de São Paulo, embora tenha ficado por pouco tempo, de 30 de março de 2000 a 23 de maio de 2001. A missão que parecia impossível a muitos, de extinguir a COESPE, foi rigorosamente cumprida no prazo de um ano, como pedi a ele. No lugar da velha coordenadoria surgiram seis novas, com atuação nas várias regiões do Estado e uma para cuidar exclusivamente da saúde dos presos.

*     *     *     *

Voltando à questão do RDD, após tomar a decisão pela sua instituição, designei, como habitualmente fazia, o ouvidor Pedro Egydio para dar a redação final à resolução. Era garantia de que nela não haveria nenhuma heresia jurídica e se assegurariam todos os direitos constitucionais dos presos.

Na época mal imaginava que essas três letrinhas – RDD – causariam tanta polêmica entre os juristas, nos tribunais e agora, mais recentemente, nos meios de comunicação.

A divulgação da resolução causou profundo impacto no sistema penitenciário. Agora sim, diziam diretores e agentes penitenciários. Esse secretário é louco, afirmavam outros: sempre quisemos um instrumento como esse, mas a “turma dos direitos humanos” vai acabar com ele.

O fato é que a resolução, na medida em que foi sendo aplicada, começou a produzir resultados. As rebeliões diminuíram drasticamente e ao final de 2002 cessaram por completo. No Estado de São Paulo, com 43% dos presos do País, desde novembro de 2002 até fevereiro de 2004, ou seja, durante 16 meses, não houve um só movimento de subversão em suas penitenciárias.

Além das penitenciárias que foram designadas para cumprimento do RDD (Taubaté e Presidente Venceslau II), tínhamos inaugurado também o CRP – Centro de Readaptação Penitenciária de Presidente Bernardes, que se destinaria exclusivamente para aplicação do RDD. Este estabelecimento penal, com 160 celas individuais, é tido até hoje como o presídio mais seguro do Brasil. Foi ali que colocamos a nata do PCC, inclusive seus líderes máximos, como Geleião, Marcola, Blindado e outros. Foi lá que internamos um chileno perigosíssimo, com duas condenações à prisão perpétua em seu país, Maurício Hernandes Norambuena. Lá ficou, por dois anos e meio, Luiz Fernando da Costa, o “Fernandinho Beira-Mar”, narcotraficante que aterrorizava a população do Rio de Janeiro. O “Beira-Mar”, segundo nos informaram na época do pedido de transferência, ameaçava explodir dois ou três hotéis de luxo em pleno carnaval de 2003.

Na inauguração do CRP de Presidente Bernardes, em 2002, bem no dia de aniversário da minha filha Juliana, 02 de abril, lembro que falei na solenidade mais ou menos o seguinte: “estamos entregando ao povo paulista um estabelecimento penal de segurança máxima. Nele colocamos tudo para preservar a ordem e a disciplina e para impedir fugas: desde detectores de metal, aparelhos de raio X, pisos de aço com 10 mm de espessura, aparelho bloqueador de celular, cabos de aço para impedir acesso de helicópteros, até locais para visita que impedem contato físico entre visitantes e presos. Advogados só poderão falar com seus clientes por meio de interfones instalados nos parlatórios guarnecidos com vidro reforçado. Porém, isto tudo não servirá para nada se não for, como diz o coordenador [simple_tooltip content=’Perci de Souza, Coordenador das Penitenciárias da Capital.’]Perci[/simple_tooltip], o ‘zóio do guarda’. Serão vocês, funcionários, e não os equipamentos, que farão desta penitenciária modelo para o Brasil”.

Para dirigir a unidade escolhi diretor-geral Antonio Sérgio de Oliveira, um agente penitenciário que vinha se destacando na região onde atuava. Ele é um sujeito moreno, forte, diria até meio gordo, taciturno, de poucas palavras, sério. Era a pessoa ideal: não queria numa penitenciária que ficaria sob o foco da imprensa alguém chegado às luzes dos holofotes.

A curiosidade levou inúmeros jornalistas a Presidente Bernardes. Autoridades da cidade e da região estavam presentes. Todos muito impressionados com o aparato de segurança que a nova penitenciária exibia.

 

Capítulo 3

As resistências da direita e da esquerda

A razão

Eu nasci em Presidente Bernardes. Meu pai era lavrador e trabalhou durante alguns anos nas plantações de algodão, de café e no cultivo de hortelã na região. Muitas vezes, por não ter condições financeiras, aceitava trabalhar em sistema de meação com um grande fazendeiro de lá. Era uma época difícil, pós-guerra e a lavoura mal permitia o sustento da família. Japonês rigoroso que fazia da honra e da honestidade valores máximos da vida, meu pai teve que deixar Presidente Bernardes entristecido porque não conseguiu saldar uma conta que tinha em um armazém, daqueles que vendiam “fiado”, anotando as compras em uma caderneta. Até alguns anos antes de sua morte falava da conta que continuava em aberto. Fui certo ano, muito antes de ser secretário, com Rosa, minha irmã, ao local onde ficava o tal armazém, na expectativa de encontrar alguém para saldar a dívida. Não tivemos êxito. O armazém fora fechado e seus proprietários mudaram-se, foi a informação que conseguimos.

Pois bem. No dia da inauguração do CRP, de cima do palanque, perante dezenas de pessoas, inúmeros repórteres, não consegui me conter e acabei contando a história da dívida. E solicitei que me informassem, se alguém soubesse do credor, ou de seus parentes, pois eu estava disposto a pagar a dívida. Tudo bem que com quase 50 anos de atraso… Mas, como diz o ditado popular, antes tarde do que nunca… Ninguém apareceu até hoje.

*     *     *     *

A internação em RDD enquanto disciplinada pela resolução da secretaria, era extremamente rápida. Diante de provas ou indícios veementes de envolvimento de algum preso em atos que tivessem subvertido ou pudessem subverter a ordem nas penitenciárias de forma grave, o diretor fazia a comunicação ao coordenador e este pedia a internação ao secretário-adjunto. Tudo on-line, sem nenhuma burocracia. O secretário-adjunto examinava o pedido e o decidia imediatamente. A transferência do preso para o RDD se dava quase sempre no mesmo dia, ou no máximo no dia seguinte à formulação do pedido.

A fama do rigor no RDD começou a se espalhar pelo sistema: não havia visita íntima, nem televisão, rádio, jornais ou revistas. O banho de sol era de uma hora por dia. A saída das celas para o pátio era acompanhada por quatro agentes penitenciários, proibidos de dirigir a palavra aos presos.

O rigor do regime e a rapidez nas decisões de transferência, começaram a causar medo aos mais perigosos criminosos do sistema. Muitos agentes me contaram que viram presos famosos, daqueles que nada temiam, chorando e pedindo quase de joelhos para não serem mandados para lá. Fábio Brandão Martins, que é diretor da penitenciária de Potim, um servidor muito interessante, daqueles que vibram e choram de tanto gostar da profissão, dizia sem parar:

— “Dr. Nagashi, essa foi a melhor coisa que o senhor inventou. Antes os presos saíam das penitenciárias destruídas nas rebeliões e deixavam escrito nas paredes – ‘PCC – 1533 – destruímos mais uma – he, he, he’. Dava vontade de quebrá-los com cano de ferro. Nunca fiz isso, mas vi colegas fazendo. Agora não. Mais que cano de ferro, eles temem três letrinhas: RDD. Agora quem ri sou eu – he, he, he”, contava, com os punhos cerrados, balançando os braços, os olhos brilhando de entusiasmo.         

Certamente a diminuição das rebeliões não foi decorrência só do RDD. Outros fatores contribuíram para isso. Mas que o RDD teve decisiva importância nesse resultado, não tenho nenhuma dúvida.

Mais ou menos ao mesmo tempo em que as rebeliões diminuíam, assim como as reclamações sobre maus tratos e torturas aos detentos (o Fábio tinha razão — o número de funcionários que agrediam presos caiu bastante, diria que quase acabou), começaram a surgir os primeiros artigos sobre a inconstitucionalidade do RDD. Creio que o IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais foi o primeiro a se manifestar. E o fez de forma dura, severa, ácida, em editoriais do seu boletim. Depois, vários juristas começaram a escrever sobre o assunto, a maioria contra o novo regime. O CNPCP – Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária também manifestou-se oficialmente entendendo que o RDD era inconstitucional, divulgando o parecer de um dos seus conselheiros (aquele que foi, depois, copiado no manifesto do PCC, e exibido pela Globo).

A maior crítica era relativa à competência para instituir um regime novo de cumprimento da pena de privação da liberdade: entendiam que o Poder Executivo, por meio de resolução de secretário de Estado, não tinha competência para a matéria. Havia necessidade de Lei Federal.

Diante dessas críticas que aumentavam cada vez mais, resolvi levar o assunto ao ministro Márcio Thomaz Bastos. Muitos Estados da Federação já estavam copiando a resolução de São Paulo, criando seus próprios RDDs, às vezes com outros nomes. Era conveniente que a matéria fosse disciplinada por Lei, alterando-se a Lei de Execução Penal. O ministro aceitou meus argumentos e colocou seus assessores em contato comigo para que fizéssemos um anteprojeto propondo as mudanças. Nesse mesmo anteprojeto se incluiria também a eliminação do exame criminológico para fins de progressão de pena e concessão do livramento condicional.

Este último tema (eliminação do exame) é outra grande polêmica. As críticas, principalmente do Ministério Público, persistem até hoje. Alguns juízes também não se cansam de descumprir a nova Lei. Tentaram até apelidar o texto de “Lei Nagashi”. Felizmente não pegou em lugar algum. Acho melhor falar disso em outro capítulo.

A verdade é que, acolhida a idéia pelo ministro Márcio, com apoio do governador Alckmin, como falei, o projeto acabou tornando-se Lei que recebeu o nº 10.792 e foi sancionada pelo Presidente Lula em 01 de dezembro de 2003 e publicada no dia seguinte.

Assim foi concebido e assim nasceu o RDD, que ainda hoje continua a gerar polêmica. Continua revoltando as facções criminosas. Não querem o regime de jeito nenhum. São capazes de seqüestrar para dizer ao País, na marra e na chantagem, que a medida é inconstitucional.

A administração penitenciária é uma atividade ingrata: não consegue agradar a ninguém. Os integrantes de facções criminosas não se conformam com o RDD. As entidades que defendem os direitos humanos também reclamam do rigor do regime. Institutos respeitáveis e juristas de escol, como Alberto Silva Franco, Sérgio Mazina, Kenarik Boujikian Felipe e outros jamais nos perdoaram pelo fato de termos criado o RDD. Eu e Pedro Egydio, que sempre fizemos parte desses grupos tidos como mais liberais na interpretação das leis penais, passamos a ser execrados pelos nossos antigos companheiros de luta. Ao mesmo tempo, os mais conservadores, os chamados “de direita”, diziam que éramos muito “moles” com os presos e queriam mais rigor.

Em suma: conseguimos desagradar a todos, sem exceção. Da direita à esquerda…

A Lei 10.792/03, contra nossa vontade, criou a necessidade de decisão judicial para internação em RDD. O que antes podia ser feito com rapidez por decisão administrativa, em um dia ou dois, depende agora de decisão do juiz da execução penal. Houve caso em que o pedido só foi decidido 7 meses após protocolado. A medida perdeu muito sua força, principalmente a preventiva. Os presos, especialmente estes que comandam facções criminosas, não são bobos. Perceberam rapidamente a mudança e recomeçaram as rebeliões.

É uma pena, como diz o “Estadão”, que o Poder Judiciário não esteja mais sintonizado com as necessidades do momento e com o que acontece no mundo. Esse tipo de regime existe em quase todos os países, até com muito maior rigor do que no nosso.

Porém, como dizem, em Estado Democrático de Direito não se discutem decisões judiciais: cumprem-se.

*     *     *     *

Não vou escrever aqui razões jurídicas sobre a constitucionalidade do RDD. Os argumentos são vários e a finalidade dessas minhas anotações não é a de fazer considerações jurídicas sobre o tema.

Todavia, para que entendam um pouco mais no que consiste o RDD, peço licença para explicar mais um pouco.

Existem três regimes de cumprimento da pena privativa da liberdade: o fechado, o semi-aberto e o aberto. Normalmente os condenados começam a cumprir a pena em regime fechado e vão progredindo para regimes menos rigorosos, dependendo da sua conduta e do tempo de cumprimento da pena. Os doutrinadores costumam chamar esta forma de aplicação da pena de sistema progressivo (às vezes, dependendo da natureza do crime, podem começar no regime aberto ou no semi-aberto). No regime fechado comum, o preso fica recolhido em penitenciárias e tem direito de trabalhar, de assistir televisão, de receber visitas íntimas, ler jornais, ouvir rádios e ficar no pátio de sol, durante 6 a 8 horas por dia. No regime semi-aberto – também chamado de regime intermediário –, que é cumprido em colônias agrícolas ou industriais, os presos podem sair sem vigilância para trabalhos externos e devem voltar à noite para o estabelecimento penal. É nesse regime que recebem autorização para saídas temporárias cinco vezes ao ano, para visitas aos familiares, e que a imprensa insiste em chamar de indulto. No aberto, a pena é cumprida na residência do apenado, no chamado “albergue domiciliar”. Só não podem sair de sua residência à noite e nos dias em que não houver trabalho. Esse regime está completamente desmoralizado, porque não há fiscalização.

Antes do RDD, a Lei de Execução Penal só permitia o isolamento preventivo de quem cometia graves faltas disciplinares, pelo prazo de 10 dias (art. 60 da LEP), para apuração dos fatos. O isolamento, a suspensão e a restrição de direitos, como sanção, não podiam exceder a 30 dias (art. 58), em hipótese alguma.

Pois bem, imagine o leitor que um preso é condenado a cumprir pena de 300 anos de reclusão, porque, digamos, matou 10 pessoas. Ele não cumprirá mais que 30 anos. É o que determina o art. 75 do nosso Código Penal. Esse preso, que não tem mais nada a temer, já que sua pena não poderá ser aumentada, resolve matar alguns dos seus companheiros, ou funcionários. Resolve promover violentas rebeliões, como aconteceu muitas vezes em São Paulo. A única consequência é nova unificação das penas, iniciando-se novo período de contagem, observando-se sempre o período máximo de 30 anos.

Explicando melhor: o preso matou 10 pessoas quando estava solto e foi condenado a cumprir pena de 300 anos de reclusão. Daí ele foi preso e um ano depois mata mais 10 dentro da penitenciária. Por essas 10 mortes recebe mais 300 anos de pena, totalizando 600 anos de reclusão. Ele só cumprirá 31 anos, porque a unificação das penas será feita com base na data dos últimos delitos, “desprezando-se, para esse fim, o período de pena já cumprido” (art. 75, § 2º do Código Penal).

O Estado, como “castigo” a esse preso só podia deixá-lo isolado pelo prazo máximo de 30 dias, antes do RDD. Essa sensação de impunidade e de falta de resposta do Estado estimulava (ou pelo menos não criava freios) várias situações absurdas de insubordinação, de formação de facções criminosas e de quadrilhas organizadas dentro dos presídios.

Com a criação do RDD, o preso que comete delito grave, capaz de subverter a ordem nas penitenciárias, passa a sujeitar-se a esse novo regime, que se diferencia do comum pelo fato de não permitir visitas íntimas, televisão nas celas, rádio, jornais, revistas e nem contato físico com seus parentes. O tempo de banho de sol, que é de 6 a 8 horas no regime fechado comum, no RDD é de 2 horas por dia (antes da Lei, pela resolução paulista, era de uma hora). Ao invés de celas coletivas, no RDD, as celas são individuais. O “bate-papo” entre eles, o planejamento de novos crimes, a extorsão contra presos mais frágeis, fica muito mais difícil, quase que inviabilizado. O tempo de isolamento, antes de 30 dias, agora pode se estender até um ano.

Basicamente são essas as diferenças entre o regime comum e o diferenciado. O fato de o preso ficar isolado a maior parte do tempo, sem poder falar com outros presos e sem poder receber notícias do mundo exterior, por meio de TV, rádio e jornais; por não poder receber seus cônjuges ou companheiros em visitas íntimas, levou muitos juristas a sustentar que a pena é cruel e degradante. Esse regime, segundo essa interpretação, leva os condenados à loucura, ao desequilíbrio psíquico e, por isso, fere a Constituição Federal.

Da minha parte, tenho firme convicção de que o RDD não fere a Constituição. Mesmo buscando no mais íntimo da minha alma, apelando para minha formação humanística e “romântica”, não consigo sequer de leve vislumbrar crueldade ou degradação nessa modalidade de cumprimento da pena. Pena cruel e degradante, vedada pela Carta Magna, é outra coisa. É aquela cumprida em celas escuras, sem ventilação e sem higiene. Este tipo de cela, sem higiene, molhada, sem ventilação, não existe mais em São Paulo.

A verdade é que alguns criminosos, que não têm mais nada a temer, precisam saber que no ordenamento jurídico do País existe uma medida dentro da Lei e da Constituição, capaz de tornar a vida prisional mais dura do que normalmente já é. Lamentavelmente algumas pessoas só entendem essa linguagem.

Não havendo medida dessa natureza, continuarão a quebrar penitenciárias, a extorquir seus companheiros; continuarão a cortar cabeças e a jogar futebol com os crânios. Às vezes até resolvem exibir cabeças cortadas espetadas em cabos de vassoura para as emissoras de televisão. Isso já ocorreu em São Paulo por muitas vezes… Continuarão a comandar facções criminosas e a afrontar o Estado.

Ainda assim, na linha de nunca afastar a administração penitenciária do objetivo de reintegrar o condenado à vida social, ao se criar o RDD tivemos a preocupação de fixar o tempo máximo da internação em seis meses. A Lei Federal ampliou este prazo para um ano.

Em resumo, esta é a história do Regime Disciplinar Diferenciado – RDD.

Nas conclusões dessas minhas anotações vou escrever sobre as medidas que entendo necessárias para combater de forma mais eficaz as ações das facções criminosas. Estou convencido de que o RDD precisa de aperfeiçoamento, com criação de outras regras, principalmente relativas às visitas de familiares e de advogados.

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* O autor esclarece, ante a dúvida de muitos leitores, que os textos que estão sendo publicados foram escritos no segundo semestre de 2006 e que não foram atualizados.