
Dentre os vários temas contidos no campo de estudo e pesquisa que se rotula como Direito e Sociedade, sobressai como crucial a dificuldade de definição conceitual de “cultura jurídica”. Essa dificuldade se relaciona com a própria complicação na definição do conceito de cultura. As definições oferecidas pelas ciências sociais sobre o conceito de cultura são, por vezes, muito amplas. Um bom panorama para iniciar esse texto pode ser extraído de Leslie A. White:
Praticamente todos os antropólogos culturais assumem como pressuposto, sem dúvida, que a cultura é o conceito central e básico de sua ciência. Existe, contudo, um perturbador desacordo sobre o que eles entendem acerca desse conceito. Para alguns, a cultura é um comportamento incorporado (learned behavior). Para outros, não significa qualquer comportamento; mas, uma abstração do comportamento, qualquer que ele seja. Ainda, machados de pedra e potes de barro significam cultura para alguns antropólogos; porém, nenhum objeto material pode ser cultura para outros. A cultura existe apenas na mente, de acordo com alguns; ela consiste de coisas e de eventos observáveis no mundo exterior para outros. Alguns antropólogos pensam na cultura como consistindo de ideias, porém eles se dividem sobre a questão da sua localização: alguns dizem que elas estão nas mentes dos povos estudados; outros mantém que elas estão nas mentes dos etnólogos[1].
A conclusão do artigo de Leslie White busca o revigorar do conceito de cultura de Edward B. Tylor, considerado por ele como uma base histórica na Antropologia para uma definição mais precisa do conceito[2]. A exposição de White, por vezes, incomoda ao leitor contemporâneo, em razão do seu cientificismo. Ele traça vários paralelos com a Física, com a Biologia e com outras ciências. Um pouco de contexto ajuda a colocar esse autor em perspectiva. Esse autor ficou notabilizado, na literatura antropológica, por defender uma via evolucionista e, também, por se contrapor, de forma enfática, aos postulados de Franz Boas, considerados um dos pais da Antropologia moderna dos Estados Unidos da América[3]. Para o último, cada contexto cultural deveria ser entendido de forma autônoma, sem possibilitar qualquer conclusão ou inferência evolucionista. O presente texto não adentrará nesse debate da Antropologia. Ele apenas busca resgatar alguns textos dessa disciplina, para avançar o argumento de que pesquisas científicas – e demais produtos técnicos – relacionados com o tema da cultura jurídica requerem maior precisão conceitual. O tema é delicado, uma vez que o diálogo está dirigido para uma expressão – cultura jurídica – que foi apropriada pelo senso comum.
Voltando ao texto de Leslie A. White. O seu raciocínio e exposição acabam por definir um conceito preciso de cultura em contraposição com a Psicologia. Uma das suas preocupações é que alguns antropólogos haviam definido o objeto de sua disciplina como dissociado – diretamente – dos comportamentos humanos. Esses comportamentos seriam adstritos ao objeto de pesquisa da Psicologia, ao passo em que a Antropologia só se ocuparia das abstrações relacionadas a eles. Para White, essa solução não seria satisfatória, uma vez que dificultaria a alocação do objeto de pesquisa da Antropologia em termos empíricos. Essa preocupação dá origem ao seu modelo, no qual os objetos de pesquisa seriam as coisas e os eventos em sua relação externa e contextual aos seres humanos, do ponto de vista simbólico. Essas coisas e eventos seriam symbolates por dependerem da simbolização em duas possíveis chaves relacionais. A primeira chave seria a relação com o contexto somático (ou, físico, ou fisiológico, ou corporal) e a segunda chave seria em relação com o contexto extrassomático.
Os primeiros objetos simbólicos e suas relações seriam adstritos à Psicologia. Os segundos à Antropologia. Essa definição possui algumas vantagens. A primeira é que ela permite a análise (observação, classificação e teorização) de comportamentos (eventos) e de resultados de comportamentos (coisas) com uma base de diferenciação clara em relação à Psicologia. A segunda vantagem é que ela identifica um objeto de pesquisa que não depende somente do observador para existir. Ele pode existir por si, ainda que seja necessária a cognição do pesquisador para lhe dotar de sentido. Essa vantagem é uma crítica dirigida para antropólogos que identificavam que a existência do fenômeno cultural dependeria do pesquisador, o que não é aceitável cientificamente. O fenômeno existe autonomamente, ainda que dependa do antropólogo – ciência – para que seja interpretado.
Não obstante, a definição de Leslie A. White possui um problema não resolvido, na minha opinião, que se refere à delimitação quantitativa mínima dos symbolates. Na parte final do ensaio, ele empreendeu uma crítica veemente contra a teorização de antropólogos, os quais consideraram a necessidade de uma pluralidade de elementos para definir algo como “cultural”. Assim, não haveria cultura em elementos únicos (coisas ou eventos), pois seria necessária a existência de algum nível coletivo em prol da formação do traço cultural. Para ele, seria possível identificar um traço cultural (lido como symbolate) mesmo a partir de um evento único ou de uma coisa única, pois essa definição dependeria, precipuamente, do contexto extrassomático e da relação simbólica.
Até aqui, é possível concordar com White, sem ressalvas. Afinal, Max Weber também considera que uma ação social singular poderia ser dotada de sentido, nos termos da Sociologia Compreensiva[4]. Assim, a dualidade, ou a pluralidade, não seria necessária para determinar algo, em termos culturais ou sociais, em princípio. Todavia, uma crítica possível à concepção de Leslie A. White se refere ao seu argumento contrário à assertiva de Edward Sapir de que seleção dos elementos – os pensamentos ou atos – se daria por uma forma “essencialmente arbitrária”. Para White, a seleção se daria a partir do contraste ao contexto extrassomático:
É perfeitamente verdadeiro que os elementos abrangentes do comportamento humano dos indivíduos e aqueles que incluem a cultura são classes idênticas de coisas e eventos. Todas são symbolates – dependentes da habilidade única do ser humano de simbolizar. (…). Considerados em um contexto somático, ou seja, em termos dos seus relacionamentos aos organismos humanos, esses atos dependentes de simbolização constituem comportamento humano. Considerados em um contexto extrassomático, ou seja, em termos dos seus relacionamentos para com outros (to one another), esses atos constituem cultura. Ao invés de, contudo, alocar arbitrariamente alguns na categoria de cultura e o restante na categoria de comportamentos humanos, colocamos todos os atos, pensamentos e coisas dependentes de simbolização em uma categoria ou em outra – somática ou extrassomática – a depender da natureza do nosso problema[5].
Porém, o ponto-chave de Leslie A. White está exatamente em tentar alocar o objeto de pesquisa antropológica – coisas e eventos – em uma dimensão externa ao pesquisador. Dessa forma, a definição de existência de uma relação entre as coisas ou eventos, em contraste ao contexto extrassomático é que servirá de métrica para alocação. Não obstante, cabe notar que ele não consegue fugir da dinâmica analítica da dualidade ou da pluralidade.
Afinal, como o extrato transcrito identifica em itálico, o symbolate (coisas ou eventos) haverá de ter algum relacionamento para com outro symbolate (coisas ou eventos). Assim, fica claro que o seu modelo epistemológico exige, ao menos, dois symbolates (coisas ou eventos) e, dessa forma, essa crítica ao conjunto da Antropologia parece perder a sua potência. Cabe notar que o ponto de vista cientificista de Leslie A. White fica pleno de ironia ao defender essa formulação, quando ele compara o objeto antropológico à descrição de elementos químicos: “uma coisa ou evento pode ser propriamente considerado como um elemento de cultura, mesmo se ele é o único membro de sua classe, assim como um átomo de cobre ainda seria um átomo de cobre, mesmo se ele fosse o único do seu gênero no cosmos”[6].
Contudo, essa pequena crítica não desautoriza toda a argumentação de Leslie A. White sobre a necessidade de diferenciar comportamentos humanos simbolizados, que se afetam ao campo da Psicologia, daqueles outros, que são passíveis de análise cultural, ou seja, pela Antropologia e pela Sociologia. A questão central que se impõe é reconhecer a necessidade de uma definição teórica mais clara sobre o que deve, na condição de objeto científico, ser observado, classificado e teorizado. Discernir as coisas e os eventos que devem ser selecionados é parte de um processo de pesquisa empírica. É por isso que, apesar das críticas teóricas que Leslie A. White dirige contra vários antropólogos, de forma expressa, ele nega que as etnografias deles tenham sido maculadas. O seu debate está muito mais calcado em uma dimensão epistemológica.
Cabe retornar ao debate pelo prisma da cultura jurídica.
É bastante complicado definir uma cultura jurídica nacional sem que sejam definidos determinados elementos do contexto pertinente[7].
Assim, será esse o caminho escolhido por diversos autores contemporâneos. Porém, é possível descer um degrau e buscar considerar uma subcultura jurídica, tal como se refere o senso comum no tocante a um tipo novo de direito. Tendo em conta o que foi exposto sobre a teoria de Leslie A. White, para que essa subcultura jurídica possa ser definida, cabe identificar um conjunto de coisas e eventos (objetos), os quais possam ser observados, classificados e teorizados.
Livros e artigos acadêmicos são expressões – comportamentos na origem – que podem ser lidos como coisas. A própria construção de instituições, com a alocação de recursos públicos ou privados para a consecução de uma finalidade expressa e específica de proteção de tal novo direito também pode ser entendida como coisa ou evento. Ainda, os comportamentos humanos, reiterados ou não, em prol da conformidade com prescrições, fixadas em regras, também podem ser considerados como eventos; e, dessa forma, podem ter significado cultural.
Além de identificar a existência desses elementos culturais (coisas e eventos), cabe lhes alocar em uma classificação, na qual seja possível o contraste com um contexto. Há que existir relação entre essas coisas e esses eventos, bem como que essa relação seja distinguível de outro contexto. O ato de classificação é crucial, uma vez que algum eventual viés de interpretação – ou até mesmo erro – aqui pode incidir.
Portanto, cabe se perguntar, sobre quais seriam as coisas ou os eventos cuja existência seria indispensável para se tratar cientificamente de um novo tipo de direito específico. Ainda, seria possível identificar, com foco nos relatos dos próprios juristas, que esse “novo direito” se relacionaria com diversos outros subconjuntos de interpretações jurídicas as quais possuem designações potencialmente diferentes em outros contextos nacionais. Ao se adentrar nesse quadrante, fica evidente a necessidade de cautela em relação às traduções e aos transplantes jurídicos[8].
Uma ressalva analítica deve ser feita em relação ao risco de se recair em um evolucionismo cultural, o que deve ser evitado. O autor-chave utilizado nesse texto é um evolucionista cultural, como indicado no início do texto. Porém, essa perspectiva, de fato, deve ser rejeitada, uma vez que haveria – a partir dela – a identificação de culturas menos e mais desenvolvidas. O seu ponto de vista evolucionista poderia ser justificado pela perspectiva universalista, imiscuída com o cientificismo. No entanto, se o conceito de cultura enfeixa um contexto específico de um conjunto de coisas e de eventos, parece ser um problema realizar uma interpretação e uma classificação de que determinado conjunto relacional e simbólico – uma cultura local, enfim – seja melhor do que outro, do ponto de vista analítico. Eles seriam diferentes. Mas, não haveria métrica para qualificar um conjunto como melhor que o outro.
Ainda, deve ser indicado que a definição de cultura jurídica inequivocamente demanda uma suficiente pesquisa empírica. Os dados para ela podem ser coletados a partir de uma multiplicidade de métodos. Uma das opções pode ser a tradição antropológica[9]. Porém, mesmo outros métodos – ou combinações –, como pesquisas quantitativas e documentais podem servir para coletar dados para análise por meio de uma teorização contextual, como a descrita no presente texto.
O episódio 45 do podcast Sem Precedentes trata de dois julgamentos que irão começar no Supremo Tribunal Federal (STF) e que interferem diretamente nas relações da Corte com o governo Bolsonaro e o Congresso Nacional. Ouça:
[1] WHITE, Leslie A. The concept of culture. American anthropologist, v. 61, n. 2, p. 227-251, 1959, p. 227. Disponível: https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/pdf/10.1525/aa.1959.61.2.02a00040.
[2] Está disponível em português a tradução de uma série de conferências do autor, que tratam do mesmo tema: WHITE, Leslie A.; DILLINGHAM, Beth. O conceito de cultura. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2009.
[3] Há uma excelente e acessível coletânea de textos de Franz Boas, disponível em português: BOAS, Franz. A formação da Antropologia americana: antologia (1883-1911). Rio de Janeiro: Contraponto Editora e Editora da UFRJ, 1999.
[4] Confira o primeiro capítulo do volume 1 de Economia e Sociedade: WEBER, Max. Economia e sociedade: esboço de Sociologia Compreensiva. Brasília: Editora da UnB, 1999.
[5] WHITE, Leslie A. The concept of culture. American anthropologist, v. 61, n. 2, p. 227-251, 1959, p. 246. Disponível: https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/pdf/10.1525/aa.1959.61.2.02a00040.
[6] WHITE, Leslie A. The concept of culture. American anthropologist, v. 61, n. 2, p. 227-251, 1959, p. 244. Disponível: https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/pdf/10.1525/aa.1959.61.2.02a00040.
[7] Um exemplo desse tipo de empreendimento: FRIEDMAN, Lawrence M. (ed.); PÉREZ-PERDOMO, Rogelio (ed.). Legal culture in the age of globalization: Latin America and Latin Europe. Stanford, CA: Stanford University Press, 2003.
[8] NELKEN, David (ed.); FEEST, Johannes (ed.). Adapting legal cultures. Oxford: Hart Publishing, 2001.
[9] LIMA, Roberto Kant de; BAPTISTA, Bárbara Gomes Lupetti. Como a Antropologia pode contribuir para a pesquisa jurídica? Um desafio metodológico. Anuário Antropológico, n. I, p. 9-37, 2014. Disponível: https://journals.openedition.org/aa/618.