Fernando Aith
Professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Paris. Diretor do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da USP
A proteção da sociedade brasileira contra novas e antigas doenças e ameaças à saúde individual e coletiva depende de um Estado capaz de cumprir adequadamente o seu dever de vigilância em saúde. Ao longo da pandemia, testemunhamos a importância de um Estado vigilante para a garantia da saúde e da vida dos brasileiros.
Certamente que, com uma ação mais coordenada do Estado brasileiro de combate à pandemia da Covid-19, não estaríamos lamentando as quase 700 mil mortes decorrentes desta triste tragédia. E considerando que os níveis de imunização contra os riscos à saúde que já possuem vacinas reconhecidas e aprovadas estão cada vez menores no Brasil, urge que atentemos para as necessárias ações de vigilância em saúde voltadas à garantia da segurança sanitária dos brasileiros. Urge que aprofundemos a reflexão sobre como garantir a segurança sanitária no Brasil contra riscos de doenças e outros agravos à saúde.
A proteção da saúde exige uma atuação permanente e vigilante dos indivíduos, das famílias, das coletividades e, principalmente, do Estado. A complexidade social faz aumentar, a cada dia, a quantidade de riscos a que estamos todos submetidos: riscos naturais (epidemias, doenças, acidentes etc.); riscos advindos do progresso da ciência e da descoberta de novos tratamentos (clonagem, novas técnicas cirúrgicas e terapêuticas, novos medicamentos etc.); e riscos advindos de atividades humanas que possuem reflexos na saúde individual, coletiva ou social (alimentação, trabalho, consumo etc.).
Embora o comportamento individual e coletivo seja importante para a proteção da saúde e a redução dos riscos a que estamos submetidos, é o Estado quem efetivamente assume um papel fundamental na adoção de todas as medidas possíveis e necessárias para evitar a existência, no meio ambiente social, de riscos de doenças e de outros agravos à saúde da população. Quando isso não for possível, compete ao Estado adotar as medidas cabíveis para reduzir os efeitos causados. O princípio da segurança permeia, por essa razão, todo o Direito Sanitário brasileiro e constitui um dos seus principais alicerces.
O princípio da segurança sanitária aplica-se a todas as atividades humanas de interesse à saúde. Ele abrange, de um lado, a necessidade de redução dos riscos existentes nas atividades humanas que são desenvolvidas na sociedade e que podem, de alguma forma, afetar a saúde (produção, distribuição, comércio e consumo de alimentos, medicamentos, cosméticos e equipamentos de saúde; segurança do trabalho; segurança epidemiológica, com o controle de vetores etc.). De outro lado, o princípio da segurança também se estende à necessidade de redução dos riscos inerentes à execução dos atos médicos e serviços de saúde em geral (infecções hospitalares, capacidade técnica dos responsáveis pelos atos médicos, uso de ferramentas digitais etc.).
O princípio da segurança sanitária foi consagrado pela Constituição de 1988, que em seu art. 200, ao estabelecer as competências do Sistema Único de Saúde (SUS), listou diversas atribuições relacionadas diretamente com a vigilância em saúde (arts. 196, 197, 198, II e 200). A lista de competências do SUS prevista pelo art. 200 da C.F. é aberta, ou seja, não esgota as suas atribuições, que são melhor detalhadas na legislação complementar.
O princípio da segurança sanitária exige da sociedade brasileira e do Estado uma atualização permanente, especialmente em decorrência do constante aparecimento de riscos até então desconhecidos, ou do agravamento dos riscos já conhecidos. Seja em decorrência de novas potenciais crises sanitárias (novos vírus, hecatombes, tragédias naturais, alimentos e medicamentos falsificados ou adulterados etc.), seja em decorrência de um futuro incerto (saúde digital, alimentos transgênicos, engenharia genética), a sociedade e o Estado precisam dar resposta para temas fundamentais de saúde que podem representar grave risco social.
O Direito Sanitário brasileiro possui um conjunto de normas jurídicas que orientam, condicionam e proíbem condutas, sempre no sentido de proteger a saúde e aumentar a segurança sanitária. Diversos tipos de sanções são previstas para aqueles que não observarem as normas voltadas à redução dos riscos à saúde. A Constituição Federal orienta o Estado brasileiro a se organizar para a proteção da saúde, sendo que as ações específicas de segurança sanitária são exercidas majoritariamente pela vigilância em saúde, abarcando vigilância sanitária, vigilância epidemiológica, vigilância da saúde ambiental e vigilância da saúde do trabalhador. A segurança sanitária também é garantida por políticas multissetoriais que lidam com alguns dos fatores determinantes da saúde, responsáveis por resolverem questões associadas ao saneamento básico, meio ambiente, habitação, transporte, entre outras. O Direito Sanitário contribui sobremaneira nesse sentido.
Essas competências para a vigilância em saúde no âmbito do SUS, expressamente previstas no artigo 200 da Constituição Federal, visam garantir que o Estado desenvolva ações de controle e fiscalização sobre os atos médicos e serviços de saúde (preventivos, diagnósticos, clínicos, cirúrgicos, terapêuticos etc.), sobre os medicamentos (produção, comercialização, dispensação, consumo etc.), sobre equipamentos de saúde (máquinas, material cirúrgico, materiais descartáveis etc.), enfim, sobre todos os procedimentos, produtos e substâncias relacionados direta ou indiretamente com os tratamentos de saúde. Também compete ao SUS desenvolver as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, ou seja, estabelecendo mecanismos de identificação e controle dos riscos à saúde.
Com relação à vigilância epidemiológica, cabe à Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde estabelecer sistemas de informação e análise que permitam o monitoramento do quadro sanitário do país e que subsidiem a formulação, implementação e avaliação das ações de prevenção e controle de doenças e agravos, a definição de prioridades e a organização dos serviços e das ações de saúde. Nesse sentido, a secretaria estabelece a lista de doenças de notificação compulsória, as políticas de prevenção de doenças transmissíveis e não transmissíveis, bem como diversos programas nacionais de controle e prevenção de doenças, com destaque para o Programa Nacional de Imunizações.
Também a segurança sanitária do trabalhador é expressamente protegida pela Constituição, que ordena ao SUS executar ações voltadas à proteção da saúde do trabalhador (C.F., art. 200, II). Tais ações são formadas pelo conjunto de atividades que se destina, através das ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, à promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, assim como visa à recuperação e reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho.
Abrangem a assistência ao trabalhador vítima de acidentes de trabalho ou portador de doença profissional e do trabalho; a participação, no âmbito de competência do SUS, da normatização, fiscalização e controle das condições de produção, extração, armazenamento, transporte, distribuição e manuseio de substâncias, de produtos, de máquinas e de equipamentos que apresentam riscos à saúde do trabalhador; a avaliação do impacto que as tecnologias provocam à saúde do trabalhador; a informação ao trabalhador e à sua respectiva entidade sindical e às empresas sobre os riscos de acidentes de trabalho, doença profissional e do trabalho, bem como os resultados de fiscalizações, avaliações ambientais e exames de saúde, de admissão, periódicos e de demissão, respeitados os preceitos da ética profissional.
Nos últimos anos, o sistema nacional de vigilância em saúde vem sofrendo uma visível deterioração, que se verifica pelas baixas coberturas vacinais, pela quantidade de mortos pela pandemia da Covid-19 no Brasil, pelo ressurgimento de doenças antes quase erradicadas (sarampo, pólio), pelo desregrado uso de agrotóxicos nos nossos alimentos, pelo crescimento rápido da varíola dos macacos no país sem uma ação coordenada de contenção, entre outros vários riscos à saúde que devemos conhecer e evitar. É preciso, com urgência, resgatar nosso sistema de proteção à segurança sanitária no Brasil.