Carf

Sobre a (in)constitucionalidade do fim do voto de qualidade no Carf

O argumento da inconstitucionalidade formal da Lei 13.988/20 por suposto 'contrabando legislativo' é correto?

03/05/2020|09:17
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Foto: Ministério da Fazenda

A Lei no 13.988/2020, conversão da Medida Provisória no 899, que regula a transação tributária em âmbito federal, foi sancionada na íntegra pelo presidente da República.

Houve uma surpresa para os profissionais atuantes no Direito Tributário no fato de o art. 28 não ter sido vetado. O dispositivo em questão acaba com o voto de qualidade dos presidentes das turmas do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, prevendo que, daqui em diante, no caso de empate, haverá resolução a favor do contribuinte.

Há diversos argumentos de mérito favoráveis e contrários à modificação, brilhantemente expostos pelos participantes do webinar do JOTA a respeito do tema, realizado em 15 de abril de 2020; argumentos que vão desde razões propriamente jurídicas a motivos de política fiscal.

É, todavia, um argumento a respeito da constitucionalidade que nos chama a atenção: o dispositivo seria inconstitucional do ponto de vista formal por dois fundamentos: (i) trata-se de um “contrabando legislativo”, posto que a emenda que deu origem ao dispositivo não guarda pertinência temática com o conteúdo da Medida Provisória original; (ii) o texto da emenda aglutinativa que deu origem ao dispositivo não tem base textual nas emendas aglutinadas.

O objetivo do presente ensaio é demonstrar que nenhum desses dois argumentos é procedente. Comecemos pelo segundo ponto.

Uma emenda é uma proposição legislativa que visa alterar outra já apresentada. Em geral, no caso das medidas provisórias, as emendas são apresentadas no bojo da comissão especial mista, mas há algumas espécies que podem ser apresentadas em Plenário, como é o caso das emendas aglutinativas (art. 122 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados – RICD). A definição de emenda aglutinativa consta do art. 118, § 3º, do RICD: “é a que resulta da fusão de outras emendas, ou destas com o texto, por transação tendente à aproximação dos respectivos objetos”.

Dessa pequena explicação, logo se vê que a apresentação, trâmite e avaliação das emendas, inclusive as aglutinativas, são matérias regimentais das Casas Legislativas, não constitucionais.

É remansosa a jurisprudência do Supremo Tribunal no sentido de que não se pronuncia inconstitucionalidade formal de uma lei quando, para isso, se dependa de incursão nesse tipo de matéria interna corporis[1].

Nem poderia ser de outra forma, porque para que a lei seja inconstitucional, deve violar a Constituição. Se a causa de pedir articula violação ao Regimento Interno, caberia à própria Casa Legislativa – mas não ao Supremo – apreciar o alegado expediente antirregimental.

No que toca ao outro fundamento ventilado como caracterizador de inconstitucionalidade formal, o contrabando legislativo, ele se funda na afirmação de que como a Medida Provisória 899 tratava de transação tributária, não poderia, o processo de conversão, ter inserido o  fim do voto de qualidade, porque se trata de tema estranho ao que foi originalmente tratado no ato normativo.

Mas qual é o critério para se aferir a “pertinência temática” de uma emenda a uma Medida Provisória?

A Resolução no 1/2002, do Congresso Nacional, que regulamenta a tramitação das medidas provisórias, prevê que é “vedada a apresentação de emendas que versem matéria estranha àquela tratada na Medida Provisória, cabendo ao Presidente da Comissão Mista o seu indeferimento liminar” (art. 4º, § 4º).

Trata-se de um desenvolvimento consequente do quanto disposto na Lei Complementar no 95/1998, que recomenda que “a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão” (art. 7º, II). Não há, portanto, qualquer lacuna normativa a ser colmatada a respeito do tema.

Apesar disso, a prática legislativa durante muito tempo foi a de deixar ao Plenário de cada Casa decidir sobre a matéria, o que autorizava que diversas emendas estranhas (jocosamente tratadas por “jabutis”) fossem inseridas livremente em Medidas Provisórias.

Contudo, em 3 de junho de 2009, o então Presidente da Câmara dos Deputados Michel Temer resolveu a Questão de Ordem no 480 no sentido de que a legislação impunha a rejeição liminar de emendas estranhas ao conteúdo da medida provisória e, se isso não fosse feito, nos termos regimentais, pelo Presidente da Comissão Mista, deveria sê-lo pelo Presidente da Câmara. Não definiu com muita precisão, contudo, o que seria o “tema” (ou “núcleo material”, na dicção da decisão acima) da medida provisória.

Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o problema da vagueza da definição do tema de uma medida provisória também existe. Contudo, dos precedentes sobre o assunto, é possível tirar conclusões interessantes.

No leading case sobre o tema[2], o voto condutor do Min. Edson Fachin firmou o entendimento de que viola a Constituição da República, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo a prática da inserção de matéria estranha ao núcleo temático da MP.

Na hipótese, julgava-se a inserção, por emenda à Medida Provisória no 472/2009, que tratava de incentivos fiscais, de texto que extinguia a profissão de técnico em contabilidade.

Na mesma Medida Provisória no 472/2009, foram também inseridos os art. 113 a 126, que versavam sobre a alteração de limites de unidades de conservação ambiental. O STF, na ADI 5.012[3], entendeu que essas emendas careciam de pertinência temática.

Mas há precedente em que a impertinência temática não ficou tão inquestionável. Em caso mais recente[4], o STF entendeu haver pertinência temática na inserção de emendas à Medida Provisória 776/2017.

Enquanto a Medida Provisória tratava da adequação do local de nascimento nos cartórios de registro público ao domicílio dos pais (naturalidade facultativa), as emendas questionadas autorizavam os cartórios de registro a prestar serviços remunerados mediante a celebração de convênios com órgãos públicos.

Nesse caso, o Supremo Tribunal admitiu expressamente que o Congresso Nacional amplie o escopo da medida provisória pela inserção de matérias conexas à original. Com efeito, o entendimento desse último precedente se coaduna com a redação do já citado art. 7º, II, da Lei Complementar nº 95/1998, que fundamentou a resolução da Questão de Ordem no 480/2009 pelo Presidente Michel Temer.

Em conclusão, portanto, o entendimento do Parlamento e da Suprema Corte é convergente no sentido de que é possível emenda a medida provisória que trate não apenas do tema específico dela, mas também de temas conexos, somente sendo inconstitucional a inserção de emenda com patente impertinência temática.

E o que ocorreu na emenda que ensejou a extensão do voto de qualidade? Inseriu-se um dispositivo a respeito do processo de julgamento do Carf em medida provisória que tratava da transação tributária.

A Medida Provisória, até por necessidade operacional, tratou de diversos temas do processo administrativo tributário, inclusive uma seção inteira sobre a transação no contencioso tributário. Indiscutível, portanto, que se não há pertinência específica, no mínimo há conexão temática.

O caso, portanto, é inequivocamente mais semelhante ao precedente dos cartórios do que àqueles dos contabilistas ou das unidades de conservação.

Além disso, a questão da pertinência temática foi objeto de apreciação pelo Parlamento. O tema foi inserido por emenda aglutinativa aprovada pelo Plenário da Câmara dos Deputados, que o considerou pertinente.

No Senado Federal, o Presidente da Câmara Alta considerou impertinente a emenda do voto de qualidade (então art. 29 do Projeto de Lei de Conversão), mas seu entendimento foi revertido pelo Plenário por 50 votos a 29.

Para se ilustrar a análise, o art. 28 do Projeto de Lei de Conversão, que regulamentava o bônus de eficiência dos auditores fiscais da Receita Federal, foi considerado matéria estranha pelo Presidente do Senado, não havendo reversão da decisão pelo Plenário.

Com efeito, além da confluência dos entendimentos do Parlamento e da Suprema Corte, no caso concreto, houve minucioso exame pelas Casas do Congresso Nacional – que têm indiscutível capacidade institucional para essa decisão – a respeito da pertinência temática da emenda que extinguiu o voto de qualidade no Carf.

Em conclusão, vê-se não haver fundamento na tese da inconstitucionalidade formal do art. 28 da Lei no 13.988/2020. É preciso centrar o debate não na constitucionalidade do dispositivo, mas sim na operacionalidade do contencioso e na política fiscal a ele inerente.

É possível discordar do mérito da decisão do Congresso, mas a reversão dessa decisão só é possível pela mesma forma pela qual foi tomada: pela via do Poder Legislativo, canal constitucionalmente previsto para a modificação do direito vigente.

 


[1] Nesse sentido: ARE 1028435 AgR, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 30/06/2017; ADI 4357, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 14/03/2013; ADC 3, Relator(a):  Min. NELSON JOBIM, Tribunal Pleno, julgado em 02/12/1999.

[2] ADI 5127, Relator(a):  Min. ROSA WEBER, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 15/10/2015.

[3] ADI 5012, Relator(a):  Min. ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 16/03/2017.

[4] ADI 5855, Relator(a):  Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 10/04/2019.logo-jota