O mercado financeiro e de capitais aguarda com apreensão o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a respeito de decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) que determinou a redução dos juros, da correção monetária e dos demais encargos cobrados com base em Cédula de Crédito Bancário (CCB), em razão da cessão do crédito a entidade não financeira[1].
Entende o TJSP que a cessão da CCB para entidade não integrante do Sistema Financeiro Nacional (SFN) – no caso um fundo de investimento em direitos creditórios – impede a cobrança dos juros, da correção e dos demais encargos previstos na cédula por parte do cessionário, porque tais encargos seriam próprios de instituições financeiras. Os acessórios do crédito não seriam passíveis de cessão na medida em que apenas entidades integrantes do SFN poderiam ser titulares de tais direitos na extensão originalmente contratada.
Não há dúvida de que fundos de investimento não fazem parte do SFN e, portanto, empréstimos hipoteticamente originados por eles se sujeitariam às limitações impostas pela chamada Lei da Usura (Decreto nº 22.626, de 7 abril de 1933), dentre as quais a taxa de juros máxima.
Assim, caso a CCB pudesse ser emitida em favor de fundo de investimento, os juros e demais encargos deveriam observar os limites da Lei da Usura. Porém, isso não é possível, tanto porque fundos de investimento são em geral proibidos de conceder empréstimos, quanto porque a CCB só pode ser emitida em favor de instituição financeira ou entidade a esta equiparada[2], algo que fundo de investimento não é.
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Diferente é a situação de empréstimo concedido por instituição financeira e posteriormente cedido a entidade não financeira.
No passado a cessão de créditos “para fora do Sistema Financeiro” era permitida apenas em circunstâncias excepcionais e mediante autorização do Banco Central do Brasil[3] ou para companhias securitizadoras. A restrição foi abolida em 2001. Desde então, instituições financeiras podem ceder livremente seus créditos de empréstimos, financiamentos e arrendamento mercantil a pessoas não integrantes do SFN[4], desde que observadas certas regras cujo objetivo é evitar o retorno do risco ao Sistema. Além disso, a regulamentação dos fundos de investimento em direitos creditórios prevê que créditos originários de operações realizadas no segmento financeiro são passíveis de aquisição por referidos fundos.
No caso de transferência da CCB por endosso, a Lei nº 10.931/04 contém dispositivo expresso no sentido de que o endossatário, mesmo não sendo instituição financeira ou entidade a ela equiparada, poderá exercer todos os direitos conferidos pela CCB, inclusive cobrar os juros e demais encargos na forma pactuada. O TJSP parece dar relevo a essa diferença, pois ao julgar embargos declaratórios interpostos em face do acórdão, esclareceu que as regras específicas de endosso não se aplicam porque no caso concreto a CCB havia sido objeto de cessão civil.
Nada impede, porém, a transferência dos créditos decorrentes da CCB na forma de cessão civil. A cessão e o endosso têm características diferentes, mas as diferenças não justificam conclusão no sentido de que apenas no endosso os acessórios do crédito se transferem integralmente. Pelo contrário: o Código Civil prevê expressamente que a cessão de um crédito abrange todos os seus acessórios (tais como juros e correção monetária), a não ser que o instrumento de cessão disponha de forma diferente[5].
Do ponto de vista do devedor é irrelevante o fato de o credor ceder seu crédito. Irrelevante também a condição de integrante ou não do SFN ostentada pelo cessionário. Admitir redução da dívida em razão da cessão seria tão absurdo quanto admitir que instituição financeira aumente unilateralmente a taxa de juros ao adquirir crédito originalmente detido por credor não integrante do SFN. Cessões desse último tipo são aliás comuns, como na aquisição de recebíveis comerciais ou desconto de duplicatas, e não importam agravamento da dívida. A remuneração da instituição financeira nessas operações provém da taxa de desconto.
Parece-nos que a decisão do TJSP parte de interpretação errada da Súmula nº 596 do Supremo Tribunal Federal (STF). Tal Súmula veio sedimentar o âmbito de aplicação da Lei da Usura. Seu texto é o seguinte: “as disposições do Decreto 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integram o sistema financeiro nacional”.
Note-se que a Súmula se refere à cobrança de juros e outros encargos nas operações realizadas por instituições integrantes do SFN. Relevante para fins de não aplicação da Lei da Usura é a origem da operação (realizada por instituição integrante do SFN), não a identidade do ente cobrador. A cobrança de juros e encargos superiores aos da Lei da Usura por entidade não integrante do SFN não é contrária ao entendimento sumulado, contanto que decorrente de operação realizada por instituição integrante do SFN.
Análise dos acórdãos que deram origem à Súmula nº 596 revela que o STF considera relevante, para afastar a aplicação da Lei da Usura, o fato de o contrato ter sido firmado sob a égide da Lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964, que dispõe sobre o SFN. Tal escolha não é arbitrária. A Lei e sua regulamentação buscam assegurar a participação de uma instituição financeira, com seu conhecimento de mercado e sujeição a normas reguladoras, na fixação do valor dos juros. Feito isso, não mais importa quem os cobrará.
Para que assim não fosse, a súmula deveria afirmar que “as disposições do Decreto 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados por instituições públicas ou privadas que integram o sistema financeiro nacional”. Não afirma.
Outro ponto que chama atenção é a determinação constante do acórdão de que não são cedíveis os acessórios do crédito no tocante a encargos exclusivos dos integrantes do SFN. Isso significa que a instituição financeira cedente retém o direito de cobrar tais encargos, ou mais precisamente, o direito de cobrar a diferença entre os encargos pactuados na CCB e aqueles que no entender do TJSP podem ser cedidos e cobrados pelo cessionário.
O direito à cobrança de tal diferença por parte da instituição financeira é evidente no caso dos juros acumulados até o momento da cessão. O direito a esses juros é líquido e certo, ainda que exigível apenas no vencimento. E se o direito não é cedível, não por isso se perde: permanece com a instituição financeira. Mas o mesmo vale em relação aos juros correspondentes ao período posterior à cessão. Pode parecer estranho ao leigo que o direito aos juros pertença a pessoa diferente do titular do crédito, mas o Direito admite tal divisão. Juros são frutos produzidos pelo direito de crédito, e como tal podem ser objeto de negócio jurídico independente[6]. Da mesma forma como a safra futura pode ser objeto de compra e venda independentemente do imóvel que a produz.
Em outras palavras, ainda que prevaleça o entendimento do TJSP, a cessão de créditos a pessoa não integrante do STF não teria por efeito a redução da dívida mas sim sua divisão, cabendo ao cessionário o direito de cobrar principal e encargos até o limite da Lei da Usura, e ao cedente o de cobrar a diferença entre estes e os pactuados na Cédula. Solução diferente implicaria enriquecimento sem causa do devedor e incentivo a comportamento oportunista por parte deste.
Claro que nesse cenário o preço de cessão deverá ser calculado em função do valor da parcela dos créditos efetivamente cedida, tarefa em si difícil diante das hesitações jurisprudenciais quanto à taxa máxima admitida pela Lei da Usura (12% ao ano, taxa Selic ou o dobro desta). Além disso, a instituição financeira não atingirá plenamente o objetivo de eliminar determinados créditos de seu balanço.
A prevalecer o entendimento do TJSP, novas operações em que se pretenda a transferência integral dos direitos creditórios deveriam ser formalizadas por meio de endosso, partindo do pressuposto de que o Poder Judiciário prestigiará o dispositivo da Lei 10.931/04 que prevê que o endossatário pode cobrar a totalidade dos encargos pactuados na CCB. Mas a solução teria inconvenientes tanto práticos quanto jurídicos. Não ampararia o estoque de operações já realizadas sob a veste de cessão civil, tampouco serviria à securitização de créditos representados por títulos não endossáveis.
É, portanto, com razão que as instituições financeiras e a indústria de securitização aguardam o posicionamento do Poder Judiciário. Espera-se que prevaleça interpretação que respeite o âmbito de aplicação da Lei da Usura e a legalidade da cessão dos créditos bancários nos moldes atualmente adotados.
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[1] Apelação nº 0007386-22.2012.8.26.0597, da 22ª Câmara de Direito Privado do TJSP, relator Roberto Mac Cracken.
[2] Art. 26 da Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004.
[3] Art. 7º da Resolução nº 2.561, de 5 de novembro de 1998, do CMN.
[4] Resolução nº 2.843, de 28 de junho de 2001, e Resolução nº 2.836, 30 de maio de 2001, ambas do CMN.
[5] “Art. 287. Salvo disposição em contrário, na cessão de um crédito abrangem-se todos os seus acessórios.”
[6] Código Civil: “Art. 95. Apesar de ainda não separados do bem principal, os frutos e produtos podem ser objeto de negócio jurídico.”