BACEN

O passado não conhece o seu lugar

Uma nova abordagem sobre a discricionariedade na aplicação dos regimes especiais pelo BACEN

16/05/2020|09:18
banco central
Banco Central do Brasil (Brasília-DF). Crédito: Enilton Kirchhof/Flickr

Além de não garantir o exercício do contraditório e da ampla defesa no processo administrativo para a decretação dos regimes especiais[1], o Banco Central do Brasil (BACEN) adota um posicionamento no sentido da existência de uma discricionariedade para decidir sobre a modalidade e o momento para a decretação destes. Os pilares para a existência desta cognição se refletem na Lei 6.024/74, que dispõe sobre a aplicação dos regimes, bem como a corroboração desta compreensão pelo Poder Judiciário.

O grau de discricionariedade atribuído ao Banco Central do Brasil foi substancializado na Lei 6.024/74, em seu artigo 15, parágrafo primeiro, que possibilita que o BACEN decida sobre a gravidade dos fatos determinantes da liquidação extrajudicial, considerando as repercussões destes sobre os interesses dos mercados financeiros e de capitais. Consideração sobre a discricionariedade que não pode ser olvidada é a que a Lei em análise é repleta de conceitos jurídicos indeterminados, como por exemplo, no caso da alínea “b” do artigo 15[2], quando se utiliza da expressão graves violações para a decretação do regime de liquidação extrajudicial.

A discricionariedade aqui tratada merece atenção, quando analisada sobre o prisma da observância de preceitos fundamentais. Assim, um primeiro ponto que chama atenção é a imperatividade e a falta de controle e processualizção da decretação de determinado regime, visto que o controle do ato administrativo pelo administrado só é possível quando da decretação da intervenção ou liquidação. Some-se a isso, o posicionamento firmado pelo STJ de que em casos de regimes especiais, as garantias da ampla defesa devem ser diferidas, no intuito de ser conferir a efetividade da medida[3], criando, o instituto no mínimo excêntrico do “contraditório postergado”.

Diante desse cenário, algumas questões devem ser levantadas: (i) dentro da ordem constitucional vigente ainda é admitido que um ato administrativo capaz de liquidar uma instituição não usufrua de um controle prévio, fundido mediante um processo administrativo, onde os envolvidos possam exercer o seu direito a ampla defesa e contraditório? e; (ii) qual o controle exercido? Em outras palavras, não se permite a participação no processo de decretação, e cabe ainda ao Banco Central do Brasil analisar de forma discricionária o modelo que será adotado?

Ora, um dos aspectos mais relevantes da evolução do pensamento jurídico contemporâneo é a recuperação do valor da verdade como pressuposto da ideia da justiça. Com o avanço da ordem constitucional - ainda que tardia, é preciso que prevaleça uma busca constante de uma dimensão garantística da busca da verdade e transparência para a devida legitimação democrática da atividade estatal mediante a observância dos princípios constitucionais da Administração Pública, a exigir a causalidade adequada, a impessoalidade e a transparência no exercício da função pública.

Destarte, é imperioso a observância deste novo paradigma nas relações Estado-cidadão, não mais condicionado pela sistemática contraposição entre o interesse público e o interesse individual e pela supremacia do primeiro, mas forte no respeito ao princípio político da participação democrática e na exigência de fundamentação consistente para todas as intervenções na esfera privada. É preciso, portanto que a Administração Pública esteja obrigada a produzir as provas do que alega em processos administrativos, não podendo repousar convenientemente, nos ombros da presunção da presunção de legalidade, legitimidade e veracidade do ato administrativo.

A processualização da Administração Pública é fenômeno irreversível. No caso aqui tratado, é necessária a motivação explícita pelo Banco Central do Brasil dos fatos que o levaram à adoção de determinado regime para que haja um controle do ato administrativo pelos administradores e gestores, de modo que permita eventuais questionamentos perante a esfera administrativa ou judicial.

A literatura estrangeira já trabalha com um cenário de “procedimentalização” do ato regulamentar, fazendo correlações com a produção de efeitos mais eficientes, além de reduzir a discricionariedade do administrador, quando este se vê diante da necessidade de expor os motivos da adoção de uma determinada norma. A título de exemplo, merece destaque o artigo 24 alínea “c” da lei espanhola “ley del gobierno” 50/1997, que dispõe sobre o procedimento de elaboração dos regulamentos, devendo o administrador, na exposição de motivos da norma adotada, fundamentar as razões que levaram à adoção de determinada regra, reduzindo, portanto, de certa forma, a discricionariedade do administrador.[4]

Como sustenta TOMÁS-RAMÓN FERNÁNDEZ, a motivação de decisões administrativas é um primeiro critério de deslinde entre a discricionariedade e arbitrariedade, de maneira que o que não é motivado é só por esse fato arbitrário.[5] Logo, como sustenta CELSO RIBEIRO BASTOS, os motivos servem de suporte para a prática do ato administrativo, sejam eles exigidos por lei, sejam eles alegados facultativamente pelo agente público, de modo que a desconformidade entre os motivos e a realidade acarreta na invalidade do ato.[6]

No caso tratado, não basta somente a motivação do ato da decretação extrajudicial. É necessário que o administrador fundamente e justifique o motivo da adoção do regime e não de outro regime especial. A diferença pode parecer sútil, no entanto, é de extrema importância na produção de efeitos para os interessados, pois permite a estes um maior controle do ato, já que terão acesso à fundamentação que levou à adoção de um regime e não outro.

É certo, portanto, afirmar que a sociedade e o agente regulado (neste caso, a instituição financeira) possuem o direito de conhecer as razões técnicas que nortearam o Banco Central a decretar os regimes especiais, sobretudo por se tratar de um ato discricionário, onde há uma liberdade na aplicação da modalidade do regime. Assim, o Banco Central, ao decretar qualquer regime especial ― principalmente o da liquidação extrajudicial, deverá indicar os motivos, de fato e de direito, que o levaram a adotar a decisão, permitindo um controle da sociedade,  dos envolvidos, e, sendo o caso, do Poder Judiciário.

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[1] REsp. nº 930970/SP, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJe 03.11.08.

[2] Art . 15. Decretar-se-á a liquidação extrajudicial da instituição financeira: (...)

  1. b) quando a administração violar gravemente as normas legais e estatutárias que disciplinam a atividade da instituição bem como as determinações do Conselho Monetário Nacional ou do Banco Central do Brasil, no uso de suas atribuições legais;

[3] AgRg no REsp. nº 615436/DF, Rel. Min. Francisco Falcão, 1ª Turma, DJ 06.12.04. REsp. nº 930970/SP, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJe 03.11.08.

[4]Artículo 24 Del procedimiento de elaboración de los reglamentos:

(...)

c) Elaborado el texto de una disposición que afecte a los derechos e intereses legítimos de los ciudadanos, se les dará audiencia, durante un plazo razonable y no inferior a quince días hábiles, directamente o a través de las organizaciones y asociaciones reconocidas por la ley que los agrupen o los representen y cuyos fines guarden relación directa con el objeto de la disposición. La decisión sobre el procedimiento escogido para dar audiencia a los ciudadanos afectados será debidamente motivada en el expediente por el órgano que acuerde la apertura del trámite de audiencia. Asimismo, y cuando la naturaleza de la disposición lo aconseje, será sometida a información pública durante el plazo indicado.

Este trámite podrá ser abreviado hasta el mínimo de siete días hábiles cuando razones debidamente motivadas así lo justifiquen. Sólo podrá omitirse dicho trámite cuando graves razones de interés público, que asimismo deberán explicitarse, lo exijan.

[5] FERNANDEZ, Tomás-Ramon. Arbitrariedad y discrecionalidad. Madri: Civitas, 1991, p. 107.

[6] BASTOS, Celso Ribeira Bastos. Controle dos motivos do ato administrativo. Temas de direito público: estudos e pareceres, Vol. 1, Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 322.logo-jota