Andre Bogossian
Advogado do Stocche Forbes
Prestes a comemorar dois anos de sua aprovação, já se tornou lugar comum afirmar que o Novo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei 14.026/2020, que alterou a Lei 11.445/2007) promoveu a abertura de um mercado que figurava, entre os setores de infraestrutura, como o de menor participação de capital privado e, não coincidentemente, um dos mais carentes de investimentos. Têm sido menos frequentes empreitadas interessadas em observar as inovações do Novo Marco Legal do Saneamento pelas lentes da teoria da regulação. Pretendo aqui revisitar alguns desses pontos e propor um novo tópico de estudo.
Em primeiro lugar, tratou o Novo Marco de aprimorar o desenho institucional das formas de governança regulatória. Destaco duas janelas de observação.
A primeira diz respeito ao papel da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e suas normas de referências para o setor. Talvez esse seja o tema mais comum entre os que já abordaram as inovações do Novo Marco: a identificação de estratégias que não operam sob a lógica de vedação e sanção, mas por meio da coordenação de incentivos[1]. Em especial a coordenação entre as entidades locais competentes para a regulação dos serviços (e que, portanto, cuidam de modo mais intenso da relação tripartite entre concedente — concessionário — usuário) e a entidade central, a ANA, em um verdadeiro papel de metarregulador[2] mediando interesses em uma relação quadripartite em que se insere também o regulador local.
Em segundo lugar, ocorreu a ampliação do leque de opções aos poderes públicos desejosos de regionalizar a prestação de seus serviços de saneamento. Em concreto, o Novo Marco Legal do Saneamento Básico (e aqui não só a Lei 14.026/2020 ganha importância, mas também sua regulamentação) deu forma à unidade regional de saneamento básico, cuja criação deve ser feita pelos estados federados por meio de lei, com posterior adesão dos municípios, e ao bloco de referência, esse último instrumentalizado pela União por meio dos tradicionais consórcios públicos e convênios de cooperação. Em último caso, os Decretos 10.588/2020 e 11.030/2022 permitem que sejam reconhecidas como regionalizadas as estruturas de gestão associada existentes, ainda que não tenham decorrido propriamente da formação um bloco de referência ou unidade regional.
A ideia é de que caso algum Estado não adote as medidas necessárias para a regionalização (mesmo com os incentivos gerados), a própria União deveria ser capaz de tomar as medidas necessárias para formação do bloco de referência e, caso a União também quede inerte, os municípios não deixem de poder ter os benefícios da regionalização e reconhecida a regularidade de sua operação. Ao diversificar e ampliar as possibilidades de desenhos institucionais aptos a formalizar a regionalização, o Novo Marco promove uma desejável estratégia fail safe, prevendo estruturas paralelas destinadas ao mesmo fim, em que o gatilho para o acionamento de uma estrutura decorra da falha no acionamento de outra, ainda que não propriamente redundantes ou duplicadas[3].
O sucesso dessa reestruturação do desenho institucional passa pelo reforço de uma estratégia regulatória que já era empregada no setor ainda que timidamente. Ao adicionar requisitos tanto de regularidade da operação e adesão à prestação regionalizada quanto de observância das normas de referência da ANA para alocação dos recursos federais (artigo 50 da Lei 11.445/2007), o Novo Marco intensifica o manejo do spending power[4], a geração de incentivos pelo acesso (e sua limitação) aos recursos que, ainda hoje, correspondem a elemento central da financiabilidade dos projetos de saneamento.
Por fim, chamo atenção para uma figura velha conhecida do setor de saneamento, mas que ganhou novos ares rejuvenescedores nos contratos celebrados após a edição do Novo Marco: o regulamento de serviços. Antes, o regulamento decorria de imposição normativa das entidades regulatórias ou dos próprios poderes concedentes locais. Agora, ao menos no modelo de contrato que vem sendo utilizado pelo BNDES nas recentes e mais relevantes licitações de saneamento dos últimos anos (cito a delegação dos serviços nos estados de Alagoas, do Amapá e do Rio de Janeiro), a elaboração do código ou regulamento dos serviços é obrigação imputada contratualmente às próprias concessionárias de serviço público, devendo ainda ser discutidos com os reguladores e aprovados pelos respectivos poderes concedentes.
Trata-se, portanto, de exemplo de autorregulação regulada (enforced self-regulation)[5] ou regulação híbrida[6]. Há amplo espaço para estudo dessa categoria conceitual que, entre nós, é mais associada aos códigos de compliance. Aqui, entretanto, estamos diante de um regulamento dos serviços que pormenoriza questões eminentemente técnico-operacionais e financeiras e lida diretamente da relação da própria concessionária com seu usuário. Ele cuida, portanto, de assuntos inseridos no que é usualmente considerado o espaço mais ínsito da regulação, mas que por meio das técnicas regulatórias empregadas nesses contratos passou a representar um espaço compartilhado público e privado.
Enfim, pretendeu-se com esse breve artigo observar alguns avanços promovidos pelo (e na esteira do) Novo Marco Legal e identificá-los com as ferramentas da teoria da regulação. Mais que isso, buscou-se com essa breve tentativa de conectar teoria da regulação e prática no setor de saneamento fazer justiça e tentar dar o merecido destaque ao fato de que as alterações promovidas pelo Novo Marco Legal situaram os temas afetos a saneamento básico na fronteira da produção de conhecimento no mundo do Direito da infraestrutura no Brasil.
[1] Confira-se: FREITAS, Rafael Véras. https://www.editoraforum.com.br/noticias/as-normas-de-referencia-no-novo-marco-regulatorio-do-saneamento/
OLIVEIRA, Gustavo Justino; CARVALHO, André Castro. https://www.conjur.com.br/2022-fev-27/publico-pragmatico-notas-soft-law-regulacao-sunshine-brasil
[2] Na acepção de PARKER, Christine. The Open Corporation: Effective Self‐Regulation and Democracy, Cambridge: Cambridge University Press ,2002, p.15; PARKER, Christine, BRAITHWAITE, John. “Conclusion”’ in C. Parker, C. Scott, N. Lacey, & J. Braithwaite (eds.), Regulating Law, New York: Oxford University Press, 2004, p. 283; COGLIANESE, Cary. MENDELSON, Evan. Meta-Regulation and Self- Regulation In: BALDWIN (et tal). The Oxford Handbook of Regulation. OXFORD: OUP, 2010, P.147
[3] MARISAM, Jason. Duplicative Delegations. Administrative Law Review, n. 63, 2011, pp.181-244.
[4] BALDWIN, Robert; CAVE, Martin; LODGE, Martin. Understanding Regulation. Theory, Strategy, and Practice. 2a ed. Oxford: Oxford University Press, 2012, p.116.
[5] AYRES, Ian, BRAITHWAITE, Responsive Regulation. Oxford: OUP, 1992, capítulo 4; BALDWIN, Robert; CAVE, Martin; LODGE, Martin. Understanding Regulation. Theory, Strategy, and Practice. 2a ed. Oxford: Oxford University Press, 2012, p.146.
[6] VRIELINK, Miriam; MONTFORT, Cor van, BOKHORST, Meike. Codes as hybrid regulation. In Levi-Faur, David, Handbook on the Politics of Regulation. Cheltenham: Elgar, 2011, p.492