
O termo meritocracia teve origem no livro “The rise of the meritocracy” (em tradução livre: “A ascensão da meritocracia”). Publicada em 1958 pelo sociólogo e político Michael Young, a obra descreve uma sociedade do futuro, oprimida e distópica que se baseia apenas em resultados lógicos de quociente de inteligência (QI). Como apenas pessoas com acesso a boas escolas conseguem se sair bem nestes testes, a “meritocracia” acabava por perpetuar o desequilíbrio social. Eis a crítica de Young em relação ao sistema educacional britânico de sua época que privilegiava uma elite social[1].
De nossa parte, a meritocracia pode ser válida em inúmeras situações, a exemplo do pai que condiciona a concessão de determinado prêmio ao desempenho escolar do filho, por exemplo. São casos em que o esforço é medido pelo histórico de resultado do próprio avaliado. Ao contrário, quando se trata de mensurar a disputa de um grupo ou equipe, a meritocracia há que ser vista com cautela, aplicando-a não como critério absoluto, mas de modo suplementar e em um contexto em que os participantes estejam em pé de igualdade.
Dito de outro jeito: mais do que simplesmente conferir a premiação ao campeão, importa perceber o esforço de cada um na medida de suas limitações. Mais do que a meritocracia deve prevalecer a equidade, evitando, por exemplo, o mesmo critério de promoção funcional entre colegas em condições e circunstâncias diferentes. O gerente trainee jamais poderá ser avaliado nos mesmos moldes de um gerente sênior.
Em uma Olimpíada você nunca verá atletas olímpicos e paralímpicos disputando a mesma prova atlética. Por que será? Porque a deficiência física os impede de atingir o mesmo resultado. Da mesma forma, em tempos de quarentena provocada por coronavírus, não se pode esperar iguais resultados de vendas, ou de fechamento de negócios, se comparadas a períodos de normalidade.
Pesquisa realizada em 2016, pelo Massachussets Institute of Technology (MIT), revelou que as organizações que usam a meritocracia apresentam maior chance de oferecer recompensas desiguais para indivíduos com similar performance, mas de gênero, etnia ou origem social diferentes. O autor do estudo, professor Emilio Castilla, analisou o desempenho de 9 mil funcionários de uma grande empresa da área de serviços.
A conclusão foi a de que as mulheres, minorias e estrangeiros tinham que trabalhar mais e obter resultado superior para conseguirem aumentos similares aos dos homens brancos nas mesmas condições. Em outra pesquisa complementar, Castilla concluiu que gestores que usam a meritocracia pensam estarem decidindo de forma imparcial quando, na verdade, não estão:
“Em um ambiente que reforça recompensas baseadas em merecimento, gestores tendem a se questionar menos sobre seus preconceitos, noções de estereótipos e visões de mundo” [2].
A essência da justiça não está no princípio da igualdade meramente formal (“todos são iguais perante a lei”), mas na equidade que identifica e protege grupos e condições vulneráveis. Conceituada como a justiça do caso concreto, ela é o fundamento dos direitos tutelares nascidos sob o signo desenvolvimentista do Estado Social, a exemplo do Direito do Trabalho e do Consumidor, além dos Estatutos do Deficiente, da Criança e do Adolescente. A proteção jurídica ao mais pobre (hipossuficiente econômico) ou àquele que se encontra em condição de vulnerabilidade contratual (contratos de adesão) constitui a forma mais eficiente de equilibrar a relação entre desiguais.
Nesta medida, a força da lei, dos programas sociais e das ações afirmativas surge para reequilibrar e estabelecer uma justiça comutativa. Afastar-se desta noção e tratar todos de forma igual (como quer a ideologia de mercado) é privilegiar uma elite privilegiada, justificando a injustiça e, quiçá, a opressão. Logo, todo cuidado é pouco com a empolgação pós-moderna deste simplista método da meritocracia. É preciso aplicá-lo com moderação seja para se adequar ao caso concreto, ou coibir a vitimização despropositada daqueles que tentam tirar vantagens espúrias desta tutela.
Um pequeno teste ajuda-nos a identificar em qual modelo ideológico nos enquadramos. Trata-se de responder à seguinte pergunta: A existência de uma sociedade economicamente desigual deve ser vista como um fato natural ou, ao contrário, compensada com programas de governo? Caso a sua resposta considere a acentuada existência de ricos e pobres mera consequência do mérito das pessoas, por certo seu viés ideológico se aproxima do neoliberalismo. Oportuno lembrar que os fundadores deste pensamento (Friedrich Hayek e Milton Friedman) reputam a desigualdade social como uma prática saudável e necessária à competitividade.
Ao contrário, caso sua resposta considere que nem sempre a ascensão social se dá por esforço pessoal, vez que as oportunidades dos ricos são diferentes das dos pobres, cabendo ao Estado compensar pontualmente estes pontos de desequilíbrio (a exemplo do programa: “Bolsa Família”) o seu viés ideológico será mais social. Oportuno lembrar que um dos inspiradores deste pensamento (Welfare State) foi John Maynard Keynes, defensor da intervenção do Estado capitalista para assegurar renda, educação, assistência médica, salário-mínimo, seguro-desemprego e leis de proteção ao trabalho.
Costuma-se chamar de direita o segmento neoliberal do livre mercado total, e de esquerda (ou centro-esquerda) o modelo desenvolvimentista social[3]. O socialismo se situa em outro patamar, extrema esquerda, e até hoje não conseguiu demonstrar êxito, uma vez que nele prevalece a noção do bolo finito e divisível, enquanto no capitalismo (ao menos em sua versão consciente) o bolo é fermentado, progressivo e aproveitado a todos. Há entre as duas pontas (da esquerda e da direita) várias nuances ideológicas voltadas para o papel do Estado na Economia.
Assim, intervenção mínima com pouca preocupação social e ampla liberdade ao mercado: neoliberalismo. regulação do mercado e ações afirmativas de compensação e/ou emancipação das classes mais vulneráveis por meio de programas públicos de saúde, educação, sustentabilidade e previdência social: Estado do Bem-Estar Social (Welfare State) ou Keynesianismo[4]. Aliás, este modelo social-democrata, forte nos países nórdicos, é o que melhor resultado apresentou até o momento.
A maioria dos países do cenário mundial segue a cartilha de um capitalismo conveniente às classes de poder, sobretudo após o fenômeno da mundialização do capital (depois da crise do petróleo em 1973). Um modelo exagerado e iníquo. Não por acaso, neste jogo econômico, algumas atividades estão supervalorizadas. Coincidência?
Por óbvio que não. Enquanto boa parte do trabalho braçal e educacional sequer é valorizada, de outro existem áreas altamente lucrativas, como empresas de tecnologia, corporações que exploram recursos naturais, indústrias de produção em série, agentes financeiros, empresas de telecomunicações e grandes corporações de varejo com braço no e-commerce. Outro ponto injusto está na discrepância de ganhos entre os cargos de deliberação e operação. O capitalismo de mercado hipervaloriza o grande empreendedor em detrimento de quase todas as demais classes, conforme se constata dos índices anuais de concentração de renda.
Em maio de 2018, o The New York Times publicou a 12ª edição de sua pesquisa anual ‘Equilar 200’, divulgando o valor recebido pelos CEOs de empresas com faturamento superior a US$ 1 bilhão. O resultado revelou que foi de US$ 6,9 milhões o montante médio do ano fiscal de 2017. Além do alto valor, alguns fatos chamaram atenção.
Os CEOs receberam aumento médio de 14% em relação aos anos anteriores e, pela primeira vez, as empresas foram obrigadas a divulgar a proporção do salário destes em relação a de seus funcionários. Surpresa: os ganhos foram 275 (duzentas e setenta e cinco) vezes maiores do que os da média de seus subalternos[5]. E a cada ano aumenta este fosso de rendimento entre comandantes e comandados.
Em matéria publicada no site Bloomberg, estima-se que a remuneração do CEO cresceu mais de 900% nas últimas quatro décadas, em comparação com apenas 12% para o trabalhador típico, conforme aponta o Economic Policy Institute. Tal tendência foi alimentada por acionistas institucionais, que, desde a crise de 2008, pressionam as empresas a vincular remuneração com desempenho (geralmente, pelo preço das ações).
Vale dizer: “nenhuma quantia para um único indivíduo é muito grande, desde que o estoque continue subindo e o executivo “trabalhe duro o suficiente”[6]. Como se vê, o mundo corporativo caminha sobre o tópos da meritocracia. Será que este dogma não contribui para (tentar) justificar a aguda desproporção entre a riqueza de poucos e a pobreza de muitos?
Se até a alguns anos, os CEOs de Wall Street eram os “gatos gordos e gananciosos” que exemplificavam o que havia de errado no pagamento discrepante, hoje são os executivos de tecnologia que lideram a lista da classe mais poderosa, segundo o levantamento da Bloomberg. Em ordem decrescente, são eles: Tesla, Apple, Charter Communications, ViacomCBS, Chewy, Blackstone Group, Intel, Alphabet e Microsoft.
Ainda no tema dos privilégios, cabe lembrar que a nossa Constituição Federal anunciou a tributação sobre grandes fortunas, quando de sua promulgação de 1988, mas até hoje o legislador, que também dorme em berço esplêndido, não se deu ao trabalho de regulamentar este dispositivo[7]. O mesmo se diga em relação à pífia tributação sobre a herança. Ao contrário de países como o Japão, França, EUA e Alemanha que cobram, respectivamente, 55%, 45%, 40% e 30%, no Brasil o Imposto de Transmissão e Doação (ITCD) não ultrapassa a casa dos 8%.
Por que razão o trabalhador assalariado tem descontado em sua folha de pagamento altíssimos valores de Imposto de Renda (que podem chegar até 27,5% na fonte), enquanto o herdeiro presenteado pela morte do pai rico paga apenas 8% de ITCD?
Por que razão o Estado de Direito não faz justiça nestes casos, utilizando-se do mesmo argumento da meritocracia? Afinal, qual é o mérito justificador do herdeiro que já nasce rico?
As respostas podem estar na observação de Joseph Stiglitz, vencedor do Nobel de Economia em 2001: “os ricos não precisam do Estado de Direito, pois eles podem (e de fato fazem) moldar os processos econômicos e políticos em seu proveito”[8]. Como se vê, a conveniência impera sobre a coerência da lei. O mesmo argumento da meritocracia, antes valorizado, é agora ignorado pelos capitalistas detentores do poder, fato que reforça a conclusão de que o sistema privilegia os mais ricos em detrimento dos mais pobres.
Não estou com isso a defender o aumento da carga tributária. O brasileiro, como um todo (empresário e trabalhador), paga muito impostos, sobretudo para cobrir rombos da corrupção, impunidade e má gestão do Estado. Sobre o tema, trago os comentários de Eduardo Giannetti, em entrevista concedida ao jornal Valor Econômico: “a operação Lava-Jato escancarou a deformação patrimonialista do Estado brasileiro”, resultando o problema da combinação de “um patronato político que usa as suas prerrogativas para se perpetuar no poder” e de “empresários de peso, do setor privado, que buscam desesperadamente atalhos de enriquecimento junto a governantes dispostos a negociar”[9]. Em outra entrevista mais recente, Giannetti assim descreveu a atual conjuntura nacional:
“A população brasileira precisa saber que está transferindo anualmente para União, Estados e municípios 34% de tudo que ela produz. Só que não para aí. O Estado brasileiro gasta mais do que arrecada. Hoje, o deficit nominal é de 6% do PIB. Então, 40% de toda renda nacional transita pelo setor público. E metade dos domicílios brasileiros não tem sequer saneamento básico. Como é possível isso? O Bolsa Família representa apenas 0,5% do PIB. É a migalha que cai da mesa. E tem impacto gigantesco na vida de milhões de famílias. Então, existe alguma coisa profundamente errada nas finanças públicas brasileiras. E, por isso, precisamos entender, trabalhar e mudar”[10].
Ainda que possa soar um lugar comum (novamente um topos), a verdade é que o Brasil precisa combater os desvios das verbas públicas, elegendo governantes que saibam administrar com equidade e competência o erário proveniente de sua alta arrecadação tributária. Mais que isso: importa termos organismos democráticos de fiscalização e coerção para expurgar a gestão maliciosa ou fraudulenta. Não um modelo intervencionista que manipule preços, tampouco um governo neoliberal que adote o fundamentalismo de mercado e a sua já conhecida insensibilidade social justificada pelo falso argumento da meritocracia.
O episódio 45 do podcast Sem Precedentes trata de dois julgamentos que irão começar no Supremo Tribunal Federal (STF) e que interferem diretamente nas relações da Corte com o governo Bolsonaro e o Congresso Nacional. Ouça:
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[1] “O livro que criou o termo ‘meritocracia’ é uma distopia”. Por Camilo Rocha. Matéria publicada no Nexo Jornal, em 06 de novembro de 2017. Fonte: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/11/06/O-livro-que-criou-o-termo-%E2%80%98meritocracia%E2%80%99-%C3%A9-uma-distopia
[2] “Como a meritocracia no ambiente corporativo pode aumentar a desigualdade”. Por Ana Freitas. Matéria publicada no Nexo Jornal, em 15 de abril de 2016. Fonte: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/04/15/Como-a-meritocracia-no-ambiente-corporativo-pode-aumentar-a-desigualdade
[3] As expressões ideológicas “esquerda” e “direita” surgiram durante a Revolução Francesa, em 1789. Neste período, os extremistas jacobinos (baixa burguesia que defendia os direitos populares) sentavam à esquerda e os liberais girondinos (da alta burguesía) ficavam à direita do salão da Assembleia Nacional Constituinte.
[4] Ações afirmativas são políticas públicas ou privadas que visam proteger, compensar e/ou emancipar as minorias sociais. Elas se fundamentam na igualdade material que procura prestigiar a diversidade de classes, além de discriminar positivamente aquelas mais vulneráveis por força de uma política de justiça retributiva.
[5] “Os CEOs mais bem pagos em 2017. A remuneração média dos 200 presidentes de empresa mais bem pagos foi de US$ 17,5 milhões”. Matéria publicada na Revista Época Negócios, em 26 de maio de 2018. Fonte: https://epocanegocios.globo.com/Dinheiro/noticia/2018/05/o-ceos-mais-bem-pagos-em-2017.html. Em junho de 2018, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) determinou a divulgação dos valores com base na decisão do Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região, que derrubou liminar de 2010 que permitia a dezenas de empresas omitir os valores. A discrepância salarial segue na mesma toada da lista das empresa americanas. Dentre as trinta maiores empresas brasileiras, o salário médio dos CEOS atinge R$ 1 Milhão por mês. Sobre o tema, consultar: “Executivo ganha até R$ 40,9 milhões ao ano; veja lista dos maiores salários. Confira a lista com as remunerações dos diretores das grandes empresas brasileiras”. Matéria publicada em 26 de junho de 2018. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/06/saiba-quanto-ganham-os-presidentes-de-empresas-como-itau-vale-e-bradesco.shtml
[6] “Wall Street Gets the Flak, but Tech CEOs Get Paid All the Money” (Wall Street recebe o flak, mas os CEOs de tecnologia ganham todo o dinheiro). Por Anders Melin e Cedric Sam, 10 de julho de 2020. Fonte: https://www.bloomberg.com/graphics/2020-highest-paid-ceos/
[7] Conforme prevê o art. 153, VII da Constituição Federal de 1988 (em vigor): “Compete à União instituir impostos sobre: VII – grandes fortunas, nos termos de lei complementar.”
[8] STIGLITZ, Joseph E. O preço da desigualdade. Lisboa: Bertrand Editora, 2014, p. 208.
[9] “No Brasil, economia de mercado é `caricatura`, diz Eduardo Giannetti.” Por Sergio Lamucci. Matéria publicada em 06/07/2017 pelo Jornal Valor Econômico. Fonte: https://www.valor.com.br/brasil/5028488/no-brasil-economia-de-mercado-e-caricatura-diz-eduardo-giannetti.
[10] “Economista Eduardo Giannetti: ‘O Brasil caminha para uma situação-limite’”. Por Jaqueline Mendes. Entrevista para o Correio Braziliense, em 04/06/2018.