Tributação

A ilegalidade da vedação à compensação cruzada

Judiciário definirá legalidade da restrição imposta pelas Soluções de Consulta COSIT 336/2018 e 50/2021

crédito tributário
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Apesar do fim da discussão da “tese do século”, conduzida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2021, muitos contribuintes que possuem créditos tributários decorrentes do tema enfrentam dificuldades para usufruir plenamente desse direito, especialmente quando buscam compensá-los com débitos previdenciários, situação essa denominada “compensação cruzada”.

A “tese do século” transitou em julgado em 17 de setembro de 2021, com o acórdão dos Embargos de Declaração no RE 574.706, que excluiu o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) da base de cálculo do Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) (tema 69 de Repercussão Geral).

A dificuldade encontrada pelos contribuintes decorre do entendimento firmado pela Receita Federal nas Soluções de Consulta COSIT 336/2018 e 50/2021, de que apenas os créditos relativos a pagamentos indevidos efetuados após a utilização do e-Social pela empresa é que poderiam ser utilizados para a compensação cruzada. Para melhor compreender o significado dessa restrição, é necessário realizar breve retrospecto normativo sobre o tema.

A compensação tributária é regida pelo artigo 74 da Lei 9.430/96, que limitava as compensações apenas entre débitos e créditos administrados pela Receita. Não foram inicialmente abarcadas por esse dispositivo as contribuições previdenciárias e de terceiros, as quais historicamente eram administradas pelo INSS e outras entidades.

Porém, com a edição da Lei 11.457/07, criou-se a “Super Receita” e as contribuições previdenciárias e de terceiros passaram a ser administradas também pela Receita Federal. Apesar dessa alteração normativa, a limitação à compensação entre contribuições previdenciárias e demais tributos federais foi mantida pela legislação.

Em 2014, foi publicado o Decreto nº 8.373, que instituiu o Sistema de Escrituração Digital das Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas (e-Social). Ele unificou a transmissão de informações atinentes às relações de trabalho, sendo que a implantação do e-Social foi gradual, nos termos da Portaria nº 716/2019, da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho.

Sobreveio então a Lei 13.670/18, que alterou a Lei 11.457/07 para revogar a vedação de compensação de contribuições previdenciárias com os demais tributos federais [1]. Portanto, a partir da Lei 13.670/18, é expressamente permitida a compensação de créditos tributários com débitos previdenciários e de terceiros e vice-versa (compensação cruzada).

No entanto, essa nova hipótese de compensação se aplicou apenas para créditos e débitos futuros. De acordo com o artigo 26-A da Lei 11.457/07, inserido pela Lei 13.670/18, a compensação cruzada apenas seria permitida se créditos e débitos fossem posteriores à implantação do e-Social [2].

Nesse sentido, a Receita editou as Soluções de Consulta COSIT 336/2018 e 50/2021, nas quais sinaliza que apenas os créditos relativos a pagamentos efetuados após o e-Social é que poderiam ser utilizados para a compensação cruzada. Por esse raciocínio, as autoridades fiscais não aceitam a compensação cruzada de pagamentos anteriores ao e-Social – mesmo quando a resistência imposta pelo Fisco para a fruição dos créditos só tenha sido afastada após a implementação do e-Social, por decisão transitada em julgado, por exemplo.

É justamente nesse contexto que se inserem diversos contribuintes que tiveram reconhecido o seu direito à exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins pelo Judiciário. Há ações cujo trânsito em julgado reconhecendo o respectivo indébito se deu após a utilização do e-Social pelas empresas, ou seja, já na vigência da Lei 13.670/18. Porém, nesses casos, a Receita Federal entende que os créditos de PIS/Cofins correspondentes aos pagamentos efetuados antes da utilização do e-Social não podem ser usados para a compensação cruzada.

Considerando a relevância dos encargos previdenciários suportados pelas empresas, a possibilidade de utilização dos créditos de PIS/Cofins judicialmente reconhecidos em tais ações seria importantíssima para otimização do fluxo de caixa, especialmente em tempos em que se almeja a retomada econômica pós-crise sanitária.

Não bastasse a representatividade econômica dos valores envolvidos, uma análise sistemática da legislação permite concluir que é descabida a restrição invocada pela Fazenda quanto ao marco temporal eleito para aceitação das compensações cruzadas.

Isto porque, em nossa visão, o posicionamento adotado pela Receita Federal nas referidas soluções de consulta não considera a verdadeira tônica das normas atinentes à compensação. Os artigos 170 e 170-A do Código Tributário Nacional (CTN) são textuais ao estabelecer que a compensação de débito tributário só pode se dar com créditos líquidos e certos e após o trânsito em julgado da ação judicial. Em outras palavras, para créditos controversos, cujo reconhecimento exigiu o ajuizamento de ação judicial, é evidente que a certeza e liquidez somente ocorrem com o efetivo trânsito em julgado. Antes do reconhecimento definitivo do direito, não há que se falar em crédito em favor do contribuinte – quando muito, de uma expectativa de direito creditório. Esse é o entendimento que se extrai da própria jurisprudência firmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sede de recurso repetitivo, no Recurso Especial (REsp) nº 1.164.452/MG.

Inclusive, a própria Fazenda entende que o crédito detido pelo contribuinte apenas existiria a partir do seu reconhecimento e liquidação. É justamente essa a interpretação fiscal externada pela Receita no Ato Declaratório Interpretativo (ADI) SRF nº 25/03 quanto aos tributos incidentes sobre o indébito tributário: eles teriam como fato gerador o momento posterior ao trânsito em julgado da ação judicial, em que os créditos foram reconhecidos e liquidados. O posicionamento do Fisco em tal ato é ainda mais claro em relação aos juros incidentes sobre o indébito, aos quais a Receita Federal expressamente atribui a natureza de receita nova.

Logo, parece-nos evidente que a interpretação do artigo 26-A da Lei 11.457/07 mais compatível com o ordenamento jurídico é aquela que atribui à expressão “período de apuração” sentido equivalente a “período em que os créditos se tornaram líquidos e certos”.

Já existem diversas ações judiciais que discutem o tema, sendo que a discussão aguarda definição pelo Judiciário. Nas oportunidades que teve de apreciar o tema, o Judiciário oscilou, sendo possível verificar decisões favoráveis aos contribuintes reconhecendo que o marco temporal a ser considerado para fins de identificação do “período de apuração” a que alude o artigo 26-A da Lei 11.457/07 é o momento em que o crédito se tornou líquido e certo (ou seja, após o trânsito em julgado favorável) [3]; e decisões desfavoráveis segundo as quais a data do trânsito em julgado em nada se refere ao período de apuração do crédito, devendo ser considerada apenas a data do pagamento indevido [4].

Exemplificativamente, na 2ª Vara Federal de Osasco, foi proferida sentença favorável que afastou a vedação à compensação cruzada pleiteada pelo contribuinte, tendo vista que o crédito tributário teria se tornado líquido e certo somente em momento “posterior a utilização do e-Social, que teve início em agosto de 2018”. (Mandado de Segurança nº 5002583-53.2021.4.03.6130)

Por outro lado, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) tem se posicionado pela impossibilidade da compensação cruzada, por compreender que “há expressa vedação dos débitos das contribuições previdenciárias quando o crédito dos demais tributos administrados pela RFB for relativo a período de apuração anterior à utilização, pelo contribuinte, do e-Social”. (Apelação nº 5001152-76.2020.4.04.7201).

O TRF5, por sua vez, possui entendimento em sentido semelhante, de modo que “a data do trânsito em julgado em nada se refere ao período de apuração do crédito, em vista da total desconexão dos seus objetivos e pressupostos, razão pela qual é inadequada a sua utilização como parâmetro de delimitação da abrangência da norma impeditiva da compensação cruzada”. (Apelação nº 0802383-58.2020.4.05.8400)

No âmbito dos tribunais superiores ainda não há decisões colegiadas sobre o tema, havendo apenas uma decisão monocrática (REsp nº 1.924.399), que manteve acórdão desfavorável ao contribuinte, inclusive, por entender que a compensação seria um benefício fiscal e que, portanto, a sua interpretação deveria ser restritiva, nos termos do artigo 111 do CTN.

Em nossa visão, com o devido respeito, tal entendimento deixa de considerar que a compensação consiste em efetiva modalidade de extinção do crédito tributário, de modo que a correta interpretação da norma que rege a “compensação cruzada” deve ser feita em consonância com os parâmetros delineados pelos artigos 170 e 170-A do CTN. Através desses dispositivos normativos se extrai a conclusão de que os créditos “nascem” para os contribuintes quando se tornam líquidos e certos, inclusive a partir do trânsito em julgado da decisão que os reconhecem.

Nessa perspectiva, considerando que o tema ainda pende de definição, espera-se que ao se debruçar sobre a matéria em novas oportunidades, o Judiciário afaste a restrição ilegal que vem sendo imposta pelo Fisco no que se refere à compensação em questão, analisando a controvérsia sob a ótica dos artigos 170 e 170-A do CTN, do entendimento firmado pelo STJ no REsp nº 1.164.452 e da orientação firmada pela própria Receita Federal na ADI SRF nº 25/03.

Esses elementos denotam a clara ilegalidade do entendimento exposto nas Soluções de Consulta COSIT 336/2018 e 50/2021, o qual esvazia parte do benefício alcançado pelos contribuintes que tiveram reconhecidos em seu favor indébitos tributários posteriormente à utilização do e-Social, como é o caso de diversas empresas que se sagraram vencedoras na “tese do século”.

Autores:

Eduardo Melman Katz – Sócio do escritório Mattos Filho

Alberto Carbonar – Advogado do Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr e Quiroga Advogados

Anna Carolina Guilhon – Advogada do escritório Mattos Filho


[1] “Artigo 26. O valor correspondente à compensação de débitos relativos às contribuições de que trata o artigo 2º desta Lei será repassado ao Fundo do Regime Geral de Previdência Social no prazo máximo de 30 (trinta) dias úteis, contado da data em que ela for promovida de ofício ou em que for apresentada a declaração de compensação. (Redação dada pela Lei nº 13.670, de 2018). Parágrafo único. O disposto no artigo 74 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, não se aplica às contribuições sociais a que se refere o artigo 2o desta Lei. (Revogado).” (g.n.)

[2] “Artigo 26-A. O disposto no artigo 74 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996: I - aplica-se à compensação das contribuições a que se referem os arts. 2º e 3º desta Lei efetuada pelo sujeito passivo que utilizar o Sistema de Escrituração Digital das Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas (eSocial), para apuração das referidas contribuições, observado o disposto no § 1º deste artigo; […] § 1º Não poderão ser objeto da compensação de que trata o inciso I do caput deste artigo: I - o débito das contribuições a que se referem os arts. 2º e 3º desta Lei: a) relativo a período de apuração anterior à utilização do eSocial para a apuração das referidas contribuições; e b) relativo a período de apuração posterior à utilização do eSocial com crédito dos demais tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil concernente a período de apuração anterior à utilização do eSocial para apuração das referidas contribuições; e II - o débito dos demais tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil: a) relativo a período de apuração anterior à utilização do eSocial para apuração de tributos com crédito concernente às contribuições a que se referem os arts. 2º e 3º desta Lei; e b) com crédito das contribuições a que se referem os arts. 2º e 3º desta Lei relativo a período de apuração anterior à utilização do eSocial para apuração das referidas contribuições.” (g.n.)

[3] Decisões Favoráveis: (i) MS 5021593-13.2020.4.03.6100, 2ª Vara Cível de São Paulo, (DJe 17.12.2021); (ii) MS 5002583-53.2021.4.03.6130, 2ª Vara Federal de Osasco – SP, (DJe 24.09.2021).

[4] TRF4: (i) AC 5001152-76.2020.4.04.7201, 2ª Turma, Relatora Carla Evelise Justino Hendges, juntado aos autos em 09/09/2020; (ii) AC 5005764-57.2020.4.04.7201, 2ª Turma, Relator Rômulo Pizzolatti, juntado aos autos em 28/04/2021; TRF5: (i) AC 08023835820204058400, 3ª Turma, Desembargador Federal Fernando Braga Damasceno, Julgado em 15/04/2021.logo-jota

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