
O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu no último mês de outubro o julgamento do Tema 1094, fixando a seguinte tese de repercussão geral:
“I – Após a Emenda Constitucional 33/2001, é constitucional a incidência de ICMS sobre operações de importação efetuadas por pessoa, física ou jurídica, que não se dedica habitualmente ao comércio ou à prestação de serviços, devendo tal tributação estar prevista em lei complementar federal.
II – As leis estaduais editadas após a EC 33/2001 e antes da entrada em vigor da Lei Complementar 114/2002, com o propósito de impor o ICMS sobre a referida operação, são válidas, mas produzem efeitos somente a partir da vigência da LC 114/2002.”
Com efeito, malgrado tenha possibilitado aquilo que se disse outrora ser impossível, ou seja, chancelando verdadeira constitucionalização superveniente da lei estadual paulista, acabou o Pretório Excelso por solucionar a singela equação que São Paulo nunca quis enfrentar, em mais uma demonstração de sua competência autoproclamada de editor da República e, nesse particular, também do ente federado.
Explica-se. Sinteticamente, a controvérsia está no fato de que, com o advento da Emenda Constitucional nº 33, de 2001, ficou definida a competência dos Estados e do Distrito Federal para a instituição de impostos sobre “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior”, incidindo também “sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre o serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço”, concorde a redação que deu à alínea “a” do inciso IX do §2º do art. 155 da Constituição Federal. Trata-se do famigerado ICMS na importação.
É bastante tranquilo que a previsão constitucional em questão tem sua aplicabilidade condicionada à existência de Lei Complementar, estabelecendo normas gerais acerca da legislação tributária, sobretudo em matéria de seus elementos constitutivos e os aspectos da regra-matriz de incidência, leitura que se extrai da Constituição Federal em seu art. 146, III, “a”. E essa lei veio de fato um ano depois, notadamente a Lei Complementar nº 114 de 2002.
Acontece que o estado de São Paulo, antes da existência da citada Lei Complementar nº 114 de 2002, legislou sobre a matéria e editou a Lei nº 11.001 de 2001.
Pois bem. Nesse cenário, discutia-se no Tribunal de Justiça de São Paulo, em um sem número de demandas, que a falta de Lei Complementar ao tempo da edição da Lei Estadual obstava a cobrança do tributo.
A questão chegou a ser inclusive decidida pelo Órgão Especial da corte, que reconheceu a inconstitucionalidade do dispositivo da lei local (Arguição de Inconstitucionalidade 0018486-77.2016.8.26.0000; Relator (a): Borelli Thomaz; Órgão Julgador: Órgão Especial; Datado Julgamento: 29/06/2016; Data de Registro: 01/07/2016).
O STF já tinha se debruçado sobre questão relacionada no RE nº 439.796/PR, interpretando com repercussão geral que “a ampliação da hipótese de incidência, da base de cálculo e da sujeição passiva da regra-matriz de incidência tributária realizada por lei anterior à EC 33/2001 e à LC 114/2002 não serve de fundamento de validade (…)” (DJe-051, de 17-03-2014), ocasião em que ficou destacada a impossibilidade de “constitucionalização superveniente” no sistema brasileiro, bem como a precisa observação de que a lei complementar nesse contexto é condição de validade e não tão somente de eficácia.
Nesse sentido, prevalece a clássica lição de Alexy, segundo a qual “uma norma é juridicamente válida se foi promulgada por um órgão competente para tanto, segundo a forma prevista, e se não infringe um direito superior; resumindo: se foi estabelecida conforme o ordenamento“.[1]
Pois bem. Nesse panorama a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo se consolidou pela impossibilidade de cobrança do tributo nesse contexto, concedendo a segurança aos contribuintes que, durante o processo de desembaraço do bem importado, viam-se sujeitos à exação pela autoridade fiscal.
Acontece que, em meio a esse cenário delineado, no mês de outubro de 2020 certificou-se o trânsito em julgado do citado Tema 1094, em que o STF, por maioria apertada de 6 a 5, fez justamente o que disse que não seria possível e chancelou a “constitucionalização superveniente” da indigitada lei paulista, que, embora posterior à EC 33/2001, é anterior à LC 114/2002.
Prevaleceu a divergência aberta pelo min. Alexandre de Moraes, que em seu voto, em suma, subscreveu a intelecção lançada pelo min. Gilmar Mendes em recurso pretérito e casuístico em que entendera que:
“Não se pode punir com a pecha de inconstitucional o ato do ente federativo diligente que, amparado por autorização constitucional e no exercício de sua competência tributária, alterou seu arcabouço normativo estadual para expressar o exato contido naquela norma. É bem verdade que a efetividade desse poder tributante dependeria de lei complementar federal, todavia não seria caso de inconstitucionalidade formal ou material, mas, tão somente, de condição de eficácia daquele exercício após a superveniência da legislação necessária. Caso contrário, exemplificadamente no estado de São Paulo, chegaríamos a situação na qual, em razão de até hoje não ter havido alteração normativa quanto ao contribuinte do ICMS-importação após a Lei Complementar Federal 114/02, o referido Ente Federativo estaria impedido de cobrar o aludido tributo.”
Esse desfecho é lamentável, com o devido acatamento. E por muitos motivos. Em primeiro lugar absolutamente não dá para se concluir que o estado de São Paulo tenha sido “diligente” e amparado por autorização constitucional para alterar a norma estadual e expressar o seu conteúdo, porque a lei estadual, malgrado tenha sido publicada em 21 de dezembro de 2001, sendo certo que é, por dias, dez dias para ser exato, posterior à citada EC 33/2001, foi concebida a partir de um projeto de lei sem relação alguma com a suposta “autorização constitucional”.
Isso é perceptível da análise da mensagem de motivos de 23/11/2001 do Governador de São Paulo à época, autor da proposta de alteração legislativa e que foi categórico ao justificar que a propositura se dava para adaptação da legislação estadual à LC 104/2001, nada tendo a ver com a EC 33/2001.
Em segundo lugar, é incompreensível a conclusão de que a ausência de legislação complementar para o exercício do poder tributante do ente federado seria apenas “condição de eficácia”.
É absolutamente claro na Constituição Federal que o exercício da competência tributária em questão prescinde de lei complementar estabelecendo normas gerais, sobretudo em matéria de seus elementos constitutivos e os aspectos da regra-matriz de incidência, na forma do art. 146, III, “a”, sendo que em inúmeras outras oportunidades o STF decidiu com a técnica adequada e já se pronunciou destacando que se tratava de critério de validade e não apenas de eficácia como inovou o recente julgado.
Em terceiro lugar, o desfecho é lastimável porque denuncia a ineficiência estatal e a usurpação de competência diante dela. A eficiência, na ciência da administração, diverge dos conceitos de eficácia e efetividade, pois eles estão definidos, respectivamente, com a finalidade, ou seja, o alcance dos resultados e das metas projetadas, e com o impacto a partir das ações de modo a modificar a realidade do administrado, ao passo que a eficiência é objetivada a partir do modo e do meio empregados na administração a fim de se utilizar da melhor forma os recursos, executando bem uma tarefa ou serviço que esteja ao encargo da administração.
Há anos se discute administrativamente e também no Judiciário a exigibilidade do ICMS na importação em São Paulo. Há anos a máquina pública é movimentada em muitos sentidos, sejam os agentes fiscais, os servidores do Judiciário e magistrados, assim como a advocacia pública do estado, nas diversas contendas acerca dessa questão, sendo absolutamente claro a todos que bastaria o legítimo exercício de sua competência legislativa para que se colocasse termo à discussão da forma mais adequada, evidentemente com a edição de lei que, agora sim, respeitasse os critérios de validade e eficácia da norma, em consonância com a Constituição Federal, mas simplesmente isso não aconteceu.
E ainda saiu o ente como “diligente” ao se antecipar, ainda que nem tenha se antecipado intencionalmente, porquanto o projeto que deu azo à lei estadual nem sequer imaginou que, poucos dias antes de efetivamente passar a existir no sistema jurídico, adviria emenda constitucional relacionada à matéria legislada.
Este é o retrato de um país que não é para principiantes, em que a crítica não está exatamente acerca do peso da tributação em questão, cuja possibilidade de cobrança resolveu o STF, porque certamente existe a previsão constitucional e a lei complementar que autorizam a exação, bastando lei local dispondo sobre seus critérios, mas sim está na subversão do sistema constitucional em múltiplos graus e pelo próprio guardião da Constituição Federal, afora a própria decepção do cidadão diante do acinte à segurança jurídica e instabilidade institucional que episódios como esse revelam com cada vez mais frequência no Brasil.
Ao contribuinte resta o servilismo ao estamento e a sujeição ao tributo paulista que, em razão do que decidido no Tema 1094, foi supervenientemente constitucionalizado.
[1] ALEXY, Robert. Conceito e Validade do Direito. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. P. 104.